terça-feira, 18 de junho de 2024

Breve nota sobre a celebração do contrato por instrumento particular na alienação fiduciária


[*]Mauro Antônio Rocha


O CNJ tem competência constitucional para alterar a legislação vigente, vedar a celebração de contratos de alienação fiduciária por instrumento particular e o acesso de títulos ao registro imobiliário?




Depois de reconhecer a validade de norma administrativa do TJ/MJ que restringira o registro "dos atos e contratos relativos à alienação fiduciária de bens imóveis e negócios conexos" apenas aos firmados por escritura pública "ou instrumento particular, desde que, neste último caso, seja celebrado por entidade integrante do SFI - Sistema de Financiamento Imobiliário, por Cooperativas de Crédito ou por Administradora de Consórcio de Imóveis" o Conselho Nacional de Justiça decidiu, nos autos do Pedido de Providências 0008242-69.2023.2.00.0000, vedar "a celebração de ato particular, com os efeitos de escritura pública, por qualquer outro agente não integrante do SFI, pois os dispositivos legais acima transcritos, normas específicas e excepcionais não revogaram a regra geral do Direito Privado, consagrada no art. 108 do Código Civil, quanto à essencialidade da escritura pública para validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário-mínimo vigente no país."

Para conferir eficácia à decisão determinou a alteração do Provimento CNJ 149, de 30/8/23 e a adequação dos normativos das corregedorias gerais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, que passarão a vigorar, no prazo de trinta dias, acrescido do disposto no Capítulo VI, do Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ para o Foro Extrajudicial - da seguinte forma:
CAPÍTULO VI
Da alienação fiduciária em garantia sobre imóveis
Seção I do título

Art. 440 - AN. A permissão de que trata o art. 38 da 9.514/97 para a formalização, por instrumento particular, com efeitos de escritura pública, de alienação fiduciária em garantia sobre imóveis e de atos conexos, é restrita a entidades autorizadas a operar no âmbito do Sistema de Financiamento Imobiliário - SFI (art. 2º da lei 9.514/97, incluindo as cooperativas de crédito. Parágrafo único. O disposto neste artigo não exclui outras exceções legais à exigência de escritura pública previstas no art. 108 do Código Civil, como os atos envolvendo; Administradoras de Consórcio de Imóveis (art. 45 da lei 11.795, de 8/10/08); Entidades integrantes do Sistema Financeiro de Habitação (art. 61, § 5º, da lei 4.380, de 21/8/64".
Não se encontrará na decisão comentada razões efetivamente jurídicas que a justifiquem e o argumento nuclear acolhido (toda escritura pública confere segurança jurídica e todo instrumento particular insegurança jurídica) prefigura-se destituído de comprovação fática minimamente aceitável, além de resultar desestruturado pela própria decisão que transfere a "insegurança jurídica" do instrumento particular para a 'qualidade' das partes contratantes:
"A respeito da atribuição de efeitos de escritura pública a instrumento particular, não se pode olvidar a importância e imprescindibilidade da tutela pública em negócios privados para conferir-lhes juridicidade e autenticidade a qual se revela pela presença nesses atos jurídicos, de instituições financeiras integrantes do Sistema de Financiamento Imobiliário."

A verdade é que r. decisão afronta diretamente o espírito da lei e a intenção seguidamente reiterada pelo legislador de conferir aos negócios imobiliários celeridade, simplicidade, constituição descomplicada, custo reduzido e caráter satisfativo.

Nesse sentido, a redação original da lei 9.514/97 admitiu a utilização do instrumento particular nas operações celebradas com pessoa física, afastando - expressamente - a limitação prevista no art. 134, II do CC (art. 108, do código vigente):

Art. 38. Os contratos resultantes da aplicação desta lei, quando celebrados com pessoa física, beneficiária final da operação, poderão ser formalizados por instrumento particular, não se lhe aplicando a norma do art. 134, II, do CC.
Já em 2001, para contornar a interpretação enviesada de alguns autores e a resistência dos registradores de imóveis, a redação do art. 38 da lei foi alterada pela MP 2.223 de forma a arrolar os contratos abrangidos pela exceção legal, inclusive "aqueles constitutivos ou translativos de direitos reais sobre imóveis" e explicitar a não aplicação da regra geral do Código Civil, passando a viger com o seguinte texto:

Art. 38.  Os contratos de compra e venda com financiamento e alienação fiduciária, de mútuo com alienação fiduciária, de arrendamento mercantil, de cessão de crédito com garantia real e, bem assim, quaisquer outros atos e contratos resultantes da aplicação desta lei, mesmo aqueles constitutivos ou translativos de direitos reais sobre imóveis, poderão ser celebrados por instrumento particular, a eles se atribuindo o caráter de escritura pública, para todos os fins de direito, não se lhes aplicando a norma do art. 134, II, do Código Civil.
Os mesmos motivos exigiram duas alterações no referido artigo 38 durante o ano de 2004, para ajustes e atribuição textual aos atos e contratos resultantes da aplicação da lei 9.514 do caráter de escritura pública para todos os fins de direito. A primeira delas, pela lei 10.931, em 2/8/04 e a segunda, pela lei 11.076, de 30/12/04, advindo a redação ainda vigente:

Art. 38. Os atos e contratos referidos nesta Lei ou resultantes da sua aplicação, mesmo aqueles que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis, poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública. 
Se é verdade que a redação imperfeita do vigente do art. 38 suprimiu - de forma atécnica e indevida - a parte que atribuía aos contratos referidos o caráter de escritura pública para todos os fins de direito, não há na evolução da norma em questão, nem se depreende da leitura daqueles dispositivos, qualquer justificativa para o entendimento ou interpretação que permita pressupor que a forma plúrima elegida na origem tenha sido escamoteada pelo legislador ou limitada a instrumentos provindos do mercado financeiro.

É relevante destacar que o CNJ detém competência administrativa para fiscalizar e normatizar o Poder Judiciário e, por via de consequência, fiscalizar os serviços notariais e registrais, que por sua vez, estarão obrigados a cumprir as normas técnicas dali emanadas, de tal forma que. a decorrido o prazo estipulado no provimento minutado que integra a decisão referida, restará vedado o acesso ao registro imobiliário dos instrumentos públicos - ainda que expressamente admitidos pela lei de regência da alienação fiduciária de bem imóvel.

Da mesma forma, é pertinente frisar que falta ao CNJ competência constitucional para alterar a legislação vigente, que a decisão acima transcrita contraria o ainda vigente art. 38 da lei 9.514/97 e que, ao vedar o acesso do cidadão ao registro imobiliário, confronta diretamente direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição Federal.

Finalmente, a decisão merece reparos sendo pertinente ponderar que não cogitou o legislador do art. 38 da lei 9.514 de revogar a regra geral do Direito Privado (art. 108 do Código Civil) e, sim, de estabelecer a exceção prevista em lei e admitida pelo dispositivo legal. Ademais, conforme já aclarado, a norma administrativa provinda do CNJ pode vedar ao agente público que proceda ao registro dos títulos apresentados em desacordo com o decidido, mas não deveria - em respeito ao princípio constitucional da legalidade - obstar "a celebração de ato particular, com os efeitos de escritura pública, por qualquer outro agente não integrante do SFI".


Mauro Antônio Rocha
Advogado especializado em Direito Imobiliário, Notarial, Registral, Crédito e Garantias Imobiliárias.
Presidente da AD NOTARE - Academia Nacional de Direito Notarial e Registral.

Publicado no Boletim MIGALHAS 5873, de 18/06/2024

segunda-feira, 3 de junho de 2024

Da responsabilidade do fiduciário pela dívida condominial na alienação fiduciária de bem imóvel em garantia.


Mauro Antônio Rocha [*]


O STJ faz audiência pública para tentar definir a responsabilidade de fiduciário e fiduciante pelo pagamento de despesas condominiais devidas durante o prazo contratual da alienação fiduciária.


1. Na segunda-feira (03/06) será realizada a audiência pública convocada pelo Ministro Antonio Carlos Ferreira, Relator do Resp. nº 1.929.926/SP afetado pela Quarta Turma à Segunda Seção do STJ para pacificação do tema e “formar precedente, embora não qualificado como repetitivo, sobre a (im)possibilidade de penhora do imóvel objeto de alienação fiduciária em garantia no curso de execução de débitos condominiais”.

Cumpre ressaltar que o Ministro Antonio Carlos Ferreira, antes da magistratura, foi advogado e diretor jurídico da Caixa Econômica Federal, participou dos estudos e elaboração da Lei nº 9.514/1997, assim como da implantação da alienação fiduciária em garantia no mercado de crédito imobiliário e desponta como especialista na matéria, de forma que a audiência proposta denota a adoção de um interessante viés democrático na análise e enfrentamento da controvérsia jurídica.

O quadro de entidades habilitadas – siglas representativas dos diferentes setores envolvidos (AABIC, ABADI, ABMI, FEBRABAN, ANACON, SECOVI, ABECIP, ABRAINC, SIPCES e SECOVI) – e a destacada qualificação profissional dos nomeados para a representação confirmam a relevância econômica e social da questão controvertida.

Estranhamente, dentre inúmeras instituições acadêmicas dedicadas ao estudo, pesquisa e difusão do conhecimento nas áreas de direitos consentâneos ao condominial e imobiliário, somente a Academia Nacional de Direito Notarial e Registral – AD NOTARE está habilitada e será representada por seu Diretor Dr. Marcus Vinicius Kikunaga.

2. No mérito, o Tribunal pretende firmar entendimentos acerca da responsabilidade – temporal e patrimonial – do credor fiduciário e do fiduciante pelo pagamento das despesas condominiais e, consequentemente, das demais despesas de natureza propter rem, devidas no decurso do prazo contratual de financiamento, empréstimo ou parcelamento de preço.

Do ponto de vista temporal, está assentado que a obrigação de pagamento dessas despesas e encargos durante a vigência do contrato de alienação fiduciária é do fiduciante – assim o determina o § 8º do art. 27 da Lei nº 9.514/1997. De igual forma, indiscutível que a obrigação de pagamento dos encargos devidos até a data da contratação é, evidentemente, do fiduciário, assim como os valores incidentes a partir da data da imissão na posse direta do bem por efeito de realização da garantia, conforme dispõem o artigo 1336, I e o parágrafo único do art. 1.368-B do Código Civil vigente.

Não há dúvida, também, de que os valores relativos aos encargos do imóvel, assim considerados “os prêmios de seguro e os encargos legais, inclusive tributos e contribuições condominiais” que recaiam ou venham a recair sobre o imóvel, atribuídos ao fiduciante e não pagos, serão apurados para a composição do valor total da dívida garantida pela alienação fiduciária e para a determinação do valor mínimo de venda do imóvel em segundo leilão, de forma que serão – sempre – suportados direta ou indiretamente pelo fiduciante.

A controvérsia, portanto, reside – exclusivamente – na determinação da parte legitimada como réu das ações de cobrança e execução e da responsabilidade patrimonial dos contratantes.

3. O art. 23 da Lei nº 9.514/1997 dispõe que o registro do contrato serve de título para a constituição da propriedade fiduciária.

Do registro do contrato alienação fiduciária de bem imóvel “emergem direitos reais concorrentes, antagônicos e indissociáveis: a propriedade fiduciária – que se consubstancia na transmissão da propriedade resolúvel e da posse indireta ao credor fiduciário – e o direito real de aquisição que defere ao fiduciante, mantido na posse direta, o direito de reaver a propriedade do bem mediante pagamento da dívida contraída” .

Portanto, a alienação fiduciária em garantia torna o fiduciário titular da propriedade resolúvel e possuidor indireto da coisa e o fiduciante possuidor direto e titular do direito real de reaquisição do bem.

O Código Civil, ao tratar do condomínio edilício, dispõe no art. 1.345 que “o adquirente de unidade responde pelos débitos do alienante, em relação ao condomínio, inclusive multas e juros moratórios”, atribuindo a responsabilidade do pagamento de dívidas condominiais ao titular do direito real, isto é, ao proprietário do bem imóvel, independentemente de qualquer limitação legal ou contratual.

4. A redação original da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997 não trouxe dispositivos para determinar obrigações ou responsabilidades pelo pagamento de despesas condominiais, tributos e demais encargos incidentes sobre o imóvel objeto da garantia, ficando tais questões a cargo das cláusulas e condições contratuais.

No entanto, já no primórdio houve a inclusão do parágrafo 8º ao artigo 27 da lei (inicialmente pela Medida Provisória nº 2.223/2001, depois pela Lei nº 10.931/2004) para dispor sobre a responsabilidade – contratual – do fiduciante “pelo pagamento dos impostos, taxas, contribuições condominiais e quaisquer outros encargos que recaiam ou venham a recair sobre o imóvel, cuja posse tenha sido transferida para o fiduciário, nos termos deste artigo, até a data em que o fiduciário vier a ser imitido na posse”.

Recentemente, norma de idêntico teor foi incluída ao art. 24 da lei pela Medida Provisória nº 1.162/2023, convertida na Lei 14.620/2023 e derrogada pela Lei nº 14.711/2024 – denotando a preocupação das instituições de crédito imobiliário com a matéria, com a seguinte redação:

§ 2º Nos contratos firmados com cláusula de alienação fiduciária em garantia, caberá ao fiduciante a obrigação de arcar com o custo do pagamento do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana - IPTU incidente sobre o bem e das taxas condominiais existentes.

5. Posteriormente, por influência direta das entidades representativas do crédito imobiliário, a Lei nº 13.043/2014 incluiu ao Código Civil o art. 1368-B e seu parágrafo único dispondo sobre a responsabilidade dos contratantes de alienação fiduciária em relação às despesas consideradas propter rem e para determinar que o credor fiduciário “passa a responder pelo pagamento dos tributos sobre a propriedade e a posse, taxas, despesas condominiais e quaisquer outros encargos, tributários ou não, incidentes sobre o bem objeto da garantia, a partir da data em que vier a ser imitido na posse direta do bem.”

A redação propositalmente confusa da norma teve a pretensão de afastar a responsabilidade das instituições financeiras pela responsabilidade ou pagamento – principalmente – das quotas condominiais inadimplidas durante a constância do contrato de financiamento imobiliário, para que fossem exigidas pelos condomínios diretamente dos fiduciantes em ações de cobrança próprias.
6. Submetida a questão ao Judiciário emergiu a decisão relatada pela Ministra Nancy Andrighi, no Resp 2.036.289/RS, tornada paradigmática e fundada no seguinte entendimento:

“41. Desse modo, quando o art. 1.345 do CC/2002 atribui a responsabilidade pelo pagamento dos débitos condominiais ao titular de direito real, é evidente que a norma objetiva, na maioria das vezes, responsabilizar o proprietário, com o fim de que ao menos o imóvel possa servir para a satisfação do crédito, pois necessariamente integra o seu patrimônio.

42.Não obstante, é perfeitamente possível que o legislador atribua essa responsabilidade a outro sujeito que não o proprietário, com a finalidade de privilegiar outros interesses em detrimento do condomínio, como fez nos arts. 1.368-B, parágrafo púnico do CC/2002 e 27, § 8º, da Lei nº 9.514/1997, atribuindo-a ao devedor fiduciante enquanto na posse direta do imóvel alienado fiduciariamente, resguardando principalmente a garantia do credor fiduciário.

43. De fato, ao prever que o devedor fiduciante responde pelas despesas condominiais, a norma estabelece que seu patrimônio é que será usado para a satisfação do referido crédito, não incluindo, portanto, o imóvel alienado fiduciariamente, que integra o patrimônio do credor fiduciário.

44. Por essa razão, na espécie, aplica-se a tese de que “não se admite a penhora do bem alienado fiduciariamente em execução promovida por terceiros contra o devedor fiduciante, haja vista que o patrimônio pertence ao credor fiduciário, permitindo-se, contudo, a constrição dos direitos decorrentes do contrato de alienação fiduciária” (Resp 1.677.079/SP, 3ª Turma, DJe 1/10/2018).” (Grifo do autor)

Dessa forma, a confusa redação da norma cumpriu seu papel diversionista visto que não há no aludido dispositivo qualquer previsão de responsabilidade do fiduciante pelas despesas condominiais (o que não se confunde com a obrigação contratual de pagamento dessas despesas), assim como, a tese mencionada não admite a penhora do imóvel exclusivamente em execução promovida por terceiros contra o devedor fiduciante (o que também não se confunde com a penhora resultante de ação de cobrança de despesas condominiais, de natureza propter-rem).

7. Finalmente, no final do ano passado, em julgamento do Resp 2.059.278/SC a Quarta Turma retornou a questão aos seus trilhos certos ao decidir pela possibilidade de penhora do bem imóvel alienado fiduciariamente, tendo em vista a natureza da dívida condominial.

Com extrema clareza o voto vencedor que deu provimento ao recurso, proferido pelo Ministro Raul Araújo e acompanhado pelos Ministros João Otávio de Noronha, Maria Isabel Gallotti e Antonio Carlos Ferreira afastou a negativa de penhora decorrente das decisões anteriores, reconhecendo que a solução anterior não se ajusta quando o credor é o próprio condomínio:

“É que relativamente ao próprio condomínio-credor, dada a natureza propter rem das despesas condominiais, nos termos do art. 1.345 do Código Civil de 2002, haverá necessidade de se promover a citação, na ação de execução, também do credor fiduciário no aludido contrato para que venha integrar a lide, possibilitando ao titular do direito previsto no contrato de alienação fiduciária quitar o débito condominial existente e, em ação regressiva, tentar obter do devedor fiduciante o retorno desses valores.”

No mesmo sentido e com a mesma clareza dispõe a ementa oficial do acórdão:

“1. As normas dos arts. 27, § 8º, da Lei nº 9.514/1997 e 1.368-B, parágrafo único, do CC/2002, reguladoras do contrato de alienação fiduciária de coisa imóvel, apenas disciplinam as relações jurídicas ente os contratantes, sem alcançar relações jurídicas diversas daquelas, nem se sobrepor a direitos de terceiros não contratantes, como é o caso da relação jurídica entre condomínio edilício e condôminos e do direito do condomínio credor de dívida condominial, a qual mantém sua natureza jurídica propter rem.

2. A natureza propter rem se vincula diretamente ao direito de propriedade sobre a coisa. Por isso, se sobreleva ao direito de qualquer proprietário, inclusive do credor fiduciário, pois este, na condição de proprietário sujeito à uma condição resolutiva, não pode ser detentor de maiores direitos que o proprietário pleno.

3. Em execução por dívida condominial movida pelo condomínio edilício é possível a penhora do próprio imóvel que dá origem ao débito, ainda que esteja alienado fiduciariamente, tendo em vista a natureza da dívida condominial, nos termos do art. 1.345 do Código Civil de 2002.

4. Para tanto, o condomínio exequente deve promover também a citação do credor fiduciário, além do devedor fiduciante, a fim de vir aquele integrar a execução para que se possa encontrar a adequada solução para o resgate dos créditos, a qual depende do reconhecimento do dever do proprietário, perante o condomínio, de quitar o débito, sob pena de ter o imóvel penhorado e levado à praceamento. Ao optar pela quitação da dívida, o credor fiduciário se sub-roga nos direitos do exequente e tem regresso contra o condômino executado, o devedor fiduciante.

5. Recurso especial provido. “


* 8. Apesar da precisão, nos parece que a ementa merece alguns reparos quanto ao disposto no parágrafo final. Pelo que se depreende, ao contrário do que ali consta, o condomínio exequente deve promover a citação do credor fiduciário e proprietário do imóvel (condômino e réu) e, também, do fiduciante (litisconsorte necessário passivo). Na condição de proprietário e condômino o credor fiduciário deverá efetuar o pagamento da dívida, sub-rogando-se nos direitos do condomínio exequente, inclusive ao direito de regresso contra o fiduciante, sob pena de praceamento do imóvel, inexistindo a “opção pela quitação da dívida” ali tratada.

9. Pelo exposto, entendemos pela possibilidade de penhora em execução de dívida condominial de imóvel objeto da garantia fiduciária, devendo o proprietário fiduciário (credor) ser citado para a ação, juntamente com o fiduciante (litisconsorte necessário passivo).



Mauro Antônio Rocha
Advogado especializado em Direito Imobiliário, Notarial, Registral, Crédito e Garantia Imobiliárias.
Presidente da AD NOTARE – Academia Nacional de Direito Notarial e Registral.



Publicado no Boletim MIGALHAS 5863, de 03/06/2024

terça-feira, 12 de março de 2024

Escrow Account – instrumento de segurança jurídica máxima ao negócio imobiliário. (Parte I)


Eduardo Moreira Reis e Mauro Antônio Rocha


Considerações iniciais sobre o ‘escrow account’, instrumento jurídico-financeiro incluído na Lei 8.935/1994 pelo Marco Legal das Garantias para conferir máxima segurança jurídica ao adquirente de imóvel.

1. Introdução

A aquisição de propriedade imobiliária no Brasil pode ser considerado um negócio de risco que expõe pessoas nacionais e estrangeiras à insegurança jurídica e ao desgaste emocional e psicológico, por demandar do investidor, ou adquirente de imóvel para utilização própria, razoável conhecimento das inúmeras variáveis estruturais e conjunturais do sistema jurídico brasileiro, do qual decorre ser o registro do título finalizado em seu nome a melhor – mas não definitiva – garantia.

Entretanto, é da praxe do mercado que nos negócios de compra e venda de imóveis celebrados sem financiamento o pagamento integral do preço ao vendedor seja realizado até o momento da lavratura da escritura pública, transferência da posse e entrega das chaves – independentemente do efetivo registro do título – antes, portanto, da transferência da propriedade.

Por conta de tal necessidade de efetuar o pagamento do preço, a incerteza sobre o registro e efetiva aquisição da propriedade, esse período – entre a assinatura da escritura e o registro do título – será profundamente estressante para o comprador. Além disso, a demora na superação de eventuais óbices ao registro pode representar uma trava ao negócio imobiliário, impedindo a circulação de riquezas e o desenvolvimento econômico do país.

Outro fator inibidor de negócios imobiliários é a existência de dívidas do alienante, que podem colocar em risco a aquisição ou resultar em penhoras do imóvel, débitos que em muitos casos poderiam ser quitados ou renegociados de forma vantajosa com parte do próprio preço de venda.

A observação sistemática realizada pelos autores, em muitos anos de prática da advocacia imobiliária e acompanhamento de numerosos negócios que originaram litígios e distratos, não atingiram os objetivos visados pelo comprador, tiveram seus efeitos retardados no tempo ou não foram concluídos por vicissitudes dos sistema registral brasileiro e em decorrência da interpretação variável dos tribunais sobre questões atinentes à matéria, aponta para algumas questões, a seguir expostas de forma sintética:

• a maioria dos compradores de imóveis desconhece a matéria registral imobiliária e supõe que as obrigações do vendedor estarão findas com a assinatura da escritura de venda, deixando de reservar parcela do pagamento como precaução contra problemas comuns na fase de registro do título. Por outro lado, como a escritura é o título translativo, os vendedores exigem a quitação plena para sua outorga;

• potenciais compradores deixam de concluir bons negócios por recear as exigências registrais que impedem o registro imediato das escrituras de compra e venda celebradas, postergando a transmissão da propriedade por longo tempo, com custos e riscos consideráveis;

• a impossibilidade ou a demora no registro pode resultar em conflitos diversos, ações de desfazimento dos negócios, de indenização, procedimentos de usucapião como forma de se contornar os óbices registrais etc.;

• muitas são as razões que podem obstar ou dificultar o registro do título para o comprador que já efetuou o pagamento do preço: divergências cadastrais, descrição imprecisa do imóvel nos assentos registrais existentes, problemas fiscais, divergências de dados pessoais ou reais, necessidade de busca de dados de registros anteriores em outras comarcas, inconsistências em formais de partilha de divórcios e inventários ainda não registrados, loteamentos e incorporações com irregularidades, sobreposição de imóveis rurais, externalidades desconhecidas no momento da lavratura da escritura, como indisponibilidades de bens, penhoras ou arrestos ainda não registrados, uniões estáveis não publicizadas no Registro Civil do vendedor e outras mais.

Para enfrentar as dificuldades acima descritas a Lei 14.711/2023 trouxe para o mercado imobiliário um instrumento bastante conhecido e utilizado nas operações comerciais on line e que consiste resumidamente na possibilidade do investidor efetivar o pagamento ou consignação do valor, por meio de um terceiro – tabelião de notas – que efetuará o deposito em conta vinculada ao negócio em instituição financeira e providenciará o repasse do montante à parte devida, tão logo constatada a ocorrência das condições negociais aplicáveis.

Com a adoção do referido instrumento confere-se a necessária segurança jurídica à operação e supera-se, a princípio, dois riscos:

• O risco de o vendedor outorgar escritura antes do recebimento do preço e amargar o inadimplemento do comprador, que com o registro já terá transferido para si o bem – o que exigirá uma ação judicial do vendedor, para eventual desfazimento do negócio ou recebimento do preço;

• O risco de o comprador pagar a integralidade do preço no momento da outorga da escritura e depois não conseguir aperfeiçoar a aquisição, por problemas no registro – o que igualmente exigirá intervenção judicial para desfazimento do negócio e cobrança do valor pago.
2. Escrow account – Conceito, aplicação e utilidade ao negócio imobiliário

O escrow, originário do direito anglo-saxônico, é um contrato de depósito irregular, inominado e atípico, com função de garantia, em favor de sujeito alternativamente determinado. É modalidade não contemplada pelo artigo 632 do Código Civil Brasileiro, que trata do depósito no interesse de terceiro .

Comumente previsto como depósito em garantia em um contrato ou acordo comercial é mantido sob a responsabilidade de um terceiro, até que as cláusulas desse acordo sejam cumpridas por ambas as partes envolvidas no negócio. Normalmente se faz na forma de um depósito em dinheiro em uma conta criada especificamente para isso - uma escrow account, que em português poderia ser traduzida como “conta-caução” ou “conta de garantia” .

Daí é possível extrair-se que o escrow é um contrato necessariamente ligado a uma relação jurídica principal, baseado na fidúcia que as partes assentam em terceiro a quem se confiará o bem, cuja função consiste na garantia de cumprimento de obrigações, assegurando-se ao beneficiário do depósito que, demonstrado seu status de credor, poderá facilmente realizar seu crédito .

Dentre seus elementos essenciais, no que tange às partes, a doutrina portuguesa aponta o escrow como um contrato trilateral, subscrito por duas partes contratantes em negócio jurídico coligado, em razão do qual se realiza o depósito, e um ente fiduciário, o depositário escrow, que acompanhará a execução do contrato principal e a que se confia a guarda dos bens dados em sua garantia

O escrow é utilizado cotidianamente por milhões de brasileiros em plataformas digitais como PayPal, Mercado Pago, Mercado Livre, Shopee, entre outras, que recebem pagamentos dos consumidores em contas próprias, para repasse ao fornecedor após a entrega regular do produto. Mas a forma de escrow que nos parece mais próxima daquela aplicável aos negócios imobiliários é a do crédito documentário praticado no comércio exterior , agregado a elementos do negócio fiduciário , cuja tipologia mais comum no Brasil é a propriedade fiduciária.

O crédito documentário é um compromisso irrevogável do banco emitente que, atuando por instruções de um importador, fica obrigado a efetuar um pagamento - à vista ou a prazo - a um exportador ou à sua ordem, contra a apresentação de documentos em conformidade com os termos enunciados na carta de crédito. O crédito documentário entra no circuito bancário pela via do importador e constitui uma garantia de pagamento a favor do exportador, desde que observados todos os termos e condições previstos na carta de crédito. É um meio de pagamento/recebimento que oferece maior segurança às transações de comércio internacional, em especial no relacionamento com novos parceiros comerciais. Para o importador é garantido que o compromisso do banco emitente de pagar o montante da carta de crédito só se verificará se forem cumpridos por parte do exportador todos os requisitos a que obriga a carta de crédito. Para o exportador (beneficiário) há a garantia do pagamento da mercadoria expedida, contra entrega dos documentos e cumpridos os termos e condições expressos na carta de crédito.

Percebe-se, a partir de tal estrutura negocial, que um contrato de escrow atrelado à apresentação documental, como forma de cumprimento de obrigações, serve bem aos negócios imobiliários. Dada a abstração consubstanciada nos dados registrais e cadastrais, em especial nas certidões a eles pertinentes, o cumprimento da quase totalidade das obrigações normalmente pactuadas em negócios imobiliários pode ser aferido por documentos, o que reduz a discricionariedade do escrow holder (depositário), simplificando e tornando mais seguro o negócio. Pois embora seja pouco comum na prática comercial, é possível atribuir-se ao escrow holder poderes para aferir a verificação das contingências do contrato a que se sujeita a definição do credor do depósito - se o bem (ou dinheiro) será restituído ao depositante ou entregue ao beneficiário, caso em que desempenhará função análoga a de juiz ou árbitro .

Neste caso, emerge a questão da responsabilidade do depositário decorrente da deliberação sobre a verificação ou não da condição acordada, que pode ser contornada, segundo Antunes , com a previsão de cláusula que exonere o depositário de responsabilidades pela decisão assumida, desde que baseada no conteúdo do contrato, “como se estivéssemos perante uma decisão de um árbitro ou juiz a quem não se podem ser assacadas responsabilidades pelo mérito das suas decisões”.

3. O escrow account no Marco Legal das Garantias.

A Lei nº 14.711/2023, conhecida como Marco Legal das Garantias, reconfigurou o escrow como garantia dos negócios imobiliários, ao permitir sua utilização pelos tabeliães, com o apoio de uma instituição bancária, no papel de escrow holders e atribuir ao depósito bancário do valor o status de patrimônio de afetação. Tal reconfiguração se deu mediante a inclusão, na Lei 8.935/1994 (Lei dos Cartórios), dos seguintes dispositivos:

Art. 7º-A Aos tabeliães de notas também compete, sem exclusividade, entre outras atividades

I - certificar o implemento ou a frustração de condições e outros elementos negociais, respeitada a competência própria dos tabeliães de protesto; (...)

III - atuar como árbitro.

§ 1º O preço do negócio ou os valores conexos poderão ser recebidos ou consignados por meio do tabelião de notas, que repassará o montante à parte devida ao constatar a ocorrência ou a frustração das condições negociais aplicáveis, não podendo o depósito feito em conta vinculada ao negócio, nos termos de convênio firmado entre a entidade de classe de âmbito nacional e instituição financeira credenciada, que constituirá patrimônio segregado, ser constrito por autoridade judicial ou fiscal em razão de obrigação do depositante, de qualquer parte ou do tabelião de notas, por motivo estranho ao próprio negócio.

§ 2º O tabelião de notas lavrará, a pedido das partes, ata notarial para constatar a verificação da ocorrência ou da frustração das condições negociais aplicáveis e certificará o repasse dos valores devidos e a eficácia ou a rescisão do negócio celebrado, o que, quando aplicável, constituirá título para fins do art. 221 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), respeitada a competência própria dos tabeliães de protesto.

(...)
Observa-se que a nova lei atribuiu ao tabelião de notas a atribuição tanto para atuar como escrow holder, ou seja, ser o terceiro a quem é confiado o bem (no caso o numerário depositado em garantia) no contrato de escrow, quanto para atuar como árbitro, certificando o implemento ou a frustração de condições e outros elementos negociais, sob sua fé pública notarial. E como desdobramento desse papel conjunto de escrow holder e árbitro, para interpretar o cumprimento ou descumprimento de obrigações e o implemento ou não de condições e a partir das conclusões de tal interpretação, certificar o fato (e o fenômeno jurídico dele decorrente) e repassar o montante à parte devida, seja o depositante, seja o beneficiário do escrow.

Em paralelo, a nova lei atribuiu ao depósito na escrow account o caráter de patrimônio de afetação, a salvo de penhoras, bloqueios ou constrições, exceto as que derivem do próprio negócio principal, ao qual o escrow é acessório. Pois até então a penhora do depósito por dívida do depositante era um risco inerente ao negócio, como se verifica em várias decisões judiciais que reconhecem a plena penhorabilidade dos valores em escrow account .

Verifica-se, portanto, que aos tabeliães de notas foi atribuída uma certa carga de poder decisório, que não é mera aferição da ocorrência de fatos, certificáveis pela fé pública notarial, a serem consignados em ata notarial, mas sim a qualificação jurídica de tais fatos, em face das cláusulas contratuais pactuadas pelas partes.

Certificada a ocorrência de fatos e condições, haverá uma decisão notarial para determinar o beneficiário dos valores, que poderá inclusive ser ambas as partes, conforme a pactuação contratual preveja, por exemplo, uma devolução parcial para uma parte, com multa em favor da outra parte contratante. Em outros termos, ao optar pela atuação do tabelião como escrow holder os contratantes lhe atribuem, em maior ou menor parcela, conforme a complexidade do negócio, também o papel de árbitro.

No tocante ao patrimônio de afetação representado pelo dinheiro depositado em conta bancária, entendemos que, a partir da novel previsão legislativa, tal depósito pode perfeitamente se dar mediante transferência à instituição bancária em caráter fiduciário, como autêntico negócio fiduciário, estipulado pelas partes com interveniência e sob ordens do tabelionato. Pois transferindo-se a propriedade fiduciária do numerário ao banco, sob ordens do tabelionato, ter-se-á uma segregação patrimonial mais eficaz, em titularidade diferente das partes e a princípio não alcançável por ordens de bloqueio judicial em abstrato ou penhoras on line por débitos da parte depositante (evitando-se assim bloqueios e desbloqueios).

A propriedade fiduciária de bens fungíveis (como o dinheiro), embora não admitida pela redação do art. 1.361 do Código Civil, pode ser prevista em legislação especial. Veja-se:

Art. 1.361. Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor.

(...)

Art. 1.368-A. As demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições deste Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial. (destacamos).

A Lei 10.931/2004 alterou a Lei 4.728/1965 (Lei do Mercado de Capitais) para autorizar a alienação fiduciária de coisas fungíveis no âmbito do mercado financeiro:

Art. 66-B. O contrato de alienação fiduciária celebrado no âmbito do mercado financeiro e de capitais, bem como em garantia de créditos fiscais e previdenciários, deverá conter, além dos requisitos definidos na Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, a taxa de juros, a cláusula penal, o índice de atualização monetária, se houver, e as demais comissões e encargos.

(...)

§ 3o É admitida a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, hipóteses em que, salvo disposição em contrário, a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é atribuída ao credor, que, em caso de inadimplemento ou mora da obrigação garantida, poderá vender a terceiros o bem objeto da propriedade fiduciária independente de leilão, hasta pública ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, devendo aplicar o preço da venda no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da realização da garantia, entregando ao devedor o saldo, se houver, acompanhado do demonstrativo da operação realizada.(Incluído pela Lei 10.931, de 2004 – negritos nossos)
Observa-se, portanto, que não há óbice, ao menos sob a égide da legislação federal, para que o escrow estipulado perante o tabelionato tenha o valor entregue à instituição financeira em caráter fiduciário, ficando sob a titularidade resolúvel desta, até que incidam os encargos, termos ou condições contratualmente previstos para o levantamento dos valores, no todo ou em partes.

A recente mudança legislativa, quando devidamente regulamentada, poderá dinamizar o mercado de bens imóveis, especialmente de imóveis com pendências regularização ou de registro de títulos com defeito a ser suprido, ou de casos em que há dívidas do vendedor a serem pagas com os recursos oriundos da venda, dentre outras várias hipóteses. E as partes, se o quiserem, podem perfeitamente reduzir o nível de discricionariedade do tabelião quanto à análise da ocorrência de condições ou cumprimento de obrigações, simplesmente elegendo claramente quais os documentos representativos de cada fato jurídico, para que com a sua mera apresentação, a tempo e modo, se demonstre o direito ao levantamento do numerário – tal qual já ocorre há muito no crédito documentário para importação e exportação.

Embora a princípio contratos particulares imobiliários possam se valer de escrow mediado pelos tabelionatos dentro da nova competência legal que lhes foi atribuída, certamente a grande maioria dos contratos acessórios será instrumentalizada nas escrituras públicas lavradas pelos próprios tabeliães como contratos principais, até mesmo pela possibilidade de se lavrar documentos definitivos, mesmo que com cláusulas resolutivas, com desembolso e salvaguarda dos recursos até o implemento de condições. Tal fato é benéfico ao mercado imobiliário e à segurança jurídica dos negócios, pois no sistema de notariado latino, vigente no Brasil, o tabelião de notas desempenha uma função de assessoria neutra às partes, traduzida na escolha e interpretação de sua vontade, no auxílio a essa formação, na sua adaptação ao ordenamento jurídico, na escolha e aconselhamento sobre os meios jurídicos mais adequados à realização dos fins pretendidos, na redação dos próprios documentos e na explicação às partes sobre o conteúdo e efeito dos atos . A par do trabalho desempenhado pelos tabeliães, a participação dos advogados das partes contratantes na elaboração das cláusulas protetivas de seus interesses é de grande importância, especialmente em se tratando de contratos complexos e que geralmente envolvem quantias significativas.


Eduardo Moreira Reis Advogado especializado em Direito Registral, Imobiliário e Urbanístico. Professor da pós-graduação da PUC/MG. Trabalha há cerca de 30 anos com questões jurídico-fundiárias. Membro da AD NOTARE – Academia Nacional de Direito Notarial, Registral, Crédito e Garantias Imobiliárias.

Mauro Antônio Rocha Advogado especializado em Direito Imobiliário, Notarial, Registral, Crédito e Garantias Imobiliárias. Presidente da AD NOTARE – Academia Nacional de Direito Notarial e Registral.

________________________
NOTAS
1. MARQUES FILHO, Vicente de Paula e GIMENES, Amanda Goda, in A ação de depósito e o contrato de escrow nas operações de fusões e aquisições, p 14 - http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=4206e38996fae402, acesso em 4 de março de 2024.
1. https://www.dicionariofinanceiro.com/escrow/, acesso em 4 de março de 2024.
3. MARQUES FILHO e GIMENES, op cit, p. 8
4. ANTUNES, João Tiago Morais. Do contrato de depósito escrow. Coimbra: Almedina, 2007, p 165.
5. Os Créditos Documentários encontram-se sujeitos às Regras e Usos Uniformes Relativas aos Créditos Documentários da Câmara de Comércio Internacional.
6. In:https://ind.millenniumbcp.pt/pt/negocios/internacional/Pages/cred_doc_importexport.aspx. Crédito Documentário: Como Funciona?
7. In: https://www.economias.pt/credito-documentario-como-funciona/
8. Ver também: https://jus.com.br/artigos/39970/a-moderna-concepcao-do-credito-documentario-nas-relacoes-de-comercio-internacional
9. MARCOS BERNARDES DE MELLO define o negócio fiduciário como ‘’negócios jurídicos pelos quais se transmite a propriedade, a posse, o crédito ou o direito com outra finalidade que não, apenas, a específica de alienar’’ (Teoria do Fato Jurídico, Plano da Existência. 12. Ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 203).
10. MARQUES FILHO e GIMENES, op cit, p. 9
11. Op. cit, p. 167-168
12. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1904340 - SP (2021/0158860-8) EMENTA AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. ALEGAÇÃO DE IMPENHORABILIDADE DE VALORES EM CONTA DE NATUREZA "ESCROW". CONCLUSÃO DO ACÓRDÃO RECORRIDO PAUTADA EM PECULIARIDADES DO CASO. REVISÃO INVIÁVEL. SÚMULAS N. 5 E 7/STJ. AGRAVO CONHECIDO PARA NÃO CONHECER DO RECURSO ESPECIAL. DECISÃO (...) De todo modo, não há se falar em penhora de crédito em reserva exclusiva da agravante. Ainda que dos processos noticiados a fls. 318/322 pela vendedora no contrato firmado com a C., a agravante afirme que só há pendência de débito da executada no processo 1025875-93-93.2015.8.26.0562, com quem admite dividir o valor, fato é que a solução não passa por sua escolha. Já há, inclusive, credores de outro processo com incidente de habilitação em apenso aos autos principais (Proc.1017691-17.2016), onde já manifestaram a pretensão de integrarem o concurso de preferência de credores. Da leitura do acórdão recorrido, verifica-se que a conclusão adotada pelo Tribunal de origem derivou de ampla cognição sobre as premissas fáticas dos autos, sobretudo em relação ao contrato existente entre a recorrente e terceiro (empresa C.), entendendo pela possibilidade de penhora de valor mantido em conta de natureza "escrow" diante das peculiaridades do caso. O acolhimento da pretensão recursal, a fim de reconhecer a impenhorabilidade do montante, demandaria revolvimento do conjunto fático-probatório, bem como interpretação de cláusula contratual, o que encontra óbice nas Súmulas n. 5 e 7/STJ. Ante o exposto, conheço do agravo para não conhecer do recurso especial. Fiquem as partes cientificadas de que a insistência injustificada no prosseguimento do feito, caracterizada pela apresentação de recursos manifestamente inadmissíveis ou protelatórios a esta decisão, ensejará a imposição, conforme o caso, das multas previstas nos arts. 1.021, § 4º, e 1.026, § 2º, do CPC/2015. Publique-se. Brasília, 14 de junho de 2022. MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Relator - (STJ - AREsp: 1904340 SP 2021/0158860-8, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Publicação: DJ 01/07/2022)
EMBARGOS DE TERCEIRO. CONSTRIÇÃO DE CONTA "ESCROW". Sentença de improcedência do pedido de liberação de constrição de conta "escrow" que não comporta reparo. Cerceamento de defesa não verificado. Regular observância ao art. 370, parágrafo único, do CPC/2015. É lícita a penhora incidente sobre conta na modalidade "escrow", não se admitindo a alegação de impossibilidade da constrição em razão da destinação exclusiva dos valores por acordo entre as partes, por não haver previsão da alegada impenhorabilidade no art. 833 do CPC/2015. Precedentes. Honorários recursais. Majoração. RECURSO NÃO PROVIDO. (TJ-SP - AC: 10164982720188260002 SP 1016498-27.2018.8.26.0002, Relator: Alfredo Attié, Data de Julgamento: 23/03/2021, 27ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 25/03/2021)
AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE EXECUÇÃO POR QUANTIA CERTA CONTRA DEVEDOR SOLVENTE - IMPUGNAÇÃO À PENHORA - PENHORA EM CONTA "ESCROW ACCOUNT" – POSSIBILIDADE – BEM NÃO INSERIDO NO ROL DO ARTIGO 833 DO CPC – AUSÊNCIA DE PROVA DE SE TRATAR DE BEM DE TERCEIRO. Ocorre que a conta "escrow account" é, pela natureza jurídica, conta de depósito em garantia, portanto, não alcançada pela impenhorabilidade. ART. 252, DO REGIMENTO INTERNO DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO. Em consonância com o princípio constitucional da razoável duração do processo, previsto no art. 5º, inc. LXXVIII, da Carta da República, é de rigor a ratificação dos fundamentos da sentença recorrida. Precedentes deste Tribunal de Justiça e do Superior Tribunal de Justiça. – DECISÃO MANTIDA – RECURSO IMPROVIDO. (TJ-SP - AI: 20276967920208260000 SP 2027696-79.2020.8.26.0000, Relator: Eduardo Siqueira, Data de Julgamento: 29/04/2020, 38ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 29/04/2020)
13. RODRIGUES, Marcelo Guimarães, Tratado de registros públicos e direito notarial, São Paulo, Atlas, 2014, p. 222.

Publicado originalmente no Boletim Migalhas nº 5.805, de 11/03/2024

segunda-feira, 11 de março de 2024

Escrow Account – instrumento de segurança jurídica máxima ao negócio imobiliário. (Parte II)


Eduardo Moreira Reis e Mauro Antônio Rocha


Considerações complementares sobre o ‘escrow account’, instrumento jurídico-financeiro incluído na Lei 8.935/1994 pelo Marco Legal das Garantias para conferir máxima segurança jurídica ao adquirente de imóvel.

Na parte inaugural deste trabalho, publicada no Boletim Migalhas Nº 5.805, de 11 de março p.p.(1), dissertamos sobre a insegurança jurídica e o desgaste emocional e psicológico a que é submetido o investidor ou adquirente de bem imóvel –por conta do desconhecimento das variáveis jurídicas estruturais e conjunturais que tornam incerto o acolhimento do instrumento de escritura pública ou contrato particular pelo Ofício de Registro de Imóveis competente e o indispensável registro do título nele inscrito, para tornar definitiva e inatacável a transmissão da propriedade.

Nesta parte complementar trataremos das razões jurídicas e sociais que deram azo a essa insegurança e da previsibilidade jurídica desejada pelos participantes dos “negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis”.(2)

1. Das origens da insegurança no mercado imobiliário brasileiro.

A segurança jurídica no mercado imobiliário é uma necessidade básica para a economia de qualquer país. No Brasil, país em desenvolvimento, a segurança outorgada se mostra frágil quando confrontada com uma estrutura fundiária rural ainda em organização sob os aspectos cadastrais e registrais, com desordenada urbanização, alto índice de informalidade e disponibilidade de terras que contrastam com o enorme potencial de crescimento do mercado imobiliário, assumindo a temática extraordinária importância.

Da concentração fundiária rural à urbanização súbita irrompida entre o início e o fim do século passado – e desta à necessidade de imediata e obrigatória inserção, no século atual, no mercado globalizado de economia financeira – o sistema jurídico imobiliário brasileiro busca saltar das práticas antigas às pós-modernas sem ter tido a necessária maturação das modernas, causando evidentes descompassos, tanto normativos quanto práticos.

As demandas sociais por segurança jurídica e fiabilidade no mercado de imóveis, e ao mesmo tempo por maior governança territorial, têm premido o Poder Legislativo a sucessivas iniciativas em prol da modernização desse sistema normativo. Tais iniciativas, a nosso sentir, têm ocorrido principalmente sob quatro principais diretrizes: desjudicialização de procedimentos envolvendo imóveis; modernização e prestígio crescente aos serviços extrajudiciais de tabelionato e registros públicos; ampliação das garantias ao crédito imobiliário e modernização de sistemas cadastrais de gestão territorial.

Essa evolução sistêmica é lenta, e no caso brasileiro – por natureza conservador e burocrático – muitas vezes descompassada entre novos e antigos institutos jurídicos, demandando cautelas diversas, por parte do adquirente de imóveis, além de um instrumental jurídico que o proteja das fragilidades do sistema, por parte do Estado.

Dentre esses diversos instrumentos, alguns apenas apontados ao longo deste texto, abordamos especificamente aquele já conhecido como escrow account (que em português pode ser traduzido como “conta-caução” ou “conta de garantia”) (3), conhecido e largamente utilizado no comércio de bens móveis, admitido no ordenamento jurídico como contrato acessório atípico, que foi inserido na recente Lei 14.711/23 como atividade a ser exercida, sem exclusividade, pelos tabeliães de notas, com operacionalização simplificada, porém bem definida na lei, protegido pelo depósito em instituição financeira e pela segregação patrimonial de qualquer constrição não decorrente do próprio negócio contratado, com novas e maiores potencialidades em prol dos negócios imobiliários.

2. Da segurança jurídica dinâmica e as lacunas entre os microssistemas normativos.

O conceito de segurança jurídica varia na doutrinaiv, podendo ser entendido, dentre outras concepções, como uma elevada capacidade de prever as consequências jurídicas de fatos ou atos pela maioria das pessoas, o que envolve uma coerência e previsibilidade jurídica acessívelv e uma disponibilidade de informações para a coletividade em geral (4).

Para o Direito Registral Imobiliário, a segurança jurídica é alcançada em duas vertentes: segurança jurídica estática e segurança jurídica dinâmica (7). A segurança jurídica estática se dá pelo efeito de assegurar a estabilidade política do domínio; e a segurança dinâmica, com a possibilidade de uma transmissão segura dos direitos. A segurança dinâmica é aquela almejada pelo adquirente num negócio imobiliário, fator essencial para a formatação e implementação segura dos negócios – podendo-se dizer que o objetivo da segurança dinâmica dos negócios imobiliários é exatamente se tornar estática para o adquirente (8).

Desde a inauguração do mercado formal de terras no Brasil, pela Lei 601 de 1850, até os dias atuais, as regras relativas ao mercado imobiliário vêm se adequando às necessidades socioeconômicas e se positivando em microssistemas normativos conexos, mas que nem sempre evoluem e se transformam ao mesmo tempo. O que se denomina genericamente de Direito Imobiliário é composto desses microssistemas, com regras cíveis obrigacionais e reais, sucessórias, de família, urbanísticas, registrais, tributárias, agrárias, ambientais, empresariais e outras mais. Assim sendo, por exemplo, as regras para produção imobiliária horizontalizada e verticalizada (loteamentos e incorporações) se interconectam com a legislação vigente de registros públicos, legislação contratual geral e legislação processual civil, dentre outras; os imóveis rurais têm seu regramento próprio do Direito Agrário, com regras registrais, cadastrais e ambientais próprias e posteriores ao Estatuto da Terra, de 1964; os imóveis públicos têm um regramento especial, que articula com a legislação cível e registral; a legislação minerária contém institutos afetos ao mercado imobiliário, como as servidões minerárias; a proteção a grupos étnicos condiciona o mercado de terras; a legislação de desapropriações e tombamentos igualmente condiciona o tráfico imobiliário.

Esses microssistemas se modificaram estruturalmente ao longo do século XX, em especial com o advento do regime matricial dos registros públicos de imóveis e com o status constitucional atual das normas ambientais e urbanísticas, e já sofreram mudanças diversas no século atual. Para possibilitar a lida com essa multiplicidade de direitos e dados, as alterações legislativas recentes têm convergido para o crescente fortalecimento do registro público de imóveis, como guardião dos direitos sobre imóveis e da segurança jurídica dinâmica, sendo o fólio registral, por excelência, o locus da concentração segura da informação jurídico-imobiliária.

Em paralelo, alguns procedimentos envolvendo a propriedade imobiliária que outrora dependiam da atuação direta do Poder Judiciário tiveram sua competência estendida às serventias extrajudiciais, como a retificação de registro, a usucapião, as execuções hipotecárias, as adjudicações compulsórias e outros mais. Outros procedimentos tiveram sua competência atribuída ao serviço registral, como a regularização fundiária urbana. Ainda nessa tendência “desjudicializante” o Decreto-Lei 745/69 foi alterado em 2015(9), dando novo rumo interpretativo aos vetustos entendimentos jurisprudenciais e doutrinários de que os contratos de promessa de compra e venda de imóveis, mesmo com cláusula resolutiva expressa, necessitariam de intervenção judicial para sua resolução.

Nesse aprimoramento legislativo do sistema registral, a informatização dos cadastros e registros públicos possibilitou meios mais eficientes de preservação de direitos de credores, como as indisponibilidades. Num átimo de tempo, gravames são instituídos sobre quaisquer bens imóveis do devedor em território nacional (inclusive sobre bens móveis, com o SERP – Sistema Eletrônico de Registros Públicos, previsto nas leis 11.977/09 e 14.382/22). O dado registral está facilmente acessível, com as centrais registrais digitais, e tanto a legislação quanto os tribunais, ao aplicá-la, têm ampliado a via da averbação registral como meio de publicização de direitos, ou até de expectativa de direitos sobre os elementos objetivos e subjetivos da matrícula.

O chamado princípio da concentração dos gravames e ônus na matrícula imobiliária, ou seja, a possibilidade de o interessado visualizar a exata situação jurídica de um imóvel mediante a sequência registral retratada no fólio real, sem ter que realizar infindáveis pesquisas acautelatórias (ações reais ou reipersecutórias, por exemplo), antes de adquirir o bem ou tomá-lo como garantia, é um imperativo fundamental para a segurança jurídica. Tal princípio já existia há muito no ordenamento jurídico brasileiro, mas na prática o “clandestinismo registral” o enfraqueceu ao longo dos anos. A Lei 13.097/2015, veio reforçar em muito tal princípio, aumentando a segurança jurídica do adquirente de boa-fé quanto a débitos ou gravames do alienante não inscritos na matrícula. A Lei 14.382/22 acrescentou um parágrafo ao art. 54 da referida lei, que passou a viger com a seguinte redação:
[...]

“Art. 54. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações:

I - registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias;

II - averbação, por solicitação do interessado, de constrição judicial, de que a execução foi admitida pelo juiz ou de fase de cumprimento de sentença, procedendo-se nos termos previstos no art. 828 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil);

III - averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei; e

IV - averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do inciso IV do caput do art. 792 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).

§ 1º Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no registro de imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos arts. 129 e 130 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel.

§ 2º Para a validade ou eficácia dos negócios jurídicos a que se refere o caput deste artigo ou para a caracterização da boa-fé do terceiro adquirente de imóvel ou beneficiário de direito real, não serão exigidas:

I - a obtenção prévia de quaisquer documentos ou certidões além daqueles requeridos nos termos do § 2º do art. 1º da Lei nº 7.433, de 18 de dezembro de 1985; e

II - a apresentação de certidões forenses ou de distribuidores judiciais.

[...]

Há respeitáveis (embora ainda minoritários) entendimentos doutrinários no sentido de que as regras sobre a concentração de atos na matrícula positivadas pelas leis 13.097 e 14.382 mudaram o sistema registral imobiliário brasileiro, que até então se pautava pela legitimação registral, caracterizado pela presunção relativa de veracidade da inscrição registral imobiliária (10), para o sistema de fé pública registral, no qual aquele que, de boa-fé, confiou na informação registral e a partir dela adquiriu um direito real sobre um imóvel, terá seu direito protegido em caso de defeitos ou nulidades na cadeia dominial anterior. O sistema da legitimação registral é o praticado, por exemplo, na Espanha, enquanto o sistema da fé pública registral é conhecido como sistema alemão. Todavia, como se detalhará adiante, ainda que a doutrina majoritária e os tribunais se perfilhem a tal entendimento, a proteção do adquirente em face da fraude contra credores ou da fraude à execução praticada pelo transmitente de forma alguma exaure os riscos da aquisição imobiliária.

A Lei 14.382 também alterou, de forma discreta, mas significativa, o art. 246 da Lei 6.015/1973(11), alargando a admissibilidade das chamadas “averbações facultativas”. E o STJ, ao julgar o REsp 1.857.098-MS, estabeleceu, por unanimidade, teses vinculantes referentes ao direito de acesso à informação no Direito Ambiental, destacando-se, para o Registro de Imóveis, a possibilidade de averbação de informações facultativas sobre o imóvel e a possibilidade de requisição diretamente ao registro de imóveis, pelo Ministério Público, da averbação de informações alusivas a suas funções institucionais(12). Tudo isso contribui para a concentração dos dados na matrícula, destacando-se que até mesmo direitos ainda não “calcificados”, como no caso de inquéritos e procedimentos investigativos do Ministério Público, segundo a tese firmada pelo STJ, a princípio são passíveis de averbação.

No tocante aos cadastros públicos de imóveis foram criados o Cadastro Ambiental Rural (CAR), integrante do Sistema Nacional de Cadastro Ambiental (SICAR), o Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF), Cadastro Nacional de Imóveis Rurais (CNIR), o Cadastro Fiscal de Imóveis Rurais (CAFIR) e o Cadastro Imobiliário Brasileiro (CIB), este abrangendo os imóveis rurais e urbanos, como parte integrante do Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais (SINTER). Existem ainda os cadastros imobiliários municipais e estaduais, tanto urbanísticos, fiscais e administrativos, e todos eles, em maior ou menor grau, se fazem necessários para uma informação segura sobre direitos relativos a imóveis. E sua interconexão com o registro imobiliário se dá exatamente pelas averbações nas matrículas imobiliárias. Tais cadastros, ao longo do tempo, contribuirão para uma base fundiária confiável em todo o país, elevando em muito a segurança jurídica. Mas vários, atualmente, estão sendo ainda iniciados ou apenas começaram a ser “alimentados”.

Apesar das inovações legislativas, da desjudicialização, dos novos instrumentos de crédito real disponíveis para o mercado, da tecnologia digital e da facilitação da concentração das informações no fólio registral, a aquisição de imóveis no Brasil não deixou de ser um negócio de risco. Tal risco se dá por questões objetivas e subjetivas, ou mesmo por óbices documentais de ordem formal.

Há diversos níveis de risco quanto aos imóveis, desde os mais baixos, de imóveis que já passaram por crivos jurídicos administrativos e registrais, como unidades condominiais resultantes de incorporações ou lotes de loteamentos regulares, até os mais elevados, de parcelas de terrenos, urbanos ou rurais, ainda pendentes de alguma forma de regularização, e questões de ordem pessoal dos alienantes, sejam pessoas naturais ou jurídicas. E não são raras as situações em que os direitos sobre o imóvel pretendido foram havidos pelo alienante mediante títulos antigos e defeituosos, pendentes de registro.

Ainda que se considere o princípio da concentração do art. 54 da Lei 13.097, há os débitos fiscais inscritos em dívida ativa, que pela redação do art. 185 do Código Tributário Nacionalxiii se presumem fraude à execução (14), as aquisições originárias, que se implementam independentemente do registro (usucapião, desapropriação etc.,), as situações falimentares e outras mais, que representam exceções ao princípio. E há situações que, mesmo albergadas pelo referido princípio, frequentemente são opostas ao adquirente por força de decisões judiciais, especialmente trabalhistas e nas varas de família. Essas exceções não afastam a necessidade da chamada due diligence, que é a pesquisa e análise prévia de fatos jurídicos relativos ao imóvel e ao alienante, para verificação dos riscos envolvidos no negócio pretendido.

Para exemplificar o que aqui chamamos de descompasso sistêmico, não é raro que em relação a um único terreno urbano se tenha uma situação registral de regularidade formal coexistindo com um cadastro tributário que reflete uma configuração diferente, um cadastro urbanístico também diverso e um procedimento de tombamento, ou um decreto de utilidade pública, ainda não levados a registro. E que nesse hipotético terreno tenha havido, no passado, uma atividade contaminante do solo, (como por exemplo, um posto de combustíveis), que até a implementação de medidas corretivas impossibilitará o licenciamento de empreendimentos no imóvel – sem qualquer menção na matrícula. Ou ainda que num caso de loteamento anterior à atual legislação de parcelamento do solo e de registros públicos sejam exigidas contrapartidas urbanísticas pelo Município, para considerar o imóvel um lote regular e certificalo como tal, ou mesmo que o próprio serviço registral imobiliário exija tal certidão municipal, ou eventualmente exija averbação de construções existentes, desdobro ou instituição de condomínio em caso de mais de uma edificação no terreno, como condição para uma abertura de matrícula.

Igualmente é perfeitamente possível que um terreno rural de registro regular, já georreferenciado e com cadastro e reserva ambiental definida apresente sobreposição a outro, não georreferenciado e cadastrado, ou tenha um passivo ambiental (que é obrigação propter rem, nos termos do art. 2º, § 2º do Código Florestal) ainda em fase de investigação, ou se situe em área de proteção antropológica (indígenas e quilombolas, por exemplo), área de unidade de conservação ou zona de amortecimento desta, sítio arqueológico ou mesmo em área de concessão de direito minerário ou de outra servidão de natureza administrativa - sem qualquer menção na matrícula.

Percebe-se que a questão é complexa, e mesmo as regras mais recentes de desjudicialização e garantias ao adquirente ainda se encontram em processo de assimilação pelo meio jurídico, em especial pelos juízes e tribunais. No tocante aos cadastros públicos, cujos dados são sujeitos a averbação e representam também meios para maior segurança, a gradativa e demorada implementação e a cultura do clandestinismo registral são obstáculos significativos. Tudo isso representa risco ao adquirente, evidenciando a necessidade da due diligence imobiliária em grande parte dos negócios.

3. A duplicidade formal e a praxe negocial: a demanda por mais garantias ao adquirente após a formação do título translativo e a disponibilização dos recursos financeiros

Sabe-se que conforme o art. 1.245 do Código Civil Brasileiro, a propriedade imóvel transfere-se entre vivos com o registro do título translativo. E que tal título, pela regra geral do art. 108 do Código, deve se dar pela forma da escritura pública, em negócios de valor superior a 30 salários-mínimos. E que na quase totalidade dos negócios de compra e venda de imóveis sem financiamento, o vendedor exige que o pagamento do preço seja integralizado até a data da lavratura da escritura.

A maioria dos compradores de imóveis, por falta de conhecimento sobre a matéria registral imobiliária, supõe igualmente que as obrigações do vendedor terminam com a assinatura da escritura, e não reservam qualquer parcela do pagamento para se precaver contra problemas na fase de registro – que são muito comuns. Outros potenciais adquirentes, geralmente assessorados por advogados, deixam de fazer o negócio, exatamente por receio de, após pagarem todo o preço, terem problemas na fase registral, e não conseguirem mais recuperar o valor pago. Tais compradores precavidos, que por vezes perdem bons negócios por receio de dificuldades registrais, têm suas razões: pois uma parcela significativa das escrituras de compra e venda celebradas no Brasil, ao serem levadas ao Registro de Imóveis, não são registradas de imediato. Destas, muitas jamais alcançarão o registro, e outras somente são registradas após o atendimento de exigências registrais, que podem representar tempo e custos consideráveis. Esses registros impossíveis ou demorados têm como resultados conflitos diversos, ações de desfazimento dos negócios, de indenização, procedimentos de usucapião como forma de se contornar os óbices registrais e outras mais.

Fator estrutural que acentua esse problema está nas vicissitudes do procedimento de dúvida registrária previsto no art. 198 da Lei nº 6.015/73. Embora tenha natureza administrativa (art. 204), a dúvida é julgada por um juiz de direito, com intervenção do Ministério Público, e em alguns Estados é sujeita a duplo grau obrigatório de jurisdição. Com exceção das grandes comarcas, que possuem varas especializadas, o processo é julgado por um juiz de vara cível, ou até de vara única, já sobrecarregado por feitos de naturezas diversas e muitas vezes sem vivência com as especificidades do Direito Registral. O resultado não poderia ser outro senão uma tramitação lenta e sujeita a entendimentos diversos, o que discrepa de outros instrumentos legais instituídos exatamente em prol da funcionalidade do sistema registral.

Quando o tempo é crucial para o interessado no registro, esperar mais de um ano por uma decisão incerta é uma opção pouco aceitável - o que leva à subutilização desse instrumento tão importante, hoje evitado a todo custo pelo jurisdicionado, que prefere o “mal menor” e, quando viável, cumpre a exigência equivocada para ter o ato registral efetivado. Quando é impossível atender à exigência e a dúvida é a única via, o prejuízo pode ser significativo.

E no caso do adquirente que precisa do registro em tempo hábil para um empreendimento, por exemplo, qualquer possibilidade, ainda que em tese, do manejo da via da dúvida registral pode contraindicar o negócio. Esse é mais um exemplo do descompasso entre microssistemas normativos do Direito Imobiliário, sobre o qual inclusive já nos manifestamos em outras oportunidades(15) .

Em tais situações a instituição de cláusula resolutiva pode viabilizar a resolução contratual, mas a recuperação do valor, normalmente pago quando da outorga escritura, dependerá da solvabilidade do vendedor – o que pode representar outro problema. Tais aspectos inibem não só os negócios entre brasileiros, mas também as aquisições de imóveis por estrangeiros, que podendo optar por investir em países onde o risco na aquisição de imóveis é muito menor, relutam em investir com tantos riscos e variáveis.

Os fatos ora mencionados, familiares para quem milita na área imobiliária, revelam uma demanda por instrumentos jurídicos que possam garantir ao adquirente que caso ele destaque de seu patrimônio e disponibilize ao comprador o preço pactuado, e surjam impeditivos ou condicionantes ao negócio, mais ou menos previsíveis, lhe seja possível desfazer o contrato e reaver o valor, no todo ou em parte, sem necessidade de recorrer ao Poder Judiciário. E ao mesmo tempo garantir ao alienante que ainda que ele outorgue os direitos reais sobre o bem antes do recebimento do preço, o valor estará a salvo e garantido, apenas pendente da implementação de uma condição. Tal condição pode ser uma qualificação registral positiva, a solução de um problema envolvendo o imóvel, o pagamento de uma dívida que possa ameaçar o negócio ou outra qualquer, pactuada entre as partes.

4. A questão da fraude contra credores e a oportunidade de negociação da dívida pelo alienante.

Não são incomuns as situações nas quais o alienante se encontra endividado, e pretende vender o bem exatamente para quitar seus débitos. E do outro lado, o adquirente deseja comprar o imóvel, mas teme a configuração da fraude contra credores ou fraude à execução. Nos casos de débitos fiscais em dívida ativa, por exemplo, nem mesmo a ausência de averbação da dívida ou de ação executiva fiscal livram o adquirente do risco de uma discussão judicial. E havendo, por exemplo, um arrolamento administrativo de bens do contribuinte(16), a venda poderá até ensejar o manejo de medida cautelar fiscal (17)

Em tais situações, se houvesse a garantia para as partes de que satisfeito credor do vendedor, a venda convalescerá válida e eficaz, livre do risco da fraude a credores para o adquirente, o negócio poderia perfeitamente se realizar, mediante a reserva do valor dispendido pelo comprador, nas mãos de uma terceira pessoa, com o direcionamento específico dos recursos financeiros para a satisfação das dívidas e entrega do remanescente à parte alienante do imóvel.

Ressalte-se que para o devedor a disponibilidade do recurso pode inclusive viabilizar negociações com a parte credora, com propostas à vista. No caso do Fisco Federal, por exemplo, a Lei 13.988/2020 prevê a transação resolutiva de litígio relativo à cobrança de créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária.

A escrow account, como se vê, é um instrumento que como contrato acessório atípico já era útil para a lida com as variáveis e riscos das aquisições imobiliárias, e que já poderia ser utilizado nos exemplos acima. Mas o instituto, no tocante à transmissão de imóveis, padecia de fragilidades, como a penhorabilidade do valor depositado, e para os negócios imobiliários merecia tratamento legal próprio - o que agora o texto do Marco Legal das Garantias (Lei 14.711/23) claramente buscou sanar.

5. Da simplificada operacionalização do escrow account.

Para a contratação do escrow account a parte a quem compete efetuar o pagamento consignará, por meio do tabelião de notas, o preço total ou parcial da aquisição ou valores conexos, que será depositado em instituição financeira credenciada e conveniada, constituindo patrimônio de afetação que não poderá ser constrito por autoridade judicial ou fiscal, por motivo estranho ao próprio negócio, para que, ao final, constatada a ocorrência ou a frustração das condições negociais aplicáveis seja lavrada ata notarial, a pedido das partes,para efetivar e certificar o repasse dos valores devidos à parte devida e a eficácia ou a rescisão do negócio celebrado.

O escrow account é um contrato inominado e atípico, com função de garantia, em favor de sujeito alternativamente determinado. Apesar de concentrado, deve abrigar os requisitos de validade do art. 104 do Código Civil – forma prescrita em lei, partes capazes, objeto lícito, possível, determinado ou determinável, livre manifestação da vontade.

O escrow account poderá ser formalizado em contrato específico, no qual serão feitas menções cruzadas de vínculo com o negócio jurídico garantido ou em instrumento único mediante a inclusão de suas cláusulas e condições específicas ao conteúdo do contrato imobiliário principal.

Ainda que os contratos principais imobiliários possam ser pactuados mediante instrumentos particulares – nos casos admitidos expressamente por lei – o contrato de escrow mediado por tabelião de notas deverá ter a escritura pública como forma legalmente prescrita.

As cláusulas específicas do escrow devem ser minudentes e estar perfeitamente delineadas de forma a delimitar as condições e obrigações a serem cumpridas pelas partes, os riscos cobertos, as multas e os encargos, termos ou condições contratualmente previstos para o levantamento dos valores, no todo ou em partes e podem reduzir o nível de discricionariedade do tabelião quanto à análise da ocorrência de condições ou cumprimento de obrigações, elegendo claramente os documentos representativos de cada fato jurídico que serão apresentados, a tempo e modo, para demonstrar o direito ao levantamento do numerário.

É essa aparente simplicidade que se depreende do disposto no art. 7º-A e seus parágrafos inseridos na Lei nº 8.935/1994, pela Lei nº 14.711/2023 (Marco Legal das Garantias), nos seguintes termos:
[...]

Art. 7º-A Aos tabeliães de notas também compete, sem exclusividade, entre outras atividades:

I - certificar o implemento ou a frustração de condições e outros elementos negociais, respeitada a competência própria dos tabeliães de protesto;

II - atuar como mediador ou conciliador;

III - atuar como árbitro.

§ 1º O preço do negócio ou os valores conexos poderão ser recebidos ou consignados por meio do tabelião de notas, que repassará o montante à parte devida ao constatar a ocorrência ou a frustração das condições negociais aplicáveis, não podendo o depósito feito em conta vinculada ao negócio, nos termos de convênio firmado entre a entidade de classe de âmbito nacional e instituição financeira credenciada, que constituirá patrimônio segregado, ser constrito por autoridade judicial ou fiscal em razão de obrigação do depositante, de qualquer parte ou do tabelião de notas, por motivo estranho ao próprio negócio.

§ 2º O tabelião de notas lavrará, a pedido das partes, ata notarial para constatar a verificação da ocorrência ou da frustração das condições negociais aplicáveis e certificará o repasse dos valores devidos e a eficácia ou a rescisão do negócio celebrado, o que, quando aplicável, constituirá título para fins do art. 221 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), respeitada a competência própria dos tabeliães de protesto.


6. Conclusões.

Com as breves notas que aqui se apresentou, apontamos alguns problemas comuns nos negócios imobiliários e os riscos deles advindos para os adquirentes, bem como as lacunas decorrentes do descompasso entre novos e velhos instrumentos dos sistemas normativos que orientam o Direito Imobiliário.

Caminha-se a passos largos para um sistema mais coeso e seguro, mas a realidade atual ainda é de considerável clandestinidade registral e pouca integração entre cadastros e registros. E mesmo institutos jurídicos modernos e promissores, como a concentração de atos e dados na matrícula, demandam uma maturação dos operadores do Direito, sobretudo dos juízes, para que se mostrem eficazes na prática cotidiana. Nesse ponto até a dificuldade política para se votar no mesmo nível constitucional do Código Tributário Nacional, regras que atribuam à Fazenda Pública o ônus de inscrição de seus créditos nas matrículas imobiliárias, representa um mais uma variável de risco aos negócios.

A proliferação de decisões judiciais desacreditadoras do sistema, muitas delas via embargos de terceiro, nos prova a cada dia que essa assimilação é lenta e gradativa. Há ainda o problema dos muitos imóveis que remanescem registrados no sistema de fólio pessoal, com títulos pendentes de registro e abertura de matrículas, e o descompasso sistêmico da lentidão do processamento das dúvidas registrarias, verdadeiro gargalo para a celeridade na transmissão de direitos.

Todos esses fenômenos geram custos e riscos para as operações imobiliárias e amplificam a demanda social por instrumentos que possam facilitar a lida com esses percalços, como o escrow, que agora se reestrutura para os negócios imobiliários.

A nosso ver andou bem o legislador, atendendo a um ponto sensível dos negócios imobiliários e escolhendo, para a gestão desse novo instrumento, um agente especializado e de grande confiabilidade no meio social, que é tabelionato de notas. E a atuação dos advogados das partes contratantes do escrow, na definição das cláusulas e condições contratuais e seus modos de aferição inequívoca, em prol dos interesses e da segurança de seus constituintes, decerto contribuirá para a sua boa aceitação no meio imobiliário.


Eduardo Moreira Reis Advogado especializado em Direito Registral, Imobiliário e Urbanístico. Professor da pós-graduação da PUC/MG. Trabalha há cerca de 30 anos com questões jurídico-fundiárias. Membro da AD NOTARE – Academia Nacional de Direito Notarial, Registral, Crédito e Garantias Imobiliárias.

Mauro Antônio Rocha Advogado especializado em Direito Imobiliário, Notarial, Registral, Crédito e Garantias Imobiliárias. Coordenador de Contencioso Jurídico na Caixa Econômica Federal. Presidente da AD NOTARE – Academia Nacional de Direito Notarial e Registral.


_______________________________________________
NOTAS (1) Boletim Migalhas nº 5805, de 11/03/2024.
(2) Art. 108 da Lei nº 10.406/2002 (Código Civil Brasileiro).
(3) https://www.dicionariofinanceiro.com/escrow/, acesso em 1º de março de 2024.
(4) LOUREIRO, Luiz Guilherme, Registros Públicos, teoria e prática, 4. Ed, Forense, SP 2013, p. 265.
(5) ÁVILA, Humberto, Teoria da segurança jurídica, 3ª ed, Malheiros, SP, 2014, p. 139.
(6) SIQUEIRA, Alexis Mendonça Cavichini Teixeira, MAHLMANN, Jean Karlo Woiciechoski, Presunção absoluta e os sistemas de registro de imóveis: dormientibus non sucurrit ius, Coleção IRIB Academia, COP Editora, RJ, 2022, p. 26.
(7) SANTOS, Francisco José Rezende - A Segurança Jurídica e o Registro De Imóveis- mensagem do Presidente do IRIB em carta aberta aos associados
(8) SIQUEIRA e MAHLMANN, 2022, op cit, p. 29.
(9) Decreto-Lei nº 745/1969 - Art. 1º Nos contratos a que se refere o art. 22 do Decreto-Lei nº 58, de 10 de dezembro de 1937, ainda que não tenham sido registrados junto ao Cartório de Registro de Imóveis competente, o inadimplemento absoluto do promissário comprador só se caracterizará se, interpelado por via judicial ou por intermédio de cartório de Registro de Títulos e Documentos, deixar de purgar a mora, no prazo de 15 (quinze) dias contados do recebimento da interpelação. Parágrafo único. Nos contratos nos quais conste cláusula resolutiva expressa, a resolução por inadimplemento do promissário comprador se operará de pleno direito (art. 474 do Código Civil), desde que decorrido o prazo previsto na interpelação referida no caput, sem purga da mora. (com a redação dada pela Lei nº 13.097/2015)
(10) Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis. (...) § 2º Enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel. (...) Art. 1.247. (...) Parágrafo único. Cancelado o registro, poderá o proprietário reivindicar o imóvel, independentemente da boa-fé ou do título do terceiro adquirente.
(11) Redação antiga: Art. 246 - Além dos casos expressamente indicados no item II do art. 167, serão averbados na matrícula as sub-rogações e outras ocorrências que, por qualquer modo, alterem o registro. Redação atual: Art. 246. Além dos casos expressamente indicados no inciso II do caput do art. 167 desta Lei, serão averbadas na matrícula as sub-rogações e outras ocorrências que, por qualquer modo, alterem o registro ou repercutam nos direitos relativos ao imóvel.
(12) Tese C) O regime registral brasileiro admite a averbação de informações facultativas de interesse ao imóvel, inclusive ambientais. Tese D) O Ministério Público pode requerer diretamente ao oficial de registro competente a averbação de informações alusivas a suas funções institucionais
(13) Vale lembrar que o CTN é lei complementar, e as leis 13.097 e 14.382 são leis ordinárias.
(14) Art. 185. Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa.
(15) https://encurtador.com.br/chKQT
(16) A Lei nº 9.532/1997, art. 64.
(17) Lei 8.397/1992, art. 2º.


Publicado originalmente no Boletim Migalhas nº 5.806, de 12/03/2024

sábado, 2 de março de 2024

PONTO DE VISTA - Especialistas analisam o Marco Legal das Garantias



O chamado Marco Legal das Garantias, como é conhecida a Lei nº 14.711/2023, foi sancionado em outubro de 2023 e teve origem no PL nº 4.188/2021. O texto, que altera diversas outras leis, dispõe sobre o aprimoramento das regras de garantia, a execução extrajudicial de créditos garantidos por hipoteca, a execução extrajudicial de garantia imobiliária em concurso de credores, o procedimento de busca e apreensão extrajudicial de bens móveis em caso de inadimplência de contrato de alienação fiduciária, o resgate antecipado de Letra Financeira, a alíquota de imposto de renda sobre rendimentos no caso de fundos de investimento em participações qualificados que envolvam titulares de cotas com residência ou domicílio no exterior e o procedimento de emissão de debêntures.

De acordo com o relatório “Ease of Doing Business” de 2020, do Banco Mundial, a taxa de recuperação de garantias no Brasil era de 18%, enquanto a média mundial era de 37%. Isso mesmo com o período de negociação no Brasil sendo de quatro anos, que é maior do que a média da América Latina, de 2,9 anos.Para analisar de forma detalhada a lei, quais ganhos e desafios ela traz com as diversas mudanças, novidades e possibilidades para o sistema de garantias, falamos com especialistas.



Qual sua análise sobre o Marco Legal das Garantias? 

Fábio Machado Baldissera e Felipe Tremarin: Entendemos que o Marco Legal das Garantias veio com o intuito de aperfeiçoar as garantias reais, em especial o instituto da hipoteca e da alienação fiduciária sobre bens imóveis, bem como de aprimorar o sistema de execuções de garantias por meio do regime extrajudicial. Isso, ao nosso entender, traz maior segurança aos operadores do mercado financeiro, o que poderá resultar em uma maior concessão de crédito e na redução de custos envolvidos. 

Mauro Antônio Rocha Com o inapropriado rótulo de “marco legal das garantias” – sabiamente descartado do texto final – a Lei nº 14.711 foi sancionada em 30 de outubro de 2023 com o objetivo de “aprimoramento das regras relativas ao tratamento do crédito e às [sic] medidas extrajudiciais para recuperação de crédito”. Norma legal de trajetória insólita, o projeto de lei apresentado em 2021 – elaborado com retalhos de sugestões provindas de diversas minutas divulgadas nos últimos anos pelas entidades representativas das instituições financeiras – foi surpreendentemente reanimado para atender ao interesse da área econômica do governo atual, em 2023.

O clamor da mídia e o imoderado entusiasmo dos especialistas patrocinados propiciaram a exagerada repercussão das promessas de redução das taxas de juros, a expansão do crédito, a geração de empregos, o destravamento do mercado, o acirramento da concorrência entre instituições e o aumento da participação do crédito imobiliário no PIB anunciado pelo marketing das entidades e associações. A nosso ver, sopesados os habituais e nunca efetivamente comprovados efeitos de acesso fácil ao crédito barato, as mudanças trazidas se conformam de maneira a enrijecer a execução da dívida, realçando a intuição comum de que os fiduciantes não têm patronos, defensores ou simpatizantes na Administração Pública ou no Congresso. 

Quais são as principais mudanças trazidas pela nova legislação? 

Fábio Machado Baldissera e Felipe Tremarin: São diversas as inovações trazidas pelo Marco Legal das Garantias que, como mencionado anteriormente, visam aperfeiçoar o regime das garantias no Direito brasileiro. Entre as principais inovações, destacamos aquelas relacionadas, principalmente, às inovações trazidas aos institutos da hipoteca e da alienação fiduciária de bens imóveis, bem como aquelas relacionadas à excussão extrajudicial de tais garantias, sem excluir, obviamente, a importância das diversas outras inovações trazidas pela legislação, como é o caso, por exemplo, das alterações realizadas no âmbito registral e notarial e aquelas trazidas ao mercado de capitais, dando destaque à simplificação do procedimento de emissão de debêntures. Destacamos as seguintes alterações: a previsão de alienação fiduciária superveniente de bem imóvel, a partir da qual será possível uma nova alienação fiduciária sobre o mesmo imóvel; a possibilidade de estender a hipoteca e/ou a alienação fiduciária de bem imóvel, por meio da qual a garantia já constituída possa ser utilizada como garantia de operações novas e autônomas de crédito; a criação de procedimento que possibilita a execução extrajudicial dos créditos garantidos por hipoteca em procedimento a ser realizado perante o Cartório de Registro de Imóveis competente, em procedimento similar à excussão da alienação fiduciária e a criação da execução extrajudicial da garantia imobiliária em concurso de credores, por meio do qual, em situações em que houver mais de um crédito garantido pelo mesmo imóvel, o Oficial do Registro de Imóveis Competente intimará simultaneamente todos os credores concorrentes para habilitarem os seus créditos. 

Mauro Antônio Rocha: Naquilo que nos interessa, merecem destaque positivo (i) a permissão de contratação e registro da alienação fiduciária de bem imóvel superveniente, regulada pelos §§ 3º a 10 incluídos ao art. 22 da Lei nº 9.514/1997, proporcionando o aproveitamento do gap entre o total do crédito garantido e o valor do imóvel integralmente transmitido em caráter resolúvel ao fiduciário, que desperdiça oportunidades de crédito e garantia; (ii) a extensão da garantia fiduciária existente para operações de crédito novas e autônomas de qualquer natureza, mediante simples aditamento contratual e independentemente do cancelamento da garantia originária, para assentir com a utilização do crédito residual concedido e aproveitamento da garantia excedente; (iii) a possibilidade de execução extrajudicial de créditos garantidos por hipoteca, regulada pelo art. 9º da Lei 14.711, que apostou no aproveitamento dos procedimentos conhecidos e já experimentados da execução extrajudicial da garantia fiduciária, com as adaptações requeridas por se tratar, a hipoteca, de direito real de garantia sobre coisa alheia. No campo dos procedimentos de execução extrajudicial, foi positiva a inserção do art. 27-A, que simplificou a intimação do fiduciante no caso de dívida garantida por múltiplos imóveis, facilitando a consolidação da propriedade e o leilão dos imóveis em coerência com as premissas gerais da garantia fiduciária. Inexplicável, no entanto, a ausência de detalhamento procedimental mínimo de controle das informações e anotações entre os ofícios de registro envolvidos. Destacam-se negativamente (i) o recrudescimento sistemático dos procedimentos de execução extrajudicial, especialmente com relação às intimações e realização da garantia em leilão público, sempre em detrimento dos interesses dos devedores; (ii) a expansão da obrigação de pagamento de saldo devedor remanescente (até então devido apenas em operações específicas e pontuais previstas na legislação extravagante) para contratos de qualquer natureza, com a exceção para contratos de crédito habitacional de que trata o § 4º do art. 26, exigível por meio da excussão das demais garantias da dívida ou, se for o caso, de ação de execução, quando o produto do leilão for insuficiente à quitação total do crédito e encargos (§ 5º-A do art. 27 da Lei de Regência); (iii) a redução para 50% do valor do imóvel, em qualquer situação, do referencial mínimo admitido para venda em leilão, previsto no § 2º do art. 27, pelo aproveitamento oportunista de proposta que estabelecia o percentual referido na lei processual para caracterizar o preço vil como valor mínimo na execução de dívidas de valor inferior, permitindo que o credor abdique unilateralmente da recuperação integral do crédito em proveito do recebimento do valor da dívida remanescente. 

O Marco Legal das Garantias irá impulsionar a atividade imobiliária e os atos de registro no Brasil? Quais são os pontos de atenção para os profissionais da área?
 
Fábio Machado Baldissera e Felipe Tremarin: Sim, entendemos que o Marco Legal das Garantias irá impulsionar a atividade imobiliária, uma vez que ele tem o objetivo de aperfeiçoar as garantias reais sobre imóveis, o que trará maior segurança e confiança aos operadores do mercado. Isso tende a resultar em uma maior concessão de crédito e na redução de custos envolvidos em financiamentos. No entanto, alertamos que a nova legislação não irá afastar de pronto todas as dificuldades e inseguranças enfrentadas pelo setor imobiliário. Isso levará tempo e demandará um trabalho em conjunto entre o setor, juristas e advogados especializados em Direito Imobiliário, de modo que juntos possam levar ao Poder Judiciário argumentos favoráveis ao setor com relação às inovações trazidas pelo Marco Legal das Garantias. 

Mauro Antônio Rocha: Os pontos positivos anteriormente referidos, em especial a permissão para o “recarregamento” da garantia, têm potencial para impulsionar, ainda que de forma residual, o mercado imobiliário e, principalmente, proporcionar o melhor aproveitamento do bem alienado fiduciariamente. Outros dispositivos não comentados dessa feita (execução extrajudicial de garantias fiduciárias de bem móvel, solução negocial prévia ao protesto e a administração fiduciária de garantias, por exemplo) deverão tracionar as atividades dos registros de títulos e documentos e dos cartórios de protestos. Porém, não querendo atrapalhar a festa, a simples leitura da lei é suficiente para identificar alguns procedimentos interessantes para a modernização da lei e ampliação da segurança jurídica dos contratantes, enquanto outros claramente potencializam controvérsias que deixarão o instituto exposto às interpretações judiciais, bem como para ressaltar o superdimensionamento dos benefícios e a ausência no texto legal de novidade capaz de suportar a bonança prometida pela mídia e pelos mercados. Ao profissional do Direito, notadamente àqueles que advogam em favor dos devedores, cabe buscar a correta compreensão das alterações legais trazidas de forma a monitorar a legalidade das atividades praticadas pelos oficiais de registro no âmbito da execução extrajudicial, especialmente a regularidade das intimações, da consolidação da propriedade e – principalmente – da observância dos prazos legais para realização dos leilões públicos, das regras relativas aos preços de oferta e venda do imóvel, bem como da fiscalização das despesas, taxas e emolumentos adicionados ao saldo devedor e da prestação de contas para a apuração final dos saldos devedor e remanescente da dívida e quitação da dívida após a arrematação.

FÁBIO MACHADO BALDISSERA é Advogado. Doutor em Direito. Especialista da área imobiliária.

FELIPE TREMARIN é Advogado. Especialista em Direito Imobiliário pelo Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter).

MAURO ANTÔNIO ROCHA é Advogado. Especialista, Palestrante e Instrutor com pós-graduação em Direito Imobiliário pelo Instituto Nacional de Ensino Superior e Pesquisa/SP, e em Direito Notarial e Registral pela Faculdade Arthur Thomas, Londrina. Professor convidado para diversos cursos de graduação e pós-graduação. Associado AASP desde 1990.
  
(Publicado originalmente no Boletim AASP #3188, de março/2023 - acesso restrito aos associados da AASP)

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Especialistas avaliam que marco legal das garantias era necessario

Mauro Antônio Rocha (☆)

Em evento online promovido pelo Migalhas para discutir o marco legal das garantias (lei 14.711/23), os palestrantes concordaram que a legislação era necessária, embora tenham discordado de algumas das mudanças propostas. Sob a coordenação de Mauro Antônio Rocha, o encontro reuniu renomados especialistas em quatro painéis, abordando 10 subtemas.

Ainda na explanação inicial, Mauro Antônio Rocha ressaltou que a lei é bastante recente e ainda está sendo analisada pelos especialistas. O coordenador também lembrou que a proposta não tramitou rapidamente no Senado. "É preciso recordar que a matéria tratada no projeto não é nova. Estamos discutindo esse assunto desde pelo menos 2007."

O marco legal das garantias, sancionado no final de outubro, possibilita que um mesmo bem seja utilizado como garantia em mais de um pedido de empréstimo. A norma estabeleceu novas regras e condições para a realização de penhora, hipoteca ou transferência de imóveis para pagamento de dívidas.

Dentre os pontos relevantes, a lei permite ao devedor contrair novas dívidas com o mesmo credor da alienação fiduciária original, desde que dentro do limite da sobra de garantia da operação inicial. Por exemplo, se o valor garantido por um imóvel no primeiro empréstimo for de até R$ 100 mil e a dívida original for de R$ 20 mil, o devedor poderá tomar novo empréstimo junto ao mesmo credor em valor de até R$ 80 mil.



Publicado originalmente no Boletim Migalhas