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segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

A ante-véspera da Carta aos Brasileiros


Artigo do Professor Goffredo da Silva Telles Junior publicado na Revista do Advogado, editada pela Associação dos Advogados de São Paulo - AASP.


"Mataram Wladimir Herzog nos porões do Doi-Codi. Vlado era Diretor de Jornalismo da TV Cultura. Era amigo de todo mundo. Foi morto sob tortura, em Outubro de 1975.
De seu suplício, ouvi circunstanciado relato, feito pelo jornalista Rodolfo Osvaldo Konder, no escritório do advogado José Carlos Dias. Esse depoimento, tomado por termo, foi testemunhado por mim, pelos juristas Prudente de Moraes Neto, Maria Luíza Flores da Cunha Bierrenbach, José Roberto Leal de Carvalho e Arnaldo Malheiros Filho, e pelo padre Olivo Caetano Zolin. Rodolfo Konder estivera também preso naqueles mesmos antros do Departamento de Operações Internas (DOI). Fôra acareado com seu colega. Depois, escutara os gritos e gemidos do amigo, em sessões bárbaras de tortura.
A morte de Wladimir Herzog causou comoção enorme. Os estudantes da Academia deixaram as salas de aula, aglomeraram-se ruidosamente no Pátio. O Centro Acadêmico XI de Agosto improvisou um comício no Largo, e seus estupendos oradores vituperaram os horrores do regime. Os bispos, na Conferência de Itaici, denunciaram as mortes praticadas sob tortura, e lançaram um brado de protesto. A Ordem dos Advogados do Brasil manifestou sua revolta contra a tortura e o assassinato nas prisões, e pôs-se à disposição de Clarice, mulher de Herzog, para os pleitos que ela quisesse intentar em juízo, contra os responsáveis pela morte de seu marido. Todos os órgãos da imprensa, escrita e falada, e todas as entidades representativas da mídia clamaram contra o assassínio de Vlado e contra as atrocidades praticadas pelo aparelho repressivo do II Exército. A Missa do 7° Dia foi celebrada na Catedral da Praça da Sé. Oficiou-a o Cardeal Arcebispo Dom Evaristo Arns, que foi assistido por dois Rabinos e um Pastor protestante. Grande multidão acorreu à cerimônia, superlotou o templo, comprimiu-se nas escadarias, tomou os espaços contíguos. A Missa foi sucedida com emocionante comício de protesto contra a Ditadura, e com o "Caminhando" de Geraldo Vandré, entoado pelo povo, diante da Catedral.
O implacável delegado Erasmo Dias quis, em vão, bloquear as vias de acesso à Praça, e mais uma vez deu motivo para ser odiado. Maria Eugenia descera um degrau da escadaria, na minha frente. A polícia montara suas máquinas fotográficas sobre grandes tripés, para nos apanhar no que ela provavelmente julgava ser "flagrante delito de subversão". Inclinei-me para a minha mulher, e sussurrei-lhe: "Estou me lembrando de Alexandre Vannucchi, que se acha no céu, assistindo a tudo isto”. Vannucchi havia sido estudante de Geologia na USP, e representante dos alunos na Congregação de sua Escola. Preso em 1973, foi ocultado pelo DOI, durante muitos dias. O Reitor, Professor Miguel Reale, envidou todos os recursos de que dispunha, para encontrar o menino. Quando dele teve notícia, Alexandre Vannucchi estava morto. Por depoimentos posteriores de várias testemunhas presenciais — pessoas que também estiveram encarceradas nessa ocasião, nas mesmas dependências daquele inferno — , o que se soube era que Vannucchi sofrera torturas atrozes, por longos dias; fora seviciado até morrer. Senti a mão de Maria Eugenia, apertando o meu braço.
A emoção em toda a Praça era enorme. A revolta se apossava dos corações da multidão, à medida que crescia para os céus a canção de Vandré. Muitos, sem dúvida, recordavam que, apenas dois meses antes da morte de Wladimir Herzog, os verdugos da repressão haviam torturado até a morte um outro idealista: o tenente José Ferreira de Almeida. Meu Deus ! Até quando, até quando aquilo ia continuar? Pois bem, quatro meses depois do assassinato de Wladimir Herzog, e da imensa manifestação popular na Praça da Sé, o operário metalúrgico Manuel Fiel Filho foi morto sob tortura, naquelas mesmas dependências do Departamento de Operações Internas. O fato, ocorrido em 17 de Janeiro de 1976, causou colossal impacto. Os trabalhadores de todo o Brasil largaram as fábricas e os escritórios, arrostaram os perigos da repressão, foram para as ruas e praças. Incontinenti, o General Presidente da República retirou do comando do II Exército o General Ednardo D´Avila Melo, e o substituiu pelo General Dilermando Gomes Monteiro, que recebeu, certamente, instruções muito especiais. Cessaram as torturas. Ao menos, notícias de torturas não mais nos chegaram. Tínhamos a impressão de que, sob o novo comando militar, os torturadores entraram em recesso. Mas, embora sem torturas, arbitrariedades de toda ordem e violações dos direitos continuavam a ser a marca infamante de um regime discricionário. Contra as iniqüidades da Ditadura, vozes audazes se ouviram, nos plenários das Câmaras. Então, o que vimos foi a mutilação do Poder Legislativo, com a cassação sumária dos mandatos de congressistas. Por terem ousado criticar os órgãos de segurança, por terem denunciado violações de Direitos Humanos, representantes do povo foram castigados com detenções iníquas e supressão drástica de direitos políticos.
Assim, ante a Nação silenciada, foram cassados os mandatos dos Deputados Marcelo Gatto (Federal) e Nelson Fabiano Sobrinho (Estadual), ambos de São Paulo, em Janeiro de 1976; Nadyr Rosseti e Amaury Muller (Federais), ambos do Rio Grande do Sul, em Março de 1976; Lysâneas Maciel (Federal), do Rio de Janeiro, em Abril de 1976; Leonel Júlio, Presidente da Assembléia Legislativa de São Paulo, em Dezembro de 1976. Eu me perguntava: Mas, afinal, tanta prepotência, tanta ditadura, para quê? O que os Generais disseram, quando derrubaram João Goulart e se apossaram do Governo em Março e Abril de 1964, o que disseram foi que era preciso "salvar o Brasil". Para salvar o Brasil, as Forças Armadas submeteram o País a um regime de força. De força, para quê? Para resgatar o País, libertá-lo dos demolidores das instituições; para aniquilar a subversão e restabelecer a ordem nacional. Que ordem? A ordem fundada na Doutrina da Segurança Nacional, toda voltada para os Objetivos Nacionais Permanentes: a ordem definida pelo supremo Conselho de Segurança Nacional, a ordem imperturbável das Forças Armadas.
Em minhas aulas, eu recordava — refrescando a memória de meus alunos — os conceitos de ordem e desordem . Eu dizia: A desordem não é o contrário da ordem. A desordem é sempre uma ordem: uma certa ordem contrária a outra ordem. Em termos absolutos, a ausência da ordem (o contrário da ordem) é impossível no cosmos: impossível no mundo físico e impossível no mundo ético, porque todo ser existente se compõe, necessariamente, de seres ordenados. A ordem é condição da existência. Que é, então, a desordem? Desordem não é mais do que uma palavra. É um termo. É o nome que nós, humanos, conferimos às ordens que nos infelicitam ou nos desagradam; às ordens de que não gostamos. Dizia eu a meus alunos: Desordem é a ordem que não queremos.
Pois bem, a ordem vigente no Brasil, fundada na Doutrina da Segurança Nacional, era uma ordem política que nos era imposta pela força de um governo absolutista: uma ordem que não admitia contestação, que não tolerava oposição vitoriosa, e que se apoiava em aparelhos repressivos. Era uma ordem agressiva e constrangedora, cega para os Direitos Humanos — contrária à ordem democrática. Para nós, democratas, criados no respeito pela dignidade soberana das pessoas, alimentados com o ideal permanente da liberdade, aquela ordem discricional — ordem do arbítrio — nos feria e infelicitava. Era a ordem que não queríamos.
Para nós, a ordem dos Órgãos de Segurança era desordem. Treze anos passaram... Teria servido para alguma cousa, a longa e violenta "ordem" da Ditadura? Teria ela servido para, de qualquer modo, "salvar o Brasil"? O que eu via — o que todos nós víamos —, em nosso País, eram os efeitos sociais desastrosos do celebrado “milagre brasileiro". Sabíamos do colossal aumento da dívida externa, em razão dos empréstimos contraídos pelo Governo, em bancos estrangeiros, para execução de obras mirabolantes, nunca terminadas. Sabíamos dos embaraços sem saída, em que o Governo se enredou, com o contrato catastrófico da compra das usinas nucleares alemãs. E sabíamos, por informações que nos eram confiadas por amigos secretos, do pesadelo em que viviam as autoridades, em virtude da tormentosa e angustiante falta de fundos para o pagamento dos compromissos assumidos. Por outro lado, o que nos surpreendia era a criação de quase duzentas grandes empresas estatais, que se instalaram no País ao custo de subsídios em dinheiro, que o Governo lhes ofereceu, com condições irrecusáveis de prazo e juros — recursos desencavados afoitamente, mas que o Governo sonhava certamente recuperar com a opulência futura de um conjecturado Brasil Grande. O que víamos em nosso País eram as manobras de um capitalismo selvagem, que nos parecia mancomunado com Ministérios, e a conseqüente concentração progressiva da renda. Víamos e sofríamos uma inflação galopante, que já ultrapassara os 40%.
Creio que o que mais nos preocupava era a redução assustadora do poder de compra dos salários, acarretando a crescente aflição dos trabalhadores. Para o Conselho de Segurança Nacional, a simples idéia da reforma agrária era comunismo, era subversão da ordem. Tanto absolutismo, tanto autoritarismo, por tanto tempo, para quê?
Pergunta permanente, esta, em nossos espíritos inquietos. Que títulos, que autoridade cultural tinham os Generais do Governo, para ditar e impor a toda a Nação, por anos e anos a fio, a sua "verdade", as suas "certezas", as suas "aversões" e "ojerizas"? Censura rigorosa, exercida severamente nos órgãos da mídia, buscava escamotear, dos olhos do povo, grande parte da realidade. Mas o povo, na primeira oportunidade, já mostrara, de surpresa, seu repudio pelo regime. Isto se deu em 1974, quando uma Oposição oprimida venceu, inopinadamente, as eleições para a Câmara e o Senado. Dois anos depois, temendo nova derrota nas urnas, o Governo se super-preveniu, e promulgou a chamada Lei Falcão, de 24 de Julho de 1976. Esta lei, concebida por Armando Falcão, Ministro da Justiça, restringiu, drasticamente, a propaganda eleitoral no rádio e na TV, e a reduziu à publicação da foto, do nome, do número e do currículo resumido dos candidatos. Com isto, o debate político ficou impedido, nos meios de comunicação. A Oposição foi a grande prejudicada, porque perdeu a possibilidade de divulgar suas convicções sobre a Ditadura, e de expor suas idéias para o futuro. A propaganda eleitoral passou a ser um chorrilho imprestável.
Na véspera do dia 11 de Agosto de 1976 — no Aniversário dos Cursos Jurídicos no Brasil; Aniversário de minha Faculdade — jornalistas me procuraram, para obter um pronunciamento sobre o significado dessa data. De mim para mim, resolvi não perder esta oportunidade para tocar em alguns temas cruciais. Então, expus, com simplicidade, a diferença entre o Estado de Direito e o Estado Absoluto, entre a Democracia e a Ditadura. Busquei demonstrar o que a Ordem Jurídica, fundada na Constituição, representava na vida das pessoas, e o que ela valia, para a salvaguarda dos Direitos Humanos. E terminei com um relato sumário dos motivos que inspiraram a Lei Imperial, que criou, em 1827, o ensino do Direito em nosso País.
Dias depois, em 15 de Agosto, o Estado de S.Paulo publicou minhas declarações sobre a missão histórica da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Naquele mesmo mês de Agosto — lembro-me bem! — Ignacio, meu inspirado irmão, iniciou um curso de oito aulas sobre as Cidades Sagradas: sobre Tebas, Jerusalém, Benares, Lassa, Roma, Praga e Brasília. Ignacio é um brasileiro cujo sonho ou ideal de beleza se erige, dentro de seu coração, em verdade mais real do que a própria realidade. Nas eleições municipais de Novembro, o Movimento Democrático Brasileiro (o MDB), Partido da Oposição, venceu, apesar da Lei Falcão, em cinqüenta e nove das cem maiores cidades do Brasil (veja Boris Fausto, "Historia do Brasil", 9.6.2.). Dando mostras de seu inconformismo — e a titulo de advertência a todas as Câmaras Municipais do País — a Ditadura cassou os mandatos dos influentes Vereadores Glênio Perez e Marcos Klassmann, de Porto Alegre.
A convite do Professor Miguel Reale Jr., Coordenador do Curso de Estudos dos Problemas Brasileiros, em minha Faculdade , proferi, no dia 10 de Dezembro de 1976, uma preleção sobre "Os Roteiros da Democracia no Brasil". Quando pronunciei essa aula, eu não podia prever que, seis dias depois, a Ditadura nos daria, mais uma vez, a demonstração inequívoca de que ela ainda se achava muito longe dos meus descritos roteiros da Democracia. De fato, em 16 de Dezembro, agentes do II Exército arrombaram a porta e invadiram uma casa de residência, no bairro da Lapa, em São Paulo, e fuzilaram, incontinenti, as três pessoas que conversavam em torno da mesa, naquele recinto. Um comunicado oficial informou, friamente, que as pessoas assassinadas eram subversivos perigosos. Dias depois, em 31 de Dezembro de 1976, o General Presidente da República, em rede nacional de rádio e televisão, transmitiu sua Mensagem de Fim de Ano. "Discurso melancólico, um epitáfio!” , exclamou o Senador Paulo Brossard. "Não é uma verdadeira Mensagem de Fim de Ano: mais parece uma confissão de insolvência e de incapacidade de enfrentar as crises que outros povos, não mais aptos do que o nosso, souberam enfrentar sem recorrer a regimes de exceção, debelando-as sob o império da lei, e respeitando os direitos fundamentais da pessoa humana" (....) "Ao fim do discurso, a Nação só ficou sabendo que na opinião do Presidente, a Lei Falcão é muito boa, e que os brasileiros das grandes cidades votaram mal."
Comentando o discurso, o Deputado Federal Marcus Tito declarou: “É lamentável que não conste, do pronunciamento presidencial, nenhuma palavra relativa à distensão, nenhuma referência ao aperfeiçoamento do processo político. Na fala do Presidente, não logramos enxergar, para o horizonte institucional do País, qualquer referência à extinção das medidas de excepção." (....) "O ser humano, o cidadão, continuou sendo o grande ausente, o marginalizado, ausente no programa do Governo."(....) "O Presidente, em sua Mensagem , culpou a alta dos preços do petróleo, no mercado internacional, pelas dificuldades internas, na balança de pagamentos." (....) “Não se tomou nenhuma medida séria" — disse o Deputado —, "nada que merecesse credibilidade, para racionalizar o uso de combustíveis."!....) "Somente Deus poderá nos ajudar a sair das dificuldades em que emergimos nestes doze últimos anos, período em que um Governo detentor de instrumentos excepcionais faz lembrar as monarquias absolutistas, e se revelou incapaz de solucionar os problemas da Nação."
O presidente Nacional do MDB (Movimento Democrático Brasileiro), o Deputado Ulisses Guimarães, também, notou que o Presidente atribuiu a crise econômica do Brasil a fatores externos. Mas Ulisses comentou: "As Nações democráticas, num tempo curto, souberam superar os impasses, e dominaram ou reduziram substancialmente a inflação. Nesse mesmo período, a situação no Brasil se agravou sobremaneira, e a inflação atingiu o catastrófico e insuportável nível de cerca de cinqüenta por cento."
Faço este meu depoimento no dia de hoje, em Setembro de 1997, trinta anos depois dos fatos por mim agora relatados. Escrevo estas linhas, fundado nos documentos de meu arquivo. Vou conduzido por mil reminiscências, a evocar acontecimentos que conflagraram uma parte de minha vida. Interrompo a redação. Releio meu texto. Confesso que um receio me assalta. Terão, acaso, qualquer interesse, para a geração de hoje, estas insonsas anotações de fatos rechaçados, eventos já mergulhados nas brumas da desmemória coletiva? Não sei, mas o que quero revelar é que — em virtude, precisamente, de tais fatos — eu vinha sentindo em mim, desde meados de 1976, o fervilhar de uma multidão de idéias. Eu me perguntava: Não poderia eu dar uma contribuição pessoal — e eficiente — para a restauração da Democracia em meu País ? Fascinante, fascinante projeto!
Em 27 de Janeiro de 1977, Aldo Silva Arantes, Presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), foi barbaramente torturado, durante mais de dez horas, nos antros tenebrosos do DOI-CODI. Uma surda indignação abrasou a consciência nacional. Nas Faculdades, nos Ginásios, os estudantes do Brasil, de norte a sul, passaram a se manifestar bravamente, lançando seu revoltado protesto, declarando seu amor à liberdade. Em São Paulo, o ano de 1977 foi marcado pelas sucessivas truculências da polícia do Coronel Erasmo, praticadas contra Centros estudantis, com espancamentos, agressões graves, prisões. A violência da repressão atingiu seu auge por ocasião da reorganização da UNE (destroçada atrabiliariamente em 1964, e proibida de funcionar).
Pois bem, no dia 1° de Abril — 13° aniversário do Golpe Militar — o General Presidente da República decretou o recesso do Congresso Nacional! Na mesma ocasião, o Presidente baixou diversos decretos-leis, que alteraram a Constituição, introduzindo novas disposições sobre a composição do Poder Legislativo e sobre a estrutura e funcionamento do Poder Judiciário. Essas medidas passaram a ser chamadas "Pacote de Abril". Que aconteceu? Que motivos teriam levado o Governo a praticar mais essas violências? O próprio General Presidente, em pronunciamento dirigido à Nação, por uma rede de rádio e televisão, na noite do mesmo dia 1° de Abril, revelou as razões do fechamento do Congresso. Disse que seu ato era: "uma decorrência dos problemas que se suscitaram nestes últimos dias, com relação à reforma do Poder Judiciário. Esta reforma, de interesse de toda a Nação, constitui fator importante para o nosso desenvolvimento”. E prosseguiu: "Verificou-se a necessidade inicial de fazer-se uma emenda à Constituição Federal, consubstanciada em vários artigos, que alterasse a estrutura, e, por vezes, até a competência e outras normas relativas ao Poder Judiciário, que estão estabelecidas na Carta Magna." (....) "Por fim, em Novembro de 1976, a emenda foi enviada ao Congresso Nacional."(.. .. ) Infelizmente, a Oposição resolveu fechar a questão, impedindo que seus representantes no Senado e na Câmara votassem a favor da reforma. Adotou um procedimento que não se coaduna com o espírito democrático, que ela vive invocando.”(...) "A oposição é minoria. A grande maioria votou pela reforma. Mas a minoria prevaleceu. Prevaleceu no Congresso, porque a maioria não logrou obter, em favor da reforma, o quorum de votos exigido, para aprovação da emenda à Constituição." (....) "Eu me pergunto: O que devo fazer? Devo conformar-me com a atitude dessa ditadura minoritária? (....) "A Constituição Federal, no seu artigo 182, reconhece a validade do Ato Institucional n° 5. (....) "Agora é a oportunidade de se usar esse ato. De acordo com suas disposições, o Poder Executivo pode colocar o Congresso Nacional em recesso e, dessa forma, adquirir poderes legislativos. E foi o que eu fiz. Por ato complementar de hoje, o Congresso Nacional foi posto em recesso, e o Presidente da República passou a ter poderes legislativos. Eu usarei esses poderes, muito transitoriamente, não só para fazer a reforma do Poder Judiciário, como, também, para fazer as demais reformas de natureza política, que eu considero indispensáveis."
Maria Eugenia e eu, em nossa casa, vimos, pela televisão, o General Presidente pronunciar este fantástico discurso. "Ditadura da minoria”, afirmou o General. Por quê? Porque a maioria — apesar de maioria — não alcançara, na votação do Projeto do Executivo, o quorum constitucional de dois terços de votos. Em conseqüência, a minoria impusera a sua vontade. A esta imposição é que o Presidente apelidou de "ditadura". Acaso, não sabia o Presidente que aquela cláusula dos dois terços constituía, precisamente, uma barreira contra emendas estabanadas à Constituição? Não sabia o Presidente que essa cláusula era uma garantia de estabilidade da Constituição? Uma segurança de continuidade e permanência dos princípios consagrados na Carta Magna? Uma garantia de respeito pelos Direitos fundamentais das pessoas? O que o General Presidente não quis confessar foi que seu decreto, baixado pelos motivos invocados, não era senão um ato de força. Seu discurso foi uma peça escrachada de autocrata. Ao tomar conhecimento do fechamento do Congresso, o Deputado Federal Ulisses Guimarães, presidente nacional do MDB (Partido da Oposição), disse: "Grave e injusta sanção."
Toda a Oposição se retraiu, com medo de cassações. O setor econômico do País reagiu com desalento; os empresários de São Paulo preferiram o mutismo. A impressão dominante era a de que o ato do General Presidente constituía um balde de água gelada nas recônditas esperanças dos idealistas da Democracia, um claro sinal de que a Ditadura Militar estava firmemente disposta a permanecer. O Coronel Erasmo Dias, Secretário de Segurança Pública de São Paulo, proibiu "terminantemente, em todo o território do Estado, quaisquer manifestações públicas, incluindo passeatas, comícios, concentrações ou iniciativas semelhantes."
Mas, eis que os estudantes de minha Faculdade, no próprio dia 1° de Abril, estenderam uma enorme tarja negra no frontispício da Escola, e hastearam a bandeira do Brasil a meio pau. Estavam de luto, pelo fechamento do Congresso Nacional. Os universitários das Arcadas se reuniram em imensa assembléia. O Centro Onze de Agosto entrou em contato com outras entidades da Grande São Paulo. Os estudantes da PUC já estavam também concentrados, no mesmo espírito de protesto. E todos, em conjunto, elaboraram, assinaram e enviaram ao Conselho de Segurança Nacional, a sua "moção de repudio contra o fechamento do Congresso e o cerceamento das liberdades democráticas."
E, na noite de 28 de Abril de 1977, os estudantes das Arcadas "enterraram" a Constituição. O Jornal da Tarde do dia 29 descreveu o episódio: "Num pequeno caixão branco, de criança, ao som da marcha fúnebre e de uma antiga trova acadêmica, que fala da bravura daqueles que deixam "a folha dobrada” enquanto vão lutar por seus ideais, os estudantes da Faculdade de Direito enterraram a Constituição, num canteiro do Largo de São Francisco. Era um protesto contra as agressões à Lei Magna, e um apelo pela volta do Estado de Direito.”
"Os estudantes se reuniram no Pátio interno, dirigiram-se ao Monumento dedicado aos mortos do Movimento Constitucionalista de 1932, e de lá, carregando faixas que pediam a volta do Estado de Direito e declarando que a Constituição havia morrido, seguiram para a chamada Tribuna Livre, em frente da Faculdade." "Ninguém assistiu às aulas da Faculdade, nessa noite." "Todos ali estavam, naquela manifestação de apoio à convocação de uma nova Assembléia Constituinte. Mais do que isto: era esperado o pronunciamento do Professor Goffredo Telles, na Tribuna Livre." O Jornal do Brasil publicou a manchete: "Estudantes paulistas ao som de Chopin sepultam a Constituição", e noticiou, com grande destaque, o enterro da Constituição e do AI-5. Revelou que dezessete encapuzados, seguidos de uma bandinha de rua, tocando a Marcha Fúnebre, encabeçaram o cortejo fúnebre, que rumou para a Tribuna Livre, no Largo de São Francisco. O Diário Popular publicou ampla reportagem: "Com faixas onde se lia Faleceu a Constituição, Pelo Estado de Direito e Pela Constituinte, um grupo de alunos encapuzados entrou no Pátio das Arcadas, da Faculdade de Direito de São Paulo, iluminado por velas roxas, transportando um pequeno caixão de defunto, em alusão ao enterro da Carta. Em seguida, após pequeno passeio pelo Pátio, os alunos da Faculdade rumaram para o Largo de São Francisco e, em frente da Tribuna Livre, depositaram o féretro."
Na Tribuna, já se encontravam, além dos diretores do Centro Acadêmico XI de Agosto, "os representantes da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção de São Paulo, da Associação dos Advogados de São Paulo, e das lideranças de vários Centros Acadêmicos". Falaram muitos oradores. Recordo-me dos discursos eloqüentes de Mário Renato Miranda (que fora Presidente do Onze, no ano anterior) e de Paulo Eiró, líder político. Recordo-me da inspirada manifestação do estudante José Roberto Piza (que, anos mais tarde, veio a ser Presidente da OAB/SP). Pronunciei, de improviso, o discurso de encerramento. Hoje, ao rememorar estes fatos, eu já não mais me lembrava, ao certo, de minhas palavras. Mas acabo de encontrar, no Diário Popular de 29 de Abril de 1977, um extenso apanhado de meu pronunciamento. O que eu disse aos meus estudantes, naquela noite histórica, na Tribuna do Território Livre de nosso Largo de São Francisco, foi, em curto resumo, o seguinte:
"Nós queremos a ordem. Para nós, a ordem é a ordem do Estado de Direito. É a ordem jurídica, a ordem do respeito pelos direitos do cidadão, e pela liberdade sagrada das pessoas. Para nós, a ordem da Ditadura se chama desordem.” "Nós somos pela ordem, somos contrários à subversão. Para nós, subversivos são aqueles que violam a Constituição. Subversivos são aqueles que governam com Atos Institucionais, Atos contrários à Lei Magna, que é uma lei produzida pelo povo.” "A Constituição é obra do povo. Não toleramos que a Constituição seja agredida por Atos de Governos de Força.” "O Governo dos Atos Institucionais é Ditadura, e nós execramos todas as Ditaduras.” "Não nos enganarão, jamais, os ditadores. Não nos iludirão, jamais, aqueles que pretendem camuflar a Ditadura com artimanhas e fingimentos. Recusamos aceitar como verdade o que é mentira. Não toleramos a falsificação do sentido autêntico das palavras.” "Para nós, Ditadura se chama Ditadura; Democracia se chama Democracia.” "No canteiro de nosso Largo de São Francisco, deixamos enterrada a Constituição defunta — a Constituição que o ditador matou.” "Da sementeira deste Território Livre, do manancial de nossa eterna Academia, nasce o brado de um povo, pela Liberdade, pelo Direito, pela Justiça."
Em meio de aclamações e palmas, com fundo musical da Marcha Fúnebre, o féretro baixou à sepultura, em cova adrede preparada, no canteiro ao lado da Tribuna. Atirei sobre o pequeno caixão um punhado de terra. Pelotões da Polícia surgiram no Largo. Mas o comício estava encerrado. Os acadêmicos dispersaram. Nada mais aconteceu. Nada mais, naquela noite. Espancamentos e prisões de estudantes e operários, três dias depois, assustaram o País, por ocasião das manifestações do 1° de Maio.
Em protesto contra as violências da Polícia, oitenta mil universitários de São Paulo entraram imediatamente em greve. O Centro Acadêmico XI de Agosto , o Centro Acadêmico 22 de Agosto, o Diretório Central Alexandre Vannucchi Leme e os demais Diretórios Centrais de Estudantes da USP e da PUC, os representantes da Fundação Getúlio Vargas, da Faculdade de Comunicações Sociais Cásper Líbero, da Escola de Sociologia e Política, da Faculdade de Educação do ABC (de São Caetano do Sul), do Plenário de Pós Graduação, e de outras numerosas Escolas da Capital e da Grande São Paulo — convocaram um ATO PÚBLICO, para o dia 3 de Maio, às 9 horas da noite, no Salão Beta da Pontifícia Universidade Católica, na Rua Monte Alegre, em São Paulo. Objetivos do ATO: Clamar pela Imediata libertação dos estudantes e operários presos; pela extinção das torturas nas prisões, e pela anistia para os condenados políticos. No dia e hora designados, o prédio da PUC e as ruas adjacentes foram tomadas por imensa e rumorosa multidão, portando faixas e cartazes. Do Interior, em ônibus fretados pelos alunos, vieram representações de São Carlos (da USP e da Universidade Federal) ; de Sorocaba (da PUC); de Ribeirão Preto (da USP e de escolas particulares); de Campinas (da UNICAMP e da PUC) e de Araraquara (da UNESP). Estudantes, operários, gráficos, bancários, empregados de escritório, professores, intelectuais, artistas, toda aquela gente acorreu, irmanada num só gesto de solidariedade, indignação e revolta. A mesa que presidiu a sessão estava constituída pelos dirigentes dos principais Centros Acadêmicos e Diretórios Centrais de Estudantes; pela representante do Movimento Feminino pró-Anistia, e pelo presidente de um Diretório do MDB (Movimento Democrático Brasileiro). Moções numerosas foram apresentadas e aprovadas por aclamação. Lembro-me da manifestação do Deputado Estadual Alberto Goldman, que falou em nome do MDB. Disse ele que seu Partido se solidarizava com os estudantes e com todos os que, naquele momento, estavam demonstrando, intrepidamente, sua decisão de lutar pela volta à Democracia. Afirmou: "Nenhum setor social, isoladamente, conseguirá modificar a situação presente, mas todos os setores juntos poderão alcançar a grande e almejada vitória.” Depois desse momentoso Ato Público, a ebulição dos estudantes e dos trabalhadores perdurou durante semanas, nas Universidades do País e nos grandes centros industriais de São Paulo, Minas e Rio.
No Congresso Nacional, os fatos repercutiram intensamente. Na sessão do dia 5 de Maio de 1977, o Senador Gilvan Rocha, vice-líder do MDB, disse: “ O estado de inquietação em que se acha o País, e que levou as cabeças pensantes do Brasil a uma aparente apatia, está chegando aos limites da rutura. Estamos chegando ao fim de um ciclo histórico que só os desprovidos de sensibilidade não percebem."(....) "É preciso que não se superficialize a crise estudantil brasileira, que começa a se exteriorizar em manifestações como a de São Paulo." (....) "Confundir estas manifestações — que não são só de estudantes, mas do próprio espírito libertário de uma Nação jovem — com contestações anarquistas, é traumatizar o País.” (...) “A Nação não se faça de surda e perceba: os meninos estão gritando. Quando os jovens gritam numa família, numa sala da Universidade, numa praça da cidade ou num País, é preciso que não se lhes dê as costas, ou que não se lhes dê nas costas." Na sessão da Câmara, desse mesmo dia, o Deputado Alencar Furtado, líder da Oposição, afirmou: "Estudante é povo. Problema de estudante, a polícia não resolve. Como povo, estudante necessita de liberdade para viver. O Governo precisa ter olhos e ouvidos para enxergar e ouvir a Nação, nos seus reclamos e problemas. O estudante precisa ser ouvido. O estudante é idealismo, e quando milhares se reúnem, não o fazem à toa. O povo os aplaude. Os estudantes sensibilizam parentes, amigos, namoradas e namorados, colegas de estudo e de trabalho; sensibilizam seus professores; enfim, comovem o povo, que logo se sente solidário no clamor da juventude. O Governo não pode virar as costas aos estudantes — isto significaria virar as costas ao povo."
No dia 19 de Maio, — depois da vasta manifestação de rua dos dias anteriores — os Senadores Paulo Brossard e Teotônio Vilela estiveram na minha Faculdade. Vieram a convite do Centro Acadêmico XI de Agosto, para pronunciamentos sobre a sublevação da mocidade; sobre os rumos políticos a tomar, as campanhas a empreender, em nossa Pátria. Era presidente do Onze, o estudante Caio Marcelo de Carvalho Giannini ; vice-presidente, o estudante Ademilson Pereira Diniz. Sessão maravilhosa, assistimos naquela noite, no Salão Nobre de nossa Academia. Com objetividade, com pureza e patriotismo, discursaram os dois parlamentares, perante uma assembléia atenta e curiosa, feita de estudantes, políticos dos dois Partidos, Professores e intelectuais de todos os matizes.
O Senador Vilela — o primeiro a falar, e discorrendo livremente, sem recurso a nota alguma — convocou os estudantes para que viessem formar na legião dos que aderiram ao "Projeto Brasil” o seu projeto, produzido com a colaboração, não só dos mestres, mas, também, dos mais diversos setores e categorias do povo de nossa grande Nação. "Quem tem percorrido tanto este País, como eu nestes últimos anos, pode dar o testemunho de que não há discrepância, nem no sentimento, nem nas atitudes, relativa ao que deseja o nosso povo. Nosso povo parece estar reunido numa enorme Assembléia Nacional Constituinte, que só quer construir a Democracia do Brasil." Disse o Senador: "Os estudantes sacudiram o Brasil. Agora, todos só pensam em Democracia. A manifestação estudantil de quinta-feira foi a mostra de que uma geração, depois de treze anos, percebeu que as cousas precisam ser mudadas. A manifestação dos estudantes exprime uma opinião, e esta opinião é a opinião pública de todo o Brasil." O Senador Paulo Brossard falou em seguida. Com desenvoltura, discursou também de improviso. Iniciou sua fala dizendo: "Aí estão os escombros do regime de arbítrio. Sobre o entulho da Ditadura, haveremos de erguer o Brasil democrático.” “É preciso retornar ao regime da segurança e da ordem. Não há ordem sem lei, sem liberdade, sem a participação popular nas decisões do Governo. Nós mesmos é que temos que resolver nosso problema institucional e nosso problema econômico: temos que ficar certos de que ninguém vai resolver nossos problemas por nós." "Quando existem graves problemas econômicos e sociais, é claro que eles se refletem na política da Nação. Mas o fato de existirem, isto não autoriza o adiamento da democratização do País. Em verdade, o que vemos é que esses problemas se têm agravado de forma assustadora. Por quê? Exatamente porque o País se acha num regime em que o Governo faz o que bem entende, e no qual o Presidente não tem limites para a sua ação.” "Os dias da manifestação estudantil não foram dias quaisquer. Agora, no Brasil, os dias são diferentes, devido ao movimento dos moços. Mais que um movimento da juventude, a manifestação estudantil foi um dos fatos mais importantes do Brasil contemporâneo.”
Sentados no doutoral, com vista direta para a mesa e para a assembléia, Maria Eugenia e eu ouvimos os discursos dos Senadores, assistimos às manifestações ruidosas de aprovação e de entusiasmo — e nos impressionamos com as palavras inspiradas de meus estudantes, pronunciadas com beleza e emoção, ao encerrar o evento. Meu coração em alvoroço, minha mente em atividade, todo o meu ser vibrando, eu disse à minha mulher que eu estava tomado da convicção, cada vez mais viva, de que o movimento decisivo e invencível, para a implantação da Democracia em nossa Terra , teria que nascer de nossa Escola — de nosso Pátio predestinado, Pátio milagroso de nossas Arcadas.
Na madrugada do dia 4 de Junho, tropas de choque da Polícia Militar ocuparam a Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, para impedir que ali se realizasse o III Encontro Nacional de Estudantes. A Faculdade foi cercada por contingentes fortemente armados. Às 13 horas, quinhentos policiais, utilizando cães amestrados e bombas lacrimogêneas, ocuparam a Escola. Com emprego de violência, os militares prenderam e revistaram todos os estudantes, e os conduziram, com mãos erguidas sobre a cabeça, para o quartel do 5° Batalhão da Polícia Militar. Ao cair da noite, centenas de estudantes, de várias Faculdades da Capital mineira, fizeram uma passeata no centro da Cidade, aos gritos de "Liberdade! Liberdade!" e de "Soltem nossos presos!". Chegaram até a escadaria da Igreja de São José, sob o aplauso da população. Os motoristas dos carros, para mostrar solidariedade, acionaram, com vontade, as buzinas de seus automóveis. A Ordem dos Advogados de Brasília emitiu nota, em que declarou haver deliberado "reafirmar a imperiosa necessidade de restauração do Estado de Direito e conclamar os órgãos responsáveis pelo ensino a que se inspirem nos ideais de liberdade e solidariedade humana, devolvendo aos estudantes o direito de pugnar pelo aperfeiçoamento do ensino e de participar da vida pública do País.” No dia 15 de Junho, os estudantes estavam novamente nas ruas de São Paulo. No Brás, nos arredores da Estação Roosevelt (ponto de desembarque dos que vieram das Faculdades de Mogi das Cruzes, de Mauá e do ABC); no Parque D. Pedro II, no Largo da Concórdia, na Praça Fernando Costa, na Praça do Correio, no Largo de São Francisco, na Praça do Ouvidor, na Praça da Sé, na Praça João Mendes; nas ruas Senador Feijó, Quintino Bocaiúva, Barão de Paranapiacaba; nas ruas 15 de Novembro, Direita, São Bento, Líbero Badaró; no Vale do Anhangabaú, no Largo do Paissandú e, também, em regiões adiante da Avenida Paulista, nas cercanias da Faculdade de Medicina, na Avenida Dr. Arnaldo; por toda parte, os estudantes formaram grupos, realizaram comícios relâmpagos, discursaram para o povo, promoveram pequenas passeatas. Por toda parte, ouvia-se o brado dos estudantes: "Liberdade! Liberdade!", "Abaixo a repressão!"
A polícia exibiu gigantesco aparato de guerra, com batalhões de choque, apoiados em tanques, brucutus, carros de bombeiros, guinchos e guindastes, com cavalos e cachorros. Instalou suas bases em diversas regiões da Cidade. Destacamentos volantes percorriam ruas e praças. Pelotões armados investiram contra estudantes, contra comerciantes que baixavam suas portas, contra pessoas do povo que assistiam à manifestação, contra jornalistas que exerciam seu mister. Empregaram cassetetes elétricos. Agiram com extrema violência. Alguns estudantes, acossados, se abrigaram nas Igrejas de São Bento e de Santa Efigênia. Os soldados invadiram as Igrejas, e, no interior desses templos, agrediram estudantes e padres. Na rua 25 de Março, numerosos populares ouviam o que lhes estava sendo dito por um grupo de conhecidos atores de teatro e televisão. Um pelotão de policiais cercou, de súbito, aquele ajuntamento, e prendeu todo mundo. Foram levados para a Delegacia os seguintes artistas: Ruth Escobar, Ruthnéa Moraes da Silva, Renato Consorte, Yara Amaral Goulart, Yolanda Cardoso da Silva, Altair Lima, Benê Mendes, Sérgio Mamberti, Edney Giovenazzi, Paulo Roberto Maurício da Rocha, João Alfredo Bento, Eurico Júnior, Terezinha Lopes Siqueira e José Roberto de Azevedo Lopes.
Os estudantes de minha Faculdade realizaram, nesse dia, comícios e passeatas nas ruas e praças centrais da Cidade. Combatidos pela polícia, abrigaram-se no interior da Academia. Dois brucutus, seis carros da Rota, dois caminhões tanques dos bombeiros, um caminhão aberto com tropa de choque, quatorze carros rádio-patrulhas, três carros oficiais dos comandantes invadiram o Território Livre. Os estudantes estavam cantando o Hino Nacional. De repente, surgiu, à frente da força militar, do outro lado do Largo, o vulto inconfundível do Coronel Erasmo Dias, Secretário da Segurança. Imediatamente, nós o reconhecemos. Veio elegante, num terno escuro, de gravata. Os estudantes puzeram-se a gritar: "Abaixo a repressão! Abaixo a repressão!" O Coronel avançou dois passos, encarou os estudantes, que se apinhavam diante das três arcadas de entrada da minha Faculdade. Um brado partiu da Academia: "Assassino! Assassino!" Erasmo Dias apanhou o microfone do rádio-patrulha mais próximo. Sua voz ecoou no Largo: Os senhores têm dez minutos para evacuar a praça. Os estudantes voltaram a cantar o Hino Nacional.
O Diretor da Faculdade, Professor Rui Barbosa Nogueira, estava em sua sala, no 1° andar, acompanhado dos Professores Theophilo Cavalcanti e Costa Júnior. Ele se mantinha em comunicação telefônica permanente com o Governador do Estado, Dr. Paulo Egidio Martins. Num dado momento, após ouvir o Governador, o Diretor decidiu descer ao Pátio e falar aos estudantes. Emocionado, pediu um minuto de silêncio, e disse: “Atenção! Atenção! Dentro de instantes, o Secretário da Segurança, Coronel Erasmo Dias, vai dar a ordem de tomar a Faculdade à força!" Eu me achava no Pátio, com os estudantes. Alucinado, bradei: “Se isso acontecer, o Coronel estará praticando o crime de assalto à propriedade privada. A Faculdade é nossa casa. O Coronel não sabe que nossa Academia é entidade com personalidade jurídica própria, com patrimônio particular. Ele não sabe que nossa Escola completa, este ano, cento e cinqüenta anos de história. Invadir a Academia é agredir uma imensa família, espalhada por todo o território do Brasil. É ferir a Escola da Liberdade e da Justiça, berço de juristas, políticos, poetas e músicos." Os estudantes hastearam a Bandeira Nacional, no grande mastro central da Faculdade. Os dois caminhões-tanque subiram no calçadão. Seus poderosos canhões d´água atiraram jatos violentos de um líquido vermelho, sobre os estudantes, sobre o edifício, sobre a estátua do "Idílio", sobre os postes, arrancando as placas do trânsito, ensopando todo mundo, sujando tudo. Pelotões de choque, com máscaras e escudos, avançaram sobre os meninos, lançando gás lacrimogêneo e bombas de efeito. Os cassetetes vibraram sobre cabeças e costas, à esquerda e à direita, sem dó nem piedade. Estudantes foram brutalizados, esbofeteados, muitos acabaram enjaulados e levados embora. Os jornais relataram, em páginas inteiras, os fatos acontecidos naquela ocasião (veja, por exemplo, o Jornal da Tarde de 16 de Junho de 1977).
E eis que, dias depois, em 30 de Junho, ante a Nação atônita e consternada, o General Presidente cassou o mandato eletivo, e suspendeu, pelo prazo de dez anos, os direitos políticos de Alencar Furtado, Deputado Federal, líder supremo da Oposição em nossa Terra. Na Colômbia, em Cali, o selecionado do Brasil, no mês de Julho de 1977, se preparava para enfrentar o do Peru, nas eliminatórias da Copa do Mundo de 1978. "