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segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Opinião. Notários e advogados - um conflito de interesses assaz interessante

Sergio Jacomino
Observatório do Registro

Com o título Notários: Isenção de escritura não beneficia cidadãos o Diário Digital registra a manifestação do Bastonário da Ordem dos Notários de Portugal, Dr. Barata Lopes. Como os leitores deste blogue sabem, não sou notário. Mas não posso deixar de manifestar certas e fundadas apreensões com o rumo que têm tomado as discussões sobre a reforma acidentada do notariado português. A apreensão se funda na importância que a experiência portuguesa representa para todos nós. Baseado em minha própria atuação profissional, posso garantir que a "deformalização" da contratação imobiliária não trouxe maiores benefícios para o cidadão. Nem para a sociedade. Nem mesmo para o Estado brasileiro. Coloco as coisas nessa ordem de importância, diferindo, pois, do colega português que vê na evasão de receitas estatais o argumento essencial para combater essa onda reformista. Como registrador imobiliário na Capital de São Paulo, posso testemunhar o enorme, o continental equívoco que foi a utilização, em larga escala, dos documentos privados para intrumentalizar transações imobiliárias - notadamente a partir da década de 30, com o advento do Decreto-Lei 58, de 1937. (Na verdade, a onda privatista é muito mais antiga. E leva impressivas tintas tropicais. Um Alvará de D. Maria I, em mais um dos seus devaneios, com o príncipe D. João à frente do governo, datado de 30 de outubro de 1793, confirmará o "costume do Brazil acerca do valor dos escriptos particulares e provas por testemunhas").
Na circunscrição que delimita as áreas centrais de São Paulo - região que se acha sob minha responsabilidade - a irregularidade imobiliária campeia. Sua ocorrência é simplesmente acachapante. Estamos acostumados a pensar nas iniciativas de regularização fundiária de áreas invadidas e nos esquecemos da irregularidade que se forma tão-só pela péssima contratação privada, que não encontra, em regra, guarida nos Registros Públicos por vícios ou imperfeições materiais ou formais. São promessas de compra-e-venda, cessões, promessas de cessão, numa fieira impressionante, a demandar a adoção da técnica do trato sucessivo abreviado de empréstimo dos espanhóis. O adquirente se vê diante do drama de agitar uma custosa ação de usucapião ou uma ação de obrigação de fazer (adjudicação compulsória) para estabilizar os direitos reais com a respectiva inscrição. Será possível que a ninguém ocorre que essa informalidade é como uma praga que consume nossas economias? Estaremos a exportar a Portugal nossas saúvas jurídicas? Contratos privados - vamos lhes dar um diagnóstico de sua evidente patologia jurídica:

  • São contratos volantes, que não encontram repouso num livro público. Estarão nos lugares mais insólitos. Ou perdidos nalgum escaninho esquecido - justamente quando deles mais necessitamos. Alguns estão em sites protegidos em algum lugar imponderável do cyber-space, prática que se tornou comum depois das violências perpetradas pela Polícia Federal em algumas bancas renomadas.
  • São formados na obscuridade e para a opacidade. São como espíritos que muitos crêem não existirem. Atormentam a vida do Fisco e encarnam para obrar a maravilhosa lavanderia invisível dos trópicos.
  • São contratos "partiais" - i.e., representam uma das partes, já que se fazem sob a cura de um advogado ou de um simples corretorde imóveis que em regra são patrocinados por uma das partes contratantes. Imagine o interesse da corretagem na concretização do negócio.
    São contratos clandestinos e imperfeitos. São chamados a Juízo quando devem produzir seus efeitos.
  • São contratos que acabam criando um pernicioso efeito de tropismo judicial. Chamado a resolver os intrincados problemas deles decorrentes, o Judiciário acaba relevando e socorrendo o contratante e de quebra criando uma jurisprudência leniente com a informalidade, desídia e clandestinidade jurídicas. Vale mais um contrato particular, do que uma hipoteca registrada. Esse fenômeno ocorre nestas plagas e certamente é motivo de escândalo internacional, embora se compreenda o sentido social ínsito.
  • O contrato privado é muito mais caro. Não há controle público; os preços não são fixados por Lei. Quando muito, quando lavrados por advogados, os honorários são fixados em tabelas corporativas, onde impera a livre negociação, com fixação de piso que culmina píncaros da tabela notarial. O exemplo da contratação imobiliária assistida por advogados em São Paulo é assaz eloqüente: 2% do valor do imóvel.

Enfim, são tantos os malefícios que a contratação privada nos traz que custa a crer que um país como Portugal esteja patrocinando o ocaso da atuação notarial. Barata Lopes deixa subentendido que há um pouco original conflito de interesses. Vale a pena conferir:

O Bastonário da Ordem dos Notários (ON) insurgiu-se hoje contra a isenção de obrigatoriedade de escritura pública em transacções de imóveis, considerando que a medida proposta pelo Governo em nada beneficiará os cidadãos mas criará «maior insegurança». O que importa aqui acentuar é que por este caminho vai criar-se maior insegurança, vai aumentar significativamente o número de litígios em Tribunal e vai ficar desprotegida a parte mais fraca do negócio, declarou Barata Lopes à margem de um plenário de notários de todo o país que decorre em Lisboa. Barata Lopes disse esperar que do encontro de hoje saiam «formas de luta» e lançou um alerta ao Executivo e ao Presidente da República para que tomem consciência de que «este passo pode ter consequências catastróficas». «O que aqui está em causa é que estamos a desobrigar, a eliminar o documento autêntico com todas as desvantagens que decorrem da circunstância das pessoas passarem a titular negócios extremamente importantes por documento particular sem o aconselhamento de um notário, esta é que é a pedra de toque», frisou o Bastonário da ON. A isenção de escritura pública em negócios imobiliários, medida que o Ministério da Justiça inscreveu no programa Simplex, de simplificação de actos administrativos, foi já aprovada na generalidade em Conselho de Ministros em Dezembro de 2007, mas aguarda ainda aprovação na especialidade. Para Barata Lopes a insenção de escritura pública também não beneficiará o Estado, que «garantidamente» perderá receitas. O Bastonário da ON referiu que entre Junho de 2006 e Dezembro de 2007 os advogados registaram no site da Ordem dos Advogados quatro milhões de actos praticados, que anteriormente eram da competência dos notários, representado uma perda de receitas públicas da ordem dos 12 milhões de euros. Por cada acto notarial o notário paga ao Ministério da Justiça três euros, por cada escritura realizada paga 10 euros, disse Barata Lopes lembrando que os advogados não pagam nada. Questionado sobre se o Ministério da Justiça estará a beneficiar outra classe, estando o Estado a tomar uma medida que vai contra si próprio, Barata Lopes foi assertivo: «Nesta altura não devem subsistir grandes dúvidas». «Para os cidadãos em geral nenhum benefício advém, parece-me que não podemos deixar de tirar daqui a ilação de que quem ganhará com isto são classes profissionais, como advogados e solicitadores», disse. De acordo com o decreto-lei aprovado na generalidade, deixam de ser obrigatórias as escrituras públicas para a compra e venda e para a constituição ou modificação de hipoteca voluntária que recaia sobre bens imóveis. A escritura pública deixa ainda de ser obrigatória para a doação de imóveis, para a alienação de herança ou de quinhão hereditário e para a constituição do direito real de habitação periódica, lê-se no decreto-lei, segundo o qual estes actos passam a poder ser realizados por documento particular autenticado, sendo que as conservatórias os advogados e solicitadores já o podem fazer, acto que está dependente de um registo electrónico. A nova legislação prevê também a adopção de um sistema de registo predial obrigatório, permitindo que todos aqueles actos possam ser realizados através de um documento particular autenticado. Fonte: Diário Digital/Lusa-26/1/2007.