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sábado, 2 de dezembro de 2023

O mistério dos arts. 23 e 24 da lei 9.514/97 (ou a casa da mãe Joana legislativa)


Mauro Antônio Rocha (☆)


Os textos dos arts. 23 e 24 da lei 9.514/97 publicados no Portal da Legislação e no Portal da Câmara dos Deputados são divergentes e estão, aparentemente, ambos errados.


1. Ainda que ressalve reiteradamente 'não substituir os textos publicados no Diário Oficial da União' o Portal da Legislação do Governo Federal, mantido pela Casa Civil da Presidência da República, é o repositório legislativo mais confiável e acessado pelos operadores do Direito no Brasil e o conteúdo de suas páginas é reproduzido e transcrito em processos, pareceres, estudos e livros, dispensando, geralmente, a essencial confirmação de veracidade.

No entanto, ao revisar - em cópia reproduzida do Portal da Legislação - os dispositivos da lei 9.514,1 severamente modificados pelo recente Marco Legal das Garantias, minha percepção foi desviada para algumas óbvias incongruências no texto dos arts. 23 e 24, que suportaram a revogação, inclusão e transformação de parágrafos originados na MP de 14 de fevereiro2, convertida na lei 14.620, de 13 de julho, ambas de 20233.

2. Compulsando os remissivos verifiquei que a MP 1.162, na parte em que tratou exclusivamente da Lei nº 9.514/1997, se limitou a revogar o parágrafo único do art. 24 para nele incluir os parágrafos 1º (com a reinserção do texto revogado) e 2º, para, naquilo que nos interessa, viger com a seguinte redação:

Art. 24. O contrato que serve de título ao negócio fiduciário conterá:

[...]

Parágrafo único. (Revogado pela MP 1.162/23) 

§ 1º Caso o valor do imóvel convencionado pelas partes nos termos do inciso VI do caput seja inferior ao utilizado pelo órgão competente como base de cálculo para a apuração do imposto sobre transmissão intervivos, exigível por força da consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário, este último será o valor mínimo para efeito de venda do imóvel no primeiro leilão. (incluído pela MP 1.162/23)

§ 2º Nos contratos firmados com cláusula de alienação fiduciária em garantia, caberá ao fiduciante a obrigação de arcar com o custo do pagamento do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana - IPTU incidente sobre o bem e das taxas condominiais existentes. (incluído pela MP 1.16/23).

Ao tramitar pelo Congresso Nacional a anunciada MP foi transmutada para o projeto de lei de conversão PLV 14/23 e posteriormente para a lei Ordinária 14.620/23, sancionada com vetos pelo Presidente da República. Assim, nos exatos termos do § 12 do art. 62, da Constituição Federal, a norma legal supratranscrita manteve-se integralmente vigente até a data da sanção presidencial, para, a partir de então, entrar em vigor o texto adotado pela lei ordinária de conversão.

Ocorre que a lei de conversão não prestigiou as alterações trazidas ao art. 24 pela MP, com a consequência - observado o dispositivo constitucional aludido - da repristinação da norma com o retorno à redação original, a partir da sanção da lei, na forma abaixo:

Art. 24. O contrato que serve de título ao negócio fiduciário conterá:

[...]

Parágrafo único.  Caso o valor do imóvel convencionado pelas partes nos termos do inciso VI do caput deste artigo seja inferior ao utilizado pelo órgão competente como base de cálculo para a apuração do imposto sobre transmissão intervivos, exigível por força da consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário, este último será o valor mínimo para efeito de venda do imóvel no primeiro leilão. (Incluído pela lei 13.465/17)   

Entretanto, a redação atualizada da lei 9.514/97 ofertada pelo Portal da Legislação ainda mantém indevidamente revogado o parágrafo único do art. 24 e vigentes os parágrafos 1º e 2º descartados pelo PLV convertido em lei, prontos para induzir os incautos ao erro e a merecer os reparos técnicos apropriados.

Não bastasse isso, ao deslocar parcialmente para o art. 23 um dos parágrafos anteriormente alocados no art. 24 pela MP o legislador mandou às favas as regras básicas de redação legislativa para, independentemente de qualquer comando, sem transcrever a norma do parágrafo único, transformá-lo em § 1º de maneira a permitir a inclusão do § 2º, da seguinte forma:

Art. 23.

§ 1º.........................................................

§ 2º Caberá ao fiduciante a obrigação de arcar com o custo do pagamento do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana - IPTU incidente sobre o bem e das taxas condominiais existentes." (NR) 

Não por acaso, confusos e em dúvida, os técnicos da Casa Civil mantiveram tanto o § 1º quanto o parágrafo único no texto da lei (grifo nosso):

Art. 23. Constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título.

Parágrafo único. Com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário possuidor indireto da coisa imóvel.

§ 1º Parágrafo único. Com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário possuidor indireto da coisa imóvel. (Incluído pela lei 14.620/23) 

§ 2º Caberá ao fiduciante a obrigação de arcar com o custo do pagamento do IPTU incidente sobre o bem e das taxas condominiais existentes. (Incluído pela lei 14.620/23). 

3. De outra forma, o Portal de Atividade Legislativa da Câmara dos Deputados que também se revela excelente e confiável repertório de textos legais atualizados, regularmente consultado por pesquisadores e advogados quando imperioso o double check, tratou com precisão cirúrgica do art. 24, excluindo os parágrafos adicionados pela MP e abandonados pelo PLV e repristinando o parágrafo único anteriormente existente. No entanto, para nossa surpresa e preocupação, adotou gambiarra redacional ao indicar no § 1º do art. 23 uma remissão de transformação de dispositivo inexistente no texto legal de origem ("Parágrafo único transformado em § 1º pela lei 14.620, de 13/7/23").

4. Os desacertos apontados podem parecer desimportantes, mas revelam a incúria e o descaso do legislador no tratamento da norma, resultantes, dentre outros fatores, do desnecessário aproveitamento da urgência das medidas provisórias e da avidez com que representantes das entidades e dos mercados financeiros avançam contra os direitos dos fiduciantes, o que restou claramente evidenciado na redação final da lei 14.711/23, fragilizando o instituto e proporcionando relevantes argumentos para a judicialização de seus procedimentos.

Está na hora da eclosão de um movimento de depuração da lei, para o efetivo aprimoramento do instituto da alienação fiduciária de bem imóvel e para a correção dos desvios e exclusão dos malfeitos na lei 9.514/97, tão importante para a garantia dos negócios jurídicos em geral.

Para começar, proponho que a Casa Civil do Governo Federal e a presidência da Câmara Federal determinem a imediata correção dos textos da lei 9.514 ali publicados.


(☆)Mauro Antônio Rocha
Advogado graduado pela Faculdade de Direito da USP e pós-graduado em Direito Imobiliário e Direito Notarial e Registral.
Eleito Presidente da AD NOTARE Academia Nacional de Direito Notarial e Registral para o biênio 2024/2025


NOTAS

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1 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9514.htm (acesso em 29/11/23)
2 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Mpv/mpv1162.htm (acesso em 29/11/23)
3 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Lei/L14620.htm (acesso em 29/11/23)

Publicado originalmente no Boletim Migalhas nº 5.738, de 02 de dezembro de 2023.