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segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

O regime da afetação patrimonial na incorporação imobiliária. Uma visão crítica da lei. (Segunda Parte)


1. Da afetação patrimonial na incorporação imobiliária

1.1 – Em artigo anterior afirmamos que o objetivo final do regime de afetação é assegurar a recomposição imediata dos patrimônios individuais dos adquirentes de fração ideal vinculada à unidade autônoma no caso de quebra do incorporador, contrariando a redação falaciosa do enunciado legal que dispõe ter a afetação patrimonial o objetivo de garantir a consecução da incorporação e o de entregar as unidades imobiliárias aos adquirentes.

Dissemos, ainda, que da forma como foi introduzido no Direito positivo brasileiro o regime de afetação inverteu a concepção doutrinária para privilegiar o interesse do mercado imobiliário em detrimento da proteção patrimonial dos adquirentes e que, ao retirar o caráter compulsório do instituto, já em seu artigo inaugural, a Lei nº 10.931/04 destituiu-se de eficácia jurídica para transformar-se em declaração de propósitos e ao patrimônio de afetação em mero instrumento de marketing comercial.

Concluímos que a referida lei foi promulgada com a pretensão de redimir a incorporação imobiliária e conferir à atividade incorporativa um instrumento infalível, com o pressuposto de que sua adoção seria suficiente para eliminar o risco de insucesso nos empreendimentos e que essa pretensão se revela, desde logo, nos dispositivos permissivos de constituição do patrimônio de afetação a qualquer tempo e de patrimônios separados por blocos nos conjuntos de edificações, situações que demandarão a partilha judicial entre os adquirentes, credores privilegiados e massa falida de bens e direitos parcialmente afetados frustrando aquele objetivo da recomposição patrimonial imediata.

1.2 – Essa pressuposta suficiência está ratificada na própria estrutura da norma legal. Dos seis artigos colados à Lei nº 4.591/64, dois cuidam da constituição do patrimônio de afetação e seus efeitos (31–A e B), um cuida das obrigações do incorporador (31–D), um outro autoriza a fiscalização externa (31–C) e o quinto deles trata de sua extinção (31–E). Somente o último desses artigos (31–F) trata especificamente de procedimentos jurídicos, judiciais, contábeis, financeiros e operacionais necessários para fazer valer os direitos dos adquirentes e possibilitar a recuperação patrimonial em caso de quebra do incorporador.

2. Dos efeitos da falência ou insolvência civil do incorporador

2.1 – Repetindo a norma legal, também dissemos que a decretação da falência ou insolvência civil do incorporador não produzirá qualquer efeito quanto ao patrimônio afetado que não integrará a massa concursal.

Na realidade, essa amplitude sugerida pela lei não condiz com o regime vigente. De fato, o patrimônio afetado não integrará a massa concursal e, nesse sentido restrito, estará protegido dos efeitos da quebra do incorporador. No mais, o patrimônio de afetação sofrerá todos os seus efeitos, a iniciar pela paralisação temporária ou definitiva das obras e a culminar pela inevitável desvalorização dos bens e direitos que o compõem.

2.2 – Importa verificar, então, se os procedimentos dispostos no artigo 31-F da Lei nº 4.591/64 são claros, eficazes e suficientes para alcançar o objetivo final do regime e assegurar de imediato a efetiva recomposição dos patrimônios individuais dos adquirentes.

Aqui, a imprevidência do legislador salta aos olhos e todo o processo de intervenção dos adquirentes sobre os bens e direitos integrantes do patrimônio de afetação e de conseqüente realização desses ativos é tratado de forma geral, sem que a lei forneça ou indique os procedimentos e meios específicos e apropriados para a efetivação das deliberações. Essa imprevidência trará insegurança sobre a validade jurídica e sobre a execução do quanto deliberado, ensejará sua contestação judicial e, além disso, permitirá a desvalorização dos ativos patrimoniais em prejuízo dos adquirentes, dos credores da massa e da massa falida, conforme veremos em seguida.

3. Dos procedimentos na falência ou insolvência civil do incorporador

3.1 – Da assembléia geral. Decretada a falência ou insolvência civil do incorporador manda a lei que os adquirentes realizem, no prazo de sessenta dias, uma assembléia geral para ratificar o mandato ou eleger novos membros da Comissão de Representantes, instituir o condomínio da construção e deliberar sobre os termos da continuação da obra ou da liquidação do patrimônio de afetação.

3.2 – A competência para a convocação é da Comissão de Representantes, ou, na falta desta, de um sexto dos titulares de frações ideais, da instituição financiadora, quando houver financiamento para a construção, podendo ser determinada pelo juiz prolator da decisão da falência ou insolvência.

Não há dispositivo aplicável à hipótese de ausência de convocação ou de instalação da assembléia no prazo legal ou de competência alternativa para efetuar a convocação. Entendemos que, depois de transcorridos os sessenta dias estabelecidos pela norma legal qualquer interessado poderá requerer ao juiz da falência que determine a realização da assembléia nos sessenta dias seguintes e, nessa hipótese, a convocação será efetuada por edital.

Da mesma forma, a ausência de dispositivos que indiquem prazos e formas para a convocação é absoluta e suficiente para acarretar a nulidade da assembléia realizada sem a observância de formalidade essencial para sua validade[1], viciar a vontade coletiva e invalidar todas as suas deliberações. Na falta de disposição legal, entendemos que deverão ser observadas as disposições relativas à convocação para a assembléia dos contratantes da construção condominial, que requer “carta registrada ou protocolo, com antecedência mínima de cinco dias para a primeira convocação, e mais três dias para a segunda, podendo ambas as convocações ser feitas no mesmo aviso”[2].

3.3 – O dispositivo legal[3] determina que as deliberações dessa assembléia sejam aprovadas por maioria simples, dois terços dos votos dos adquirentes ou maioria absoluta. Decorre da interpretação sistêmica do dispositivo que o quorum mínimo para a instalação da assembléia corresponde a mais de metade do total de adquirentes de unidades autônomas, não havendo alternativa de instalação ou deliberação quando não alcançado esse quorum mínimo.

3.4 – Da realização dos ativos. Ultimada a assembléia geral, haverá a realização de ativos patrimoniais, em trinta dias, na hipótese da liquidação, por venda das unidades condominiais e, em sessenta dias, tanto na continuidade quanto na liquidação do patrimônio de afetação, por venda em leilão público das unidades não comercializadas pelo incorporador.

A venda direta ou por leilão público das unidades de um empreendimento imobiliário mal sucedido não pode ser encarada com otimismo. Parece evidente que somente o investidor interessado na conclusão das obras, portanto incorporador ou construtor com o justificado propósito de obtenção de lucros, fará essa aquisição.

O patrimônio individual do adquirente, assegurado pelo patrimônio de afetação, corresponde em geral ao valor efetivamente pago pela fração ideal do terreno e pelas acessões construídas, na proporção do coeficiente atribuível à respectiva unidade.

Ocorre que a desvalorização desses ativos será inevitável, a começar pelo terreno que será transmitido pelo valor unitário da área remanescente, desconsiderado o fracionamento decorrente da incorporação. Ou seja, esse investidor fará a aquisição do terreno em sua integralidade remanescente, destituído do lucro que o incorporador pretendia auferir com seu fracionamento e que, de fato, auferiu em relação às unidades efetivamente comercializadas, com a conseqüente redução do valor patrimonial, ainda que mantido seu valor de mercado. Da mesma forma, as acessões construídas serão avaliadas, adquiridas ou arrematadas pelo valor de sua utilidade comercial, sem qualquer correspondência com o montante de recursos investidos ou com a proporção de obras realizadas.

Trata-se, portanto, de um sistema autofágico. Os mesmos ativos que serão alienados para a apuração dos recursos destinados ao pagamento das obrigações, aos reembolsos previstos na lei e para o pagamento dos adquirentes, sofrerão inevitável desvalorização para possibilitar a alienação reduzindo o montante dos recursos apurados para os pagamentos e impossibilitando a recomposição integral do patrimônio dos adquirentes.

3.5 – A imprevidência da norma e a ausência de dispositivos legais compatíveis com a gravidade do evento danoso e com importância dos direitos que o regime de afetação se dispõe a proteger são claras e perceptíveis. Porém, somente alcançarão visibilidade plena quando ocorrer uma quebra e se fizer necessário sua aplicação para a recomposição dos patrimônios individuais dos adquirentes.

Aliás, ainda durante a vigência da Medida Provisória nº 2.221, de 04 de setembro de 2001, o Ilustre Advogado Dr. Marcelo Terra já intuía e alertava sobre os defeitos estruturais do regime:


“O conjunto da obra é reconhecidamente ruim, mas, infelizmente, essa intuição somente será comprovável se houver o sinistro, isto é se houver sua aplicação prática.”[4]


4. Conclusão

De todo o acima exposto, ficou claro que o regime da afetação nos termos em que está disposto na Lei nº 10.931/2004 não é suficiente para alcançar seu objetivo final e garantir a recomposição dos patrimônios individuais dos adquirentes, no caso de quebra do incorporador.

A nosso ver, esse objetivo somente será alcançado através de algumas mudanças radicais na lei, a saber: (a) constituição compulsória do patrimônio de afetação nas incorporações, podendo o incorporador optar, em caráter irrevogável, por não submeter o empreendimento ao regime de afetação, assim declarando no memorial de incorporação e ficando obrigado a informar essa opção nos anúncios, impressos, publicações, propostas, contratos, referentes ao empreendimento; (b) constituição obrigatória de reserva legal mediante depósito em conta bancária específica e remunerada do valor referente ao preço de alienação das frações ideais de terreno de cada unidade vendida até a conclusão do empreendimento, que poderá ser utilizada para a recomposição patrimonial dos adquirentes ou consecução do empreendimento, nas condições estabelecidas pela lei; (c) inclusão de procedimentos jurídicos, judiciais, contábeis, financeiros e operacionais específicos e suficientes para fazer valer os direitos dos adquirentes e possibilitar a recuperação patrimonial em caso de quebra do incorporador.

Notas
[1] Art. 166, V, do Código Civil Brasileiro.
[2] Art. 49, § 2º da Lei nº 4591/64.
[3] Art. 31-F, § 1 da Lei nº 4591/64.
[4] Afetação da incorporação imobiliária. Uma necessária correção de rumo. Boletim Eletrônico IRIB nº 1020, de 10/02/2004.