Mostrando postagens com marcador PONTO DE VISTA. Boletim AASP. Especialistas analisam o Marco Legal das Garantias. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador PONTO DE VISTA. Boletim AASP. Especialistas analisam o Marco Legal das Garantias. Mostrar todas as postagens

sábado, 2 de março de 2024

PONTO DE VISTA - Especialistas analisam o Marco Legal das Garantias



O chamado Marco Legal das Garantias, como é conhecida a Lei nº 14.711/2023, foi sancionado em outubro de 2023 e teve origem no PL nº 4.188/2021. O texto, que altera diversas outras leis, dispõe sobre o aprimoramento das regras de garantia, a execução extrajudicial de créditos garantidos por hipoteca, a execução extrajudicial de garantia imobiliária em concurso de credores, o procedimento de busca e apreensão extrajudicial de bens móveis em caso de inadimplência de contrato de alienação fiduciária, o resgate antecipado de Letra Financeira, a alíquota de imposto de renda sobre rendimentos no caso de fundos de investimento em participações qualificados que envolvam titulares de cotas com residência ou domicílio no exterior e o procedimento de emissão de debêntures.

De acordo com o relatório “Ease of Doing Business” de 2020, do Banco Mundial, a taxa de recuperação de garantias no Brasil era de 18%, enquanto a média mundial era de 37%. Isso mesmo com o período de negociação no Brasil sendo de quatro anos, que é maior do que a média da América Latina, de 2,9 anos.Para analisar de forma detalhada a lei, quais ganhos e desafios ela traz com as diversas mudanças, novidades e possibilidades para o sistema de garantias, falamos com especialistas.



Qual sua análise sobre o Marco Legal das Garantias? 

Fábio Machado Baldissera e Felipe Tremarin: Entendemos que o Marco Legal das Garantias veio com o intuito de aperfeiçoar as garantias reais, em especial o instituto da hipoteca e da alienação fiduciária sobre bens imóveis, bem como de aprimorar o sistema de execuções de garantias por meio do regime extrajudicial. Isso, ao nosso entender, traz maior segurança aos operadores do mercado financeiro, o que poderá resultar em uma maior concessão de crédito e na redução de custos envolvidos. 

Mauro Antônio Rocha Com o inapropriado rótulo de “marco legal das garantias” – sabiamente descartado do texto final – a Lei nº 14.711 foi sancionada em 30 de outubro de 2023 com o objetivo de “aprimoramento das regras relativas ao tratamento do crédito e às [sic] medidas extrajudiciais para recuperação de crédito”. Norma legal de trajetória insólita, o projeto de lei apresentado em 2021 – elaborado com retalhos de sugestões provindas de diversas minutas divulgadas nos últimos anos pelas entidades representativas das instituições financeiras – foi surpreendentemente reanimado para atender ao interesse da área econômica do governo atual, em 2023.

O clamor da mídia e o imoderado entusiasmo dos especialistas patrocinados propiciaram a exagerada repercussão das promessas de redução das taxas de juros, a expansão do crédito, a geração de empregos, o destravamento do mercado, o acirramento da concorrência entre instituições e o aumento da participação do crédito imobiliário no PIB anunciado pelo marketing das entidades e associações. A nosso ver, sopesados os habituais e nunca efetivamente comprovados efeitos de acesso fácil ao crédito barato, as mudanças trazidas se conformam de maneira a enrijecer a execução da dívida, realçando a intuição comum de que os fiduciantes não têm patronos, defensores ou simpatizantes na Administração Pública ou no Congresso. 

Quais são as principais mudanças trazidas pela nova legislação? 

Fábio Machado Baldissera e Felipe Tremarin: São diversas as inovações trazidas pelo Marco Legal das Garantias que, como mencionado anteriormente, visam aperfeiçoar o regime das garantias no Direito brasileiro. Entre as principais inovações, destacamos aquelas relacionadas, principalmente, às inovações trazidas aos institutos da hipoteca e da alienação fiduciária de bens imóveis, bem como aquelas relacionadas à excussão extrajudicial de tais garantias, sem excluir, obviamente, a importância das diversas outras inovações trazidas pela legislação, como é o caso, por exemplo, das alterações realizadas no âmbito registral e notarial e aquelas trazidas ao mercado de capitais, dando destaque à simplificação do procedimento de emissão de debêntures. Destacamos as seguintes alterações: a previsão de alienação fiduciária superveniente de bem imóvel, a partir da qual será possível uma nova alienação fiduciária sobre o mesmo imóvel; a possibilidade de estender a hipoteca e/ou a alienação fiduciária de bem imóvel, por meio da qual a garantia já constituída possa ser utilizada como garantia de operações novas e autônomas de crédito; a criação de procedimento que possibilita a execução extrajudicial dos créditos garantidos por hipoteca em procedimento a ser realizado perante o Cartório de Registro de Imóveis competente, em procedimento similar à excussão da alienação fiduciária e a criação da execução extrajudicial da garantia imobiliária em concurso de credores, por meio do qual, em situações em que houver mais de um crédito garantido pelo mesmo imóvel, o Oficial do Registro de Imóveis Competente intimará simultaneamente todos os credores concorrentes para habilitarem os seus créditos. 

Mauro Antônio Rocha: Naquilo que nos interessa, merecem destaque positivo (i) a permissão de contratação e registro da alienação fiduciária de bem imóvel superveniente, regulada pelos §§ 3º a 10 incluídos ao art. 22 da Lei nº 9.514/1997, proporcionando o aproveitamento do gap entre o total do crédito garantido e o valor do imóvel integralmente transmitido em caráter resolúvel ao fiduciário, que desperdiça oportunidades de crédito e garantia; (ii) a extensão da garantia fiduciária existente para operações de crédito novas e autônomas de qualquer natureza, mediante simples aditamento contratual e independentemente do cancelamento da garantia originária, para assentir com a utilização do crédito residual concedido e aproveitamento da garantia excedente; (iii) a possibilidade de execução extrajudicial de créditos garantidos por hipoteca, regulada pelo art. 9º da Lei 14.711, que apostou no aproveitamento dos procedimentos conhecidos e já experimentados da execução extrajudicial da garantia fiduciária, com as adaptações requeridas por se tratar, a hipoteca, de direito real de garantia sobre coisa alheia. No campo dos procedimentos de execução extrajudicial, foi positiva a inserção do art. 27-A, que simplificou a intimação do fiduciante no caso de dívida garantida por múltiplos imóveis, facilitando a consolidação da propriedade e o leilão dos imóveis em coerência com as premissas gerais da garantia fiduciária. Inexplicável, no entanto, a ausência de detalhamento procedimental mínimo de controle das informações e anotações entre os ofícios de registro envolvidos. Destacam-se negativamente (i) o recrudescimento sistemático dos procedimentos de execução extrajudicial, especialmente com relação às intimações e realização da garantia em leilão público, sempre em detrimento dos interesses dos devedores; (ii) a expansão da obrigação de pagamento de saldo devedor remanescente (até então devido apenas em operações específicas e pontuais previstas na legislação extravagante) para contratos de qualquer natureza, com a exceção para contratos de crédito habitacional de que trata o § 4º do art. 26, exigível por meio da excussão das demais garantias da dívida ou, se for o caso, de ação de execução, quando o produto do leilão for insuficiente à quitação total do crédito e encargos (§ 5º-A do art. 27 da Lei de Regência); (iii) a redução para 50% do valor do imóvel, em qualquer situação, do referencial mínimo admitido para venda em leilão, previsto no § 2º do art. 27, pelo aproveitamento oportunista de proposta que estabelecia o percentual referido na lei processual para caracterizar o preço vil como valor mínimo na execução de dívidas de valor inferior, permitindo que o credor abdique unilateralmente da recuperação integral do crédito em proveito do recebimento do valor da dívida remanescente. 

O Marco Legal das Garantias irá impulsionar a atividade imobiliária e os atos de registro no Brasil? Quais são os pontos de atenção para os profissionais da área?
 
Fábio Machado Baldissera e Felipe Tremarin: Sim, entendemos que o Marco Legal das Garantias irá impulsionar a atividade imobiliária, uma vez que ele tem o objetivo de aperfeiçoar as garantias reais sobre imóveis, o que trará maior segurança e confiança aos operadores do mercado. Isso tende a resultar em uma maior concessão de crédito e na redução de custos envolvidos em financiamentos. No entanto, alertamos que a nova legislação não irá afastar de pronto todas as dificuldades e inseguranças enfrentadas pelo setor imobiliário. Isso levará tempo e demandará um trabalho em conjunto entre o setor, juristas e advogados especializados em Direito Imobiliário, de modo que juntos possam levar ao Poder Judiciário argumentos favoráveis ao setor com relação às inovações trazidas pelo Marco Legal das Garantias. 

Mauro Antônio Rocha: Os pontos positivos anteriormente referidos, em especial a permissão para o “recarregamento” da garantia, têm potencial para impulsionar, ainda que de forma residual, o mercado imobiliário e, principalmente, proporcionar o melhor aproveitamento do bem alienado fiduciariamente. Outros dispositivos não comentados dessa feita (execução extrajudicial de garantias fiduciárias de bem móvel, solução negocial prévia ao protesto e a administração fiduciária de garantias, por exemplo) deverão tracionar as atividades dos registros de títulos e documentos e dos cartórios de protestos. Porém, não querendo atrapalhar a festa, a simples leitura da lei é suficiente para identificar alguns procedimentos interessantes para a modernização da lei e ampliação da segurança jurídica dos contratantes, enquanto outros claramente potencializam controvérsias que deixarão o instituto exposto às interpretações judiciais, bem como para ressaltar o superdimensionamento dos benefícios e a ausência no texto legal de novidade capaz de suportar a bonança prometida pela mídia e pelos mercados. Ao profissional do Direito, notadamente àqueles que advogam em favor dos devedores, cabe buscar a correta compreensão das alterações legais trazidas de forma a monitorar a legalidade das atividades praticadas pelos oficiais de registro no âmbito da execução extrajudicial, especialmente a regularidade das intimações, da consolidação da propriedade e – principalmente – da observância dos prazos legais para realização dos leilões públicos, das regras relativas aos preços de oferta e venda do imóvel, bem como da fiscalização das despesas, taxas e emolumentos adicionados ao saldo devedor e da prestação de contas para a apuração final dos saldos devedor e remanescente da dívida e quitação da dívida após a arrematação.

FÁBIO MACHADO BALDISSERA é Advogado. Doutor em Direito. Especialista da área imobiliária.

FELIPE TREMARIN é Advogado. Especialista em Direito Imobiliário pelo Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter).

MAURO ANTÔNIO ROCHA é Advogado. Especialista, Palestrante e Instrutor com pós-graduação em Direito Imobiliário pelo Instituto Nacional de Ensino Superior e Pesquisa/SP, e em Direito Notarial e Registral pela Faculdade Arthur Thomas, Londrina. Professor convidado para diversos cursos de graduação e pós-graduação. Associado AASP desde 1990.
  
(Publicado originalmente no Boletim AASP #3188, de março/2023 - acesso restrito aos associados da AASP)