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quarta-feira, 27 de junho de 2007

Direito urbanístico. Breves considerações (II)

Programas de Regularização Fundiária no Município de São Paulo

De maneira geral, o Poder Público da Cidade de São Paulo adotou, ainda que de forma incipiente, o respeito aos princípios do direito à cidadania, à moradia e à regularização fundiária da área ocupada na formulação e desenvolvimento de seus programas sociais.
Apesar disso, podemos encontrar na maioria desses programas, vestígios de posturas urbanísticas pré-constitucionais que privilegiam a expulsão forçada ou induzida e da remoção abusiva dos moradores em prol da “reurbanização” da área. Vislumbramos, inclusive, a postura “higienista” da intervenção do município nas áreas centrais da Cidade, sob a justificativa da recuperação histórica e arquitetônica e do repovoamento dessa área para melhor aproveitamento dos equipamentos comunitários ali instalados. Atualmente, a Cidade de São Paulo, mantém os seguintes programas de regularização fundiária urbana:
(a) Programa de Regularização Urbanística e Fundiária em Favelas, lançado em 2003, através da Lei nº 13.514, considerado pela Prefeitura o maior do gênero em curso no país, permitiu, segundo informações oficiais, a regularização de 160 áreas públicas do município, beneficiando mais de 40 mil famílias, com a concessão de títulos gratuitos de moradia para as famílias, sem outra propriedade, ocupantes de imóvel de até 250m2, residentes há mais de cinco anos consecutivos no local.
Este programa de regularização fundiária é aplicado pela Prefeitura de São Paulo nas favelas resultantes dos processos urbanísticos de expulsão, bem como do processo de (des)provisão pública de lotes e moradias pelo Poder Público que caracterizam as décadas do meado do século passado e se apresenta em consonância com os fundamentos constitucionais vigentes, traduzindo o direito do cidadão à moradia, à Cidade e à regularização fundiária.
(b) Programa de regularização e urbanização de loteamentos irregulares, que precede a regularização fundiária da área, com a realização das obras de infra-estrutura (pavimentação, drenagem, redes de água e de esgoto, praças etc.), além de espaços para equipamentos sociais como creche e escola. Segundo informações oficiais a Prefeitura urbanizou 69 loteamentos na cidade, beneficiando 50 mil famílias.
O programa referido também se apresenta em consonância com os fundamentos urbanísticos e constitucionais atuais, com respeito ao direito do cidadão à moradia, à Cidade e à regularização fundiária. Tornou-se obrigatório em razão do processo urbanístico de provisão privada de lotes e moradias na não-cidade que, na Cidade de São Paulo, perdurou até a promulgação da chamada Lei Lehmann que regulamentou o parcelamento do solo urbano e a produção de loteamentos.
(c) Programa Mananciais, para a recuperação sócio ambiental das favelas e loteamentos precários localizados na região dos mananciais da cidade de São Paulo, com a realização de obras de infra-estrutura e reassentamento de famílias que vivem em áreas de risco. O programa tem por objetivos declarados recuperar e conservar a qualidade das águas dos reservatórios Guarapiranga e Billings e garantir a inclusão social da população e a sustentabilidade das intervenções urbanísticas realizadas pelo programa, que transforma áreas degradadas em bairros.
A postura da invisibilidade do movimento de ocupação gradual dessas áreas para a implantação de moradias de baixa renda, resta clara do descaso do Poder Público para com o tratamento desse processo, que resultou, igualmente, da estratégia de expulsão e das políticas de provisão privada e (des) provisão pública de lotes e moradias para a população de baixa renda. Assim é que, se é verdade que a inicial ocupação dessas áreas ocorreu por impulso individual ou movimentos coletivos incipientes, a partir da década de 50, essa ocupação aconteceu por conta da produção de loteamentos irregulares pela iniciativa privada, através de companhias urbanizadoras regularmente constituídas.
(d) Programa Morar no Centro, que inclui o resgate histórico e arquitetônico e tem por objetivo declarado melhorar as condições de vida de quem já reside na área central, atrair novos moradores, de todas as classes sociais, e promover a reforma e reciclagem de prédios ociosos para moradia e o repovoamento dessa área da cidade. Abrange programas de arrendamento residencial dirigido a família com renda mensal de até seis salários mínimos, de locação social, dirigido a famílias com renda de até três salários mínimos e a reabilitação integrada do habitat, com produção de novas moradias.
Este programa precisa ser abordado com alguns cuidados. Aparentemente tem por objetivo repovoar a área central da cidade. No entanto, esconde a intenção de substituir a população atual, constituída, em sua grande maioria, por famílias e pessoas de baixa ou nenhuma renda, ocupantes de prédios abandonados ou em fase de abandono e de cortiços, por outra população de renda média suficiente para alimentar a rede de comércio e serviços atual ou que se pretende instalar no local.
Inicialmente, o programa aqui referido trata a questão do resgate histórico e arquitetônico das áreas centrais da Cidade como se não houvesse população ali instalada e residente, num claro processo de invisibilização das moradias e de seus moradores, para, em conseqüência, provocar sua expulsão para locais mais distantes, em claro procedimento de higienização, seguido da recuperação social da área e sua entrega para uma população mais abastada, da política de arrocho fiscal, pela imposição do pagamento dos impostos prediais e territoriais a uma parcela da população que não tem recursos para arcar com esses tributos. Esse programa nega, claramente, o direito à cidadania desses moradores, contrariando os princípios constitucionais do direito à cidade, direito à moradia e direito à regularização fundiária.
(e) Programa Mutirões, que privilegia a auto construção de moradias e que atende, segundo dados oficiais, 123 empreendimentos, que representam 14 mil unidades habitacionais, beneficiando diretamente 56 mil pessoas. Neste programa são atendidos o chamado mutirão tradicional, trabalho gratuito promovido pelo Estado para construção de casas e/ ou infra-estrutura urbana e o mutirão de auto gestão, com financiamento do poder municipal e apoio às associações para que os mutirantes construam e administrem o empreendimento.

A usucapião especial. Sua aplicação e os problemas daí decorrentes.

Ao regular a usucapião especial prevista no art. 183 da Constituição Federal, o Estatuto da Cidade criou, em seu artigo 10, uma nova forma de prescrição aquisitiva, nos seguintes termos:
“as áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, interrruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.”
Os requisitos específicos dessa usucapião coletiva são, a ocupação, por no mínimo cinco anos, com “animus domini”, ininterrupta, mansa e pacífica, para fins de moradia. O imóvel deve ser urbano, com área superior a 250 metros quadrados e os possuidores não podem ser proprietários de outro imóvel urbano ou rural, além de ser comprovadamente pertencente à “população de baixa renda”. A atribuição da área aos possuidores se dá por sentença, em frações ideais iguais a todos os usucapientes, salvo acordo escrito em contrário por eles firmado, formando um condomínio especial de caráter indivisível, que somente poderá ser extinto por deliberação de dois terços dos condôminos, no caso de execução de urbanização posterior.
Esse instrumento veio a suprir a necessidade de regularização fundiária de áreas não comportadas pela usucapião especial de imóvel urbano provida pela Constituição Federal para aquisição de direito real, pelo possuidor individual, sobre lote de área não excedente a 250m2, ocupadas por diversas pessoas ou famílias em regime de composse, com impossibilidade de aferição das áreas de uso exclusivo, e que, nos exatos termos da disposição constitucional não se prestavam à efetiva regularização.
Apesar de alargar as possibilidades de aplicação dos programas de regularização fundiária, estendendo-os também às chamadas posses multitudinárias, o processo de regularização urbana coletiva apresenta um grave problema urbano, que reside na estratificação de situações urbanísticas em geral caóticas, uma vez que esses aglomerados residenciais, são formados de ”construções disformes, irregulares e às vezes sobrepostas, servidas por ruelas becos muito estreitos, que se entrelaçam em fugidios e sinuosos traçados...”
Assim, o reconhecimento do direito de regularização fundiária dessas populações, embora legal e legítimo, implica na manutenção dessas situações, que a simples atribuição de partes ideais iguais da área aos interessados não corrige nem minora. Dessa forma, uma possível intervenção do Estado nessa área, com a finalidade de estender ou oferecer serviços e equipamentos públicos indispensáveis, tais como vias de locomoção, água, esgoto, energia elétrica etc., restará prejudicada ou obstruída pela ausência de uma organização espacial mínima.
Outro grave problema, já visível em alguns empreendimentos de interesse social destinados à famílias de baixa renda reside na impossibilidade de efetiva administração condominial, decorrente da negativa de cumprimento do pagamento das quotas condominiais mensais, resultando no abandono das “áreas comuns” destinadas à circulação interna, com a conseqüente ocupação dessas áreas por terceiros, dando início a um outro processo de ocupação no interior da área usucapida e fracionada.
De toda forma, ainda que presentes tais problemas, pinçados dentre outros advindos e que dela advirão, a usucapião especial urbana coletiva veio a atender aos anseios de segurança dessa população e representou um grande avanço em direção ao cumprimento e garantia dos direitos á moradia e à regularização fundiária, que permeiam e justificam o capítulo constitucional sobre política urbana.

O uso das ZEIS no processo de regularização fundiária

As cidades brasileiras são caracterizadas pela concentração de riquezas em determinadas regiões e, consequentemente, pela concentração de equipamentos urbanos, sociais e de infra-estrutura, tudo isso em detrimento das demais, que restam marcadas pelo abandono e pela ausência de investimentos públicos.
A arquiteta Raquel Rolnik localiza a origem dessa desigualdade de tratamento já nas relações jurídicas do Brasil Colônia, especialmente no processo de concessão das sesmarias e das ‘datas’ urbanas, que propiciou a posse pura e simples de áreas não delimitadas entre elas, possibilitando a convivência de um sistema formal de titulação em relação à terra, derivado das concessões oficiais, e outro, sem qualquer titulação ou registro, baseado exclusivamente na posse. Tais sistemas se expressam atualmente através das chamadas cidades “legal” e “ilegal”.
De outro lado, as intenções de regularização fundiária das chamadas cidades "ilegais", mesmo no período pós constitucional, foram prejudicadas pela ausência de instrumentos adequados para a implementação dos programas, razão porque, no período anterior à promulgação do Estatuto da Cidade em 2001, somente as experiências de Belo Horizonte e Recife podem ser consideradas vitoriosas.
O Estatuto da Cidade trouxe, dentre os diversos instrumentos de implementação de política urbana previstos no artigo 4º do diploma legal, as chamadas Zonas Especiais de Interesse Social, destinadas à “flexibilização dos parâmetros urbanísticos quanto ao uso, ocupação e parcelamento do solo, a partir do reconhecimento das tipicidades locais, para facilitação da regularização fundiária”, para utilização em “assentamentos habitacionais surgidos espontaneamente caracterizados por irregularidades jurídicas ou urbanísticas na ocupação do solo urbano”.
Isto significa que através das Zonas Especiais de Interesse Social o Poder Público tem a possibilidade de flexibilizar as disposições do zoneamento de uso do solo, que, para José Afonso da Silva, citado por Betânia Alfonsin, “pode ser entendido como um procedimento urbanístico destinado a fixar os usos adequados para as diversas áreas do solo municipal. Ou: destinado a fixar as diversas áreas para o exercício das funções urbanas elementares”.
Esse importante instrumento de planejamento urbano, no entanto, foi utilizado por muito tempo para justificar interesses econômicos e políticos em favor do mercado imobiliário, bem como para afastar de determinadas regiões a população de alguma forma indesejável. Para tanto, tratava o legislador municipal de atribuir exigências e posturas incompatíveis com a condição econômica e social e de improvável satisfação por essa população.
Assim, a característica marcante e inovadora das ZEIS é a possibilidade de atribuir normas específicas e, se preciso, excepcionais para aplicação em determina região “zoneada” pela própria população, respeitando as características próprias do assentamento, autorizando a regularização fundiária da área abrangida.
A conseqüência fundamental dessa autorização reside no restabelecimento “do princípio da igualdade de par com o princípio do reconhecimento da diferença”, isto é, do “direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza” e ao “direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza” (Santos, Boaventura de Souza – citado por Betânia Alfonsin)
Esse, também, o entendimento da Profa. Alfonsin: “Parece-nos que as ZEIS conseguem garantir igualdade e diferença às populações moradoras dos assentamentos informais. Garantem por um lado o “direito à igualdade”, na medida em que o gravame de ZEIS reconhece e busca consolidar o assentamento no território urbano, garantindo direito à cidade, direito à moradia digna e respeito a habitabilidade, independentemente dos interesses que o mercado imobiliário possa ter na localização do assentamento. Por outro lado, as ZEIS também garantem o “direito à diferença”, na medida em que reconhecem o processo histórico de produção social e cultural do habitat que redundou em usos, tipologias e padrões irregulares segundo a legislação urbanística do município para a região, fazendo nascer o direito de utilizar padrões que, ainda que distintos dos estabelecidos pela lei, garantem dignidade e habitabilidade aos assentamentos.”
Temos, portanto, que, para além de ser um dos mais importantes instrumentos para a regularização fundiária urbana, o instrumento de ZEIS se mostra ágil, flexível e capaz de garantir às populações dessas áreas “ilegais” os direitos da “igualdade”, isto é, direito à moradia em condições de igualdade com as demais populações e da “diferença”, aqui entendido como o direito de utilizar padrões distintos daqueles estabelecidos pela legislação, porém compatíveis com a situação econômica e social da população de abrangência.Outra importante conseqüência da criação das ZEIS reside na inibição do mercado imobiliário em relação às áreas atingidas, que permanecem vinculadas ao uso de interesse social, reduzindo o avanço potencial e prejudicial desses interesses sobre os moradores, de forma a incrementar a segurança da posse, no momento pós-regularização fundiária.