segunda-feira, 11 de março de 2024

Escrow Account – instrumento de segurança jurídica máxima ao negócio imobiliário. (Parte II)


Eduardo Moreira Reis e Mauro Antônio Rocha

Considerações complementares sobre o ‘escrow account’, instrumento jurídico-financeiro incluído na Lei 8.935/1994 pelo Marco Legal das Garantias para conferir máxima segurança jurídica ao adquirente de imóvel.

Na parte inaugural deste trabalho, publicada no Boletim Migalhas Nº 5.805, de 11 de março p.p.(1), dissertamos sobre a insegurança jurídica e o desgaste emocional e psicológico a que é submetido o investidor ou adquirente de bem imóvel –por conta do desconhecimento das variáveis jurídicas estruturais e conjunturais que tornam incerto o acolhimento do instrumento de escritura pública ou contrato particular pelo Ofício de Registro de Imóveis competente e o indispensável registro do título nele inscrito, para tornar definitiva e inatacável a transmissão da propriedade.

Nesta parte complementar trataremos das razões jurídicas e sociais que deram azo a essa insegurança e da previsibilidade jurídica desejada pelos participantes dos “negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis”.(2)

1. Das origens da insegurança no mercado imobiliário brasileiro.

A segurança jurídica no mercado imobiliário é uma necessidade básica para a economia de qualquer país. No Brasil, país em desenvolvimento, a segurança outorgada se mostra frágil quando confrontada com uma estrutura fundiária rural ainda em organização sob os aspectos cadastrais e registrais, com desordenada urbanização, alto índice de informalidade e disponibilidade de terras que contrastam com o enorme potencial de crescimento do mercado imobiliário, assumindo a temática extraordinária importância.

Da concentração fundiária rural à urbanização súbita irrompida entre o início e o fim do século passado – e desta à necessidade de imediata e obrigatória inserção, no século atual, no mercado globalizado de economia financeira – o sistema jurídico imobiliário brasileiro busca saltar das práticas antigas às pós-modernas sem ter tido a necessária maturação das modernas, causando evidentes descompassos, tanto normativos quanto práticos.

As demandas sociais por segurança jurídica e fiabilidade no mercado de imóveis, e ao mesmo tempo por maior governança territorial, têm premido o Poder Legislativo a sucessivas iniciativas em prol da modernização desse sistema normativo. Tais iniciativas, a nosso sentir, têm ocorrido principalmente sob quatro principais diretrizes: desjudicialização de procedimentos envolvendo imóveis; modernização e prestígio crescente aos serviços extrajudiciais de tabelionato e registros públicos; ampliação das garantias ao crédito imobiliário e modernização de sistemas cadastrais de gestão territorial.

Essa evolução sistêmica é lenta, e no caso brasileiro – por natureza conservador e burocrático – muitas vezes descompassada entre novos e antigos institutos jurídicos, demandando cautelas diversas, por parte do adquirente de imóveis, além de um instrumental jurídico que o proteja das fragilidades do sistema, por parte do Estado.

Dentre esses diversos instrumentos, alguns apenas apontados ao longo deste texto, abordamos especificamente aquele já conhecido como escrow account (que em português pode ser traduzido como “conta-caução” ou “conta de garantia”) (3), conhecido e largamente utilizado no comércio de bens móveis, admitido no ordenamento jurídico como contrato acessório atípico, que foi inserido na recente Lei 14.711/23 como atividade a ser exercida, sem exclusividade, pelos tabeliães de notas, com operacionalização simplificada, porém bem definida na lei, protegido pelo depósito em instituição financeira e pela segregação patrimonial de qualquer constrição não decorrente do próprio negócio contratado, com novas e maiores potencialidades em prol dos negócios imobiliários.

2. Da segurança jurídica dinâmica e as lacunas entre os microssistemas normativos.

O conceito de segurança jurídica varia na doutrinaiv, podendo ser entendido, dentre outras concepções, como uma elevada capacidade de prever as consequências jurídicas de fatos ou atos pela maioria das pessoas, o que envolve uma coerência e previsibilidade jurídica acessívelv e uma disponibilidade de informações para a coletividade em geral (4).

Para o Direito Registral Imobiliário, a segurança jurídica é alcançada em duas vertentes: segurança jurídica estática e segurança jurídica dinâmica (7). A segurança jurídica estática se dá pelo efeito de assegurar a estabilidade política do domínio; e a segurança dinâmica, com a possibilidade de uma transmissão segura dos direitos. A segurança dinâmica é aquela almejada pelo adquirente num negócio imobiliário, fator essencial para a formatação e implementação segura dos negócios – podendo-se dizer que o objetivo da segurança dinâmica dos negócios imobiliários é exatamente se tornar estática para o adquirente (8).

Desde a inauguração do mercado formal de terras no Brasil, pela Lei 601 de 1850, até os dias atuais, as regras relativas ao mercado imobiliário vêm se adequando às necessidades socioeconômicas e se positivando em microssistemas normativos conexos, mas que nem sempre evoluem e se transformam ao mesmo tempo. O que se denomina genericamente de Direito Imobiliário é composto desses microssistemas, com regras cíveis obrigacionais e reais, sucessórias, de família, urbanísticas, registrais, tributárias, agrárias, ambientais, empresariais e outras mais. Assim sendo, por exemplo, as regras para produção imobiliária horizontalizada e verticalizada (loteamentos e incorporações) se interconectam com a legislação vigente de registros públicos, legislação contratual geral e legislação processual civil, dentre outras; os imóveis rurais têm seu regramento próprio do Direito Agrário, com regras registrais, cadastrais e ambientais próprias e posteriores ao Estatuto da Terra, de 1964; os imóveis públicos têm um regramento especial, que articula com a legislação cível e registral; a legislação minerária contém institutos afetos ao mercado imobiliário, como as servidões minerárias; a proteção a grupos étnicos condiciona o mercado de terras; a legislação de desapropriações e tombamentos igualmente condiciona o tráfico imobiliário.

Esses microssistemas se modificaram estruturalmente ao longo do século XX, em especial com o advento do regime matricial dos registros públicos de imóveis e com o status constitucional atual das normas ambientais e urbanísticas, e já sofreram mudanças diversas no século atual. Para possibilitar a lida com essa multiplicidade de direitos e dados, as alterações legislativas recentes têm convergido para o crescente fortalecimento do registro público de imóveis, como guardião dos direitos sobre imóveis e da segurança jurídica dinâmica, sendo o fólio registral, por excelência, o locus da concentração segura da informação jurídico-imobiliária.

Em paralelo, alguns procedimentos envolvendo a propriedade imobiliária que outrora dependiam da atuação direta do Poder Judiciário tiveram sua competência estendida às serventias extrajudiciais, como a retificação de registro, a usucapião, as execuções hipotecárias, as adjudicações compulsórias e outros mais. Outros procedimentos tiveram sua competência atribuída ao serviço registral, como a regularização fundiária urbana. Ainda nessa tendência “desjudicializante” o Decreto-Lei 745/69 foi alterado em 2015(9), dando novo rumo interpretativo aos vetustos entendimentos jurisprudenciais e doutrinários de que os contratos de promessa de compra e venda de imóveis, mesmo com cláusula resolutiva expressa, necessitariam de intervenção judicial para sua resolução.

Nesse aprimoramento legislativo do sistema registral, a informatização dos cadastros e registros públicos possibilitou meios mais eficientes de preservação de direitos de credores, como as indisponibilidades. Num átimo de tempo, gravames são instituídos sobre quaisquer bens imóveis do devedor em território nacional (inclusive sobre bens móveis, com o SERP – Sistema Eletrônico de Registros Públicos, previsto nas leis 11.977/09 e 14.382/22). O dado registral está facilmente acessível, com as centrais registrais digitais, e tanto a legislação quanto os tribunais, ao aplicá-la, têm ampliado a via da averbação registral como meio de publicização de direitos, ou até de expectativa de direitos sobre os elementos objetivos e subjetivos da matrícula.

O chamado princípio da concentração dos gravames e ônus na matrícula imobiliária, ou seja, a possibilidade de o interessado visualizar a exata situação jurídica de um imóvel mediante a sequência registral retratada no fólio real, sem ter que realizar infindáveis pesquisas acautelatórias (ações reais ou reipersecutórias, por exemplo), antes de adquirir o bem ou tomá-lo como garantia, é um imperativo fundamental para a segurança jurídica. Tal princípio já existia há muito no ordenamento jurídico brasileiro, mas na prática o “clandestinismo registral” o enfraqueceu ao longo dos anos. A Lei 13.097/2015, veio reforçar em muito tal princípio, aumentando a segurança jurídica do adquirente de boa-fé quanto a débitos ou gravames do alienante não inscritos na matrícula. A Lei 14.382/22 acrescentou um parágrafo ao art. 54 da referida lei, que passou a viger com a seguinte redação:
[...]

“Art. 54. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações:

I - registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias;

II - averbação, por solicitação do interessado, de constrição judicial, de que a execução foi admitida pelo juiz ou de fase de cumprimento de sentença, procedendo-se nos termos previstos no art. 828 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil);

III - averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei; e

IV - averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do inciso IV do caput do art. 792 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).

§ 1º Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no registro de imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos arts. 129 e 130 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel.

§ 2º Para a validade ou eficácia dos negócios jurídicos a que se refere o caput deste artigo ou para a caracterização da boa-fé do terceiro adquirente de imóvel ou beneficiário de direito real, não serão exigidas:

I - a obtenção prévia de quaisquer documentos ou certidões além daqueles requeridos nos termos do § 2º do art. 1º da Lei nº 7.433, de 18 de dezembro de 1985; e

II - a apresentação de certidões forenses ou de distribuidores judiciais.

[...]

Há respeitáveis (embora ainda minoritários) entendimentos doutrinários no sentido de que as regras sobre a concentração de atos na matrícula positivadas pelas leis 13.097 e 14.382 mudaram o sistema registral imobiliário brasileiro, que até então se pautava pela legitimação registral, caracterizado pela presunção relativa de veracidade da inscrição registral imobiliária (10), para o sistema de fé pública registral, no qual aquele que, de boa-fé, confiou na informação registral e a partir dela adquiriu um direito real sobre um imóvel, terá seu direito protegido em caso de defeitos ou nulidades na cadeia dominial anterior. O sistema da legitimação registral é o praticado, por exemplo, na Espanha, enquanto o sistema da fé pública registral é conhecido como sistema alemão. Todavia, como se detalhará adiante, ainda que a doutrina majoritária e os tribunais se perfilhem a tal entendimento, a proteção do adquirente em face da fraude contra credores ou da fraude à execução praticada pelo transmitente de forma alguma exaure os riscos da aquisição imobiliária.

A Lei 14.382 também alterou, de forma discreta, mas significativa, o art. 246 da Lei 6.015/1973(11), alargando a admissibilidade das chamadas “averbações facultativas”. E o STJ, ao julgar o REsp 1.857.098-MS, estabeleceu, por unanimidade, teses vinculantes referentes ao direito de acesso à informação no Direito Ambiental, destacando-se, para o Registro de Imóveis, a possibilidade de averbação de informações facultativas sobre o imóvel e a possibilidade de requisição diretamente ao registro de imóveis, pelo Ministério Público, da averbação de informações alusivas a suas funções institucionais(12). Tudo isso contribui para a concentração dos dados na matrícula, destacando-se que até mesmo direitos ainda não “calcificados”, como no caso de inquéritos e procedimentos investigativos do Ministério Público, segundo a tese firmada pelo STJ, a princípio são passíveis de averbação.

No tocante aos cadastros públicos de imóveis foram criados o Cadastro Ambiental Rural (CAR), integrante do Sistema Nacional de Cadastro Ambiental (SICAR), o Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF), Cadastro Nacional de Imóveis Rurais (CNIR), o Cadastro Fiscal de Imóveis Rurais (CAFIR) e o Cadastro Imobiliário Brasileiro (CIB), este abrangendo os imóveis rurais e urbanos, como parte integrante do Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais (SINTER). Existem ainda os cadastros imobiliários municipais e estaduais, tanto urbanísticos, fiscais e administrativos, e todos eles, em maior ou menor grau, se fazem necessários para uma informação segura sobre direitos relativos a imóveis. E sua interconexão com o registro imobiliário se dá exatamente pelas averbações nas matrículas imobiliárias. Tais cadastros, ao longo do tempo, contribuirão para uma base fundiária confiável em todo o país, elevando em muito a segurança jurídica. Mas vários, atualmente, estão sendo ainda iniciados ou apenas começaram a ser “alimentados”.

Apesar das inovações legislativas, da desjudicialização, dos novos instrumentos de crédito real disponíveis para o mercado, da tecnologia digital e da facilitação da concentração das informações no fólio registral, a aquisição de imóveis no Brasil não deixou de ser um negócio de risco. Tal risco se dá por questões objetivas e subjetivas, ou mesmo por óbices documentais de ordem formal.

Há diversos níveis de risco quanto aos imóveis, desde os mais baixos, de imóveis que já passaram por crivos jurídicos administrativos e registrais, como unidades condominiais resultantes de incorporações ou lotes de loteamentos regulares, até os mais elevados, de parcelas de terrenos, urbanos ou rurais, ainda pendentes de alguma forma de regularização, e questões de ordem pessoal dos alienantes, sejam pessoas naturais ou jurídicas. E não são raras as situações em que os direitos sobre o imóvel pretendido foram havidos pelo alienante mediante títulos antigos e defeituosos, pendentes de registro.

Ainda que se considere o princípio da concentração do art. 54 da Lei 13.097, há os débitos fiscais inscritos em dívida ativa, que pela redação do art. 185 do Código Tributário Nacionalxiii se presumem fraude à execução (14), as aquisições originárias, que se implementam independentemente do registro (usucapião, desapropriação etc.,), as situações falimentares e outras mais, que representam exceções ao princípio. E há situações que, mesmo albergadas pelo referido princípio, frequentemente são opostas ao adquirente por força de decisões judiciais, especialmente trabalhistas e nas varas de família. Essas exceções não afastam a necessidade da chamada due diligence, que é a pesquisa e análise prévia de fatos jurídicos relativos ao imóvel e ao alienante, para verificação dos riscos envolvidos no negócio pretendido.

Para exemplificar o que aqui chamamos de descompasso sistêmico, não é raro que em relação a um único terreno urbano se tenha uma situação registral de regularidade formal coexistindo com um cadastro tributário que reflete uma configuração diferente, um cadastro urbanístico também diverso e um procedimento de tombamento, ou um decreto de utilidade pública, ainda não levados a registro. E que nesse hipotético terreno tenha havido, no passado, uma atividade contaminante do solo, (como por exemplo, um posto de combustíveis), que até a implementação de medidas corretivas impossibilitará o licenciamento de empreendimentos no imóvel – sem qualquer menção na matrícula. Ou ainda que num caso de loteamento anterior à atual legislação de parcelamento do solo e de registros públicos sejam exigidas contrapartidas urbanísticas pelo Município, para considerar o imóvel um lote regular e certificalo como tal, ou mesmo que o próprio serviço registral imobiliário exija tal certidão municipal, ou eventualmente exija averbação de construções existentes, desdobro ou instituição de condomínio em caso de mais de uma edificação no terreno, como condição para uma abertura de matrícula.

Igualmente é perfeitamente possível que um terreno rural de registro regular, já georreferenciado e com cadastro e reserva ambiental definida apresente sobreposição a outro, não georreferenciado e cadastrado, ou tenha um passivo ambiental (que é obrigação propter rem, nos termos do art. 2º, § 2º do Código Florestal) ainda em fase de investigação, ou se situe em área de proteção antropológica (indígenas e quilombolas, por exemplo), área de unidade de conservação ou zona de amortecimento desta, sítio arqueológico ou mesmo em área de concessão de direito minerário ou de outra servidão de natureza administrativa - sem qualquer menção na matrícula.

Percebe-se que a questão é complexa, e mesmo as regras mais recentes de desjudicialização e garantias ao adquirente ainda se encontram em processo de assimilação pelo meio jurídico, em especial pelos juízes e tribunais. No tocante aos cadastros públicos, cujos dados são sujeitos a averbação e representam também meios para maior segurança, a gradativa e demorada implementação e a cultura do clandestinismo registral são obstáculos significativos. Tudo isso representa risco ao adquirente, evidenciando a necessidade da due diligence imobiliária em grande parte dos negócios.

3. A duplicidade formal e a praxe negocial: a demanda por mais garantias ao adquirente após a formação do título translativo e a disponibilização dos recursos financeiros

Sabe-se que conforme o art. 1.245 do Código Civil Brasileiro, a propriedade imóvel transfere-se entre vivos com o registro do título translativo. E que tal título, pela regra geral do art. 108 do Código, deve se dar pela forma da escritura pública, em negócios de valor superior a 30 salários-mínimos. E que na quase totalidade dos negócios de compra e venda de imóveis sem financiamento, o vendedor exige que o pagamento do preço seja integralizado até a data da lavratura da escritura.

A maioria dos compradores de imóveis, por falta de conhecimento sobre a matéria registral imobiliária, supõe igualmente que as obrigações do vendedor terminam com a assinatura da escritura, e não reservam qualquer parcela do pagamento para se precaver contra problemas na fase de registro – que são muito comuns. Outros potenciais adquirentes, geralmente assessorados por advogados, deixam de fazer o negócio, exatamente por receio de, após pagarem todo o preço, terem problemas na fase registral, e não conseguirem mais recuperar o valor pago. Tais compradores precavidos, que por vezes perdem bons negócios por receio de dificuldades registrais, têm suas razões: pois uma parcela significativa das escrituras de compra e venda celebradas no Brasil, ao serem levadas ao Registro de Imóveis, não são registradas de imediato. Destas, muitas jamais alcançarão o registro, e outras somente são registradas após o atendimento de exigências registrais, que podem representar tempo e custos consideráveis. Esses registros impossíveis ou demorados têm como resultados conflitos diversos, ações de desfazimento dos negócios, de indenização, procedimentos de usucapião como forma de se contornar os óbices registrais e outras mais.

Fator estrutural que acentua esse problema está nas vicissitudes do procedimento de dúvida registrária previsto no art. 198 da Lei nº 6.015/73. Embora tenha natureza administrativa (art. 204), a dúvida é julgada por um juiz de direito, com intervenção do Ministério Público, e em alguns Estados é sujeita a duplo grau obrigatório de jurisdição. Com exceção das grandes comarcas, que possuem varas especializadas, o processo é julgado por um juiz de vara cível, ou até de vara única, já sobrecarregado por feitos de naturezas diversas e muitas vezes sem vivência com as especificidades do Direito Registral. O resultado não poderia ser outro senão uma tramitação lenta e sujeita a entendimentos diversos, o que discrepa de outros instrumentos legais instituídos exatamente em prol da funcionalidade do sistema registral.

Quando o tempo é crucial para o interessado no registro, esperar mais de um ano por uma decisão incerta é uma opção pouco aceitável - o que leva à subutilização desse instrumento tão importante, hoje evitado a todo custo pelo jurisdicionado, que prefere o “mal menor” e, quando viável, cumpre a exigência equivocada para ter o ato registral efetivado. Quando é impossível atender à exigência e a dúvida é a única via, o prejuízo pode ser significativo.

E no caso do adquirente que precisa do registro em tempo hábil para um empreendimento, por exemplo, qualquer possibilidade, ainda que em tese, do manejo da via da dúvida registral pode contraindicar o negócio. Esse é mais um exemplo do descompasso entre microssistemas normativos do Direito Imobiliário, sobre o qual inclusive já nos manifestamos em outras oportunidades(15) .

Em tais situações a instituição de cláusula resolutiva pode viabilizar a resolução contratual, mas a recuperação do valor, normalmente pago quando da outorga escritura, dependerá da solvabilidade do vendedor – o que pode representar outro problema. Tais aspectos inibem não só os negócios entre brasileiros, mas também as aquisições de imóveis por estrangeiros, que podendo optar por investir em países onde o risco na aquisição de imóveis é muito menor, relutam em investir com tantos riscos e variáveis.

Os fatos ora mencionados, familiares para quem milita na área imobiliária, revelam uma demanda por instrumentos jurídicos que possam garantir ao adquirente que caso ele destaque de seu patrimônio e disponibilize ao comprador o preço pactuado, e surjam impeditivos ou condicionantes ao negócio, mais ou menos previsíveis, lhe seja possível desfazer o contrato e reaver o valor, no todo ou em parte, sem necessidade de recorrer ao Poder Judiciário. E ao mesmo tempo garantir ao alienante que ainda que ele outorgue os direitos reais sobre o bem antes do recebimento do preço, o valor estará a salvo e garantido, apenas pendente da implementação de uma condição. Tal condição pode ser uma qualificação registral positiva, a solução de um problema envolvendo o imóvel, o pagamento de uma dívida que possa ameaçar o negócio ou outra qualquer, pactuada entre as partes.

4. A questão da fraude contra credores e a oportunidade de negociação da dívida pelo alienante.

Não são incomuns as situações nas quais o alienante se encontra endividado, e pretende vender o bem exatamente para quitar seus débitos. E do outro lado, o adquirente deseja comprar o imóvel, mas teme a configuração da fraude contra credores ou fraude à execução. Nos casos de débitos fiscais em dívida ativa, por exemplo, nem mesmo a ausência de averbação da dívida ou de ação executiva fiscal livram o adquirente do risco de uma discussão judicial. E havendo, por exemplo, um arrolamento administrativo de bens do contribuinte(16), a venda poderá até ensejar o manejo de medida cautelar fiscal (17)

Em tais situações, se houvesse a garantia para as partes de que satisfeito credor do vendedor, a venda convalescerá válida e eficaz, livre do risco da fraude a credores para o adquirente, o negócio poderia perfeitamente se realizar, mediante a reserva do valor dispendido pelo comprador, nas mãos de uma terceira pessoa, com o direcionamento específico dos recursos financeiros para a satisfação das dívidas e entrega do remanescente à parte alienante do imóvel.

Ressalte-se que para o devedor a disponibilidade do recurso pode inclusive viabilizar negociações com a parte credora, com propostas à vista. No caso do Fisco Federal, por exemplo, a Lei 13.988/2020 prevê a transação resolutiva de litígio relativo à cobrança de créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária.

A escrow account, como se vê, é um instrumento que como contrato acessório atípico já era útil para a lida com as variáveis e riscos das aquisições imobiliárias, e que já poderia ser utilizado nos exemplos acima. Mas o instituto, no tocante à transmissão de imóveis, padecia de fragilidades, como a penhorabilidade do valor depositado, e para os negócios imobiliários merecia tratamento legal próprio - o que agora o texto do Marco Legal das Garantias (Lei 14.711/23) claramente buscou sanar.

5. Da simplificada operacionalização do escrow account.

Para a contratação do escrow account a parte a quem compete efetuar o pagamento consignará, por meio do tabelião de notas, o preço total ou parcial da aquisição ou valores conexos, que será depositado em instituição financeira credenciada e conveniada, constituindo patrimônio de afetação que não poderá ser constrito por autoridade judicial ou fiscal, por motivo estranho ao próprio negócio, para que, ao final, constatada a ocorrência ou a frustração das condições negociais aplicáveis seja lavrada ata notarial, a pedido das partes,para efetivar e certificar o repasse dos valores devidos à parte devida e a eficácia ou a rescisão do negócio celebrado.

O escrow account é um contrato inominado e atípico, com função de garantia, em favor de sujeito alternativamente determinado. Apesar de concentrado, deve abrigar os requisitos de validade do art. 104 do Código Civil – forma prescrita em lei, partes capazes, objeto lícito, possível, determinado ou determinável, livre manifestação da vontade.

O escrow account poderá ser formalizado em contrato específico, no qual serão feitas menções cruzadas de vínculo com o negócio jurídico garantido ou em instrumento único mediante a inclusão de suas cláusulas e condições específicas ao conteúdo do contrato imobiliário principal.

Ainda que os contratos principais imobiliários possam ser pactuados mediante instrumentos particulares – nos casos admitidos expressamente por lei – o contrato de escrow mediado por tabelião de notas deverá ter a escritura pública como forma legalmente prescrita.

As cláusulas específicas do escrow devem ser minudentes e estar perfeitamente delineadas de forma a delimitar as condições e obrigações a serem cumpridas pelas partes, os riscos cobertos, as multas e os encargos, termos ou condições contratualmente previstos para o levantamento dos valores, no todo ou em partes e podem reduzir o nível de discricionariedade do tabelião quanto à análise da ocorrência de condições ou cumprimento de obrigações, elegendo claramente os documentos representativos de cada fato jurídico que serão apresentados, a tempo e modo, para demonstrar o direito ao levantamento do numerário.

É essa aparente simplicidade que se depreende do disposto no art. 7º-A e seus parágrafos inseridos na Lei nº 8.935/1994, pela Lei nº 14.711/2023 (Marco Legal das Garantias), nos seguintes termos:
[...]

Art. 7º-A Aos tabeliães de notas também compete, sem exclusividade, entre outras atividades:

I - certificar o implemento ou a frustração de condições e outros elementos negociais, respeitada a competência própria dos tabeliães de protesto;

II - atuar como mediador ou conciliador;

III - atuar como árbitro.

§ 1º O preço do negócio ou os valores conexos poderão ser recebidos ou consignados por meio do tabelião de notas, que repassará o montante à parte devida ao constatar a ocorrência ou a frustração das condições negociais aplicáveis, não podendo o depósito feito em conta vinculada ao negócio, nos termos de convênio firmado entre a entidade de classe de âmbito nacional e instituição financeira credenciada, que constituirá patrimônio segregado, ser constrito por autoridade judicial ou fiscal em razão de obrigação do depositante, de qualquer parte ou do tabelião de notas, por motivo estranho ao próprio negócio.

§ 2º O tabelião de notas lavrará, a pedido das partes, ata notarial para constatar a verificação da ocorrência ou da frustração das condições negociais aplicáveis e certificará o repasse dos valores devidos e a eficácia ou a rescisão do negócio celebrado, o que, quando aplicável, constituirá título para fins do art. 221 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), respeitada a competência própria dos tabeliães de protesto.


6. Conclusões.

Com as breves notas que aqui se apresentou, apontamos alguns problemas comuns nos negócios imobiliários e os riscos deles advindos para os adquirentes, bem como as lacunas decorrentes do descompasso entre novos e velhos instrumentos dos sistemas normativos que orientam o Direito Imobiliário.

Caminha-se a passos largos para um sistema mais coeso e seguro, mas a realidade atual ainda é de considerável clandestinidade registral e pouca integração entre cadastros e registros. E mesmo institutos jurídicos modernos e promissores, como a concentração de atos e dados na matrícula, demandam uma maturação dos operadores do Direito, sobretudo dos juízes, para que se mostrem eficazes na prática cotidiana. Nesse ponto até a dificuldade política para se votar no mesmo nível constitucional do Código Tributário Nacional, regras que atribuam à Fazenda Pública o ônus de inscrição de seus créditos nas matrículas imobiliárias, representa um mais uma variável de risco aos negócios.

A proliferação de decisões judiciais desacreditadoras do sistema, muitas delas via embargos de terceiro, nos prova a cada dia que essa assimilação é lenta e gradativa. Há ainda o problema dos muitos imóveis que remanescem registrados no sistema de fólio pessoal, com títulos pendentes de registro e abertura de matrículas, e o descompasso sistêmico da lentidão do processamento das dúvidas registrarias, verdadeiro gargalo para a celeridade na transmissão de direitos.

Todos esses fenômenos geram custos e riscos para as operações imobiliárias e amplificam a demanda social por instrumentos que possam facilitar a lida com esses percalços, como o escrow, que agora se reestrutura para os negócios imobiliários.

A nosso ver andou bem o legislador, atendendo a um ponto sensível dos negócios imobiliários e escolhendo, para a gestão desse novo instrumento, um agente especializado e de grande confiabilidade no meio social, que é tabelionato de notas. E a atuação dos advogados das partes contratantes do escrow, na definição das cláusulas e condições contratuais e seus modos de aferição inequívoca, em prol dos interesses e da segurança de seus constituintes, decerto contribuirá para a sua boa aceitação no meio imobiliário.


Eduardo Moreira Reis Advogado especializado em Direito Registral, Imobiliário e Urbanístico. Professor da pós-graduação da PUC/MG. Trabalha há cerca de 30 anos com questões jurídico-fundiárias. Membro da AD NOTARE – Academia Nacional de Direito Notarial, Registral, Crédito e Garantias Imobiliárias.

Mauro Antônio Rocha Advogado especializado em Direito Imobiliário, Notarial, Registral, Crédito e Garantias Imobiliárias. Coordenador de Contencioso Jurídico na Caixa Econômica Federal. Presidente da AD NOTARE – Academia Nacional de Direito Notarial e Registral.


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NOTAS (1) Boletim Migalhas nº 5805, de 11/03/2024.
(2) Art. 108 da Lei nº 10.406/2002 (Código Civil Brasileiro).
(3) https://www.dicionariofinanceiro.com/escrow/, acesso em 1º de março de 2024.
(4) LOUREIRO, Luiz Guilherme, Registros Públicos, teoria e prática, 4. Ed, Forense, SP 2013, p. 265.
(5) ÁVILA, Humberto, Teoria da segurança jurídica, 3ª ed, Malheiros, SP, 2014, p. 139.
(6) SIQUEIRA, Alexis Mendonça Cavichini Teixeira, MAHLMANN, Jean Karlo Woiciechoski, Presunção absoluta e os sistemas de registro de imóveis: dormientibus non sucurrit ius, Coleção IRIB Academia, COP Editora, RJ, 2022, p. 26.
(7) SANTOS, Francisco José Rezende - A Segurança Jurídica e o Registro De Imóveis- mensagem do Presidente do IRIB em carta aberta aos associados
(8) SIQUEIRA e MAHLMANN, 2022, op cit, p. 29.
(9) Decreto-Lei nº 745/1969 - Art. 1º Nos contratos a que se refere o art. 22 do Decreto-Lei nº 58, de 10 de dezembro de 1937, ainda que não tenham sido registrados junto ao Cartório de Registro de Imóveis competente, o inadimplemento absoluto do promissário comprador só se caracterizará se, interpelado por via judicial ou por intermédio de cartório de Registro de Títulos e Documentos, deixar de purgar a mora, no prazo de 15 (quinze) dias contados do recebimento da interpelação. Parágrafo único. Nos contratos nos quais conste cláusula resolutiva expressa, a resolução por inadimplemento do promissário comprador se operará de pleno direito (art. 474 do Código Civil), desde que decorrido o prazo previsto na interpelação referida no caput, sem purga da mora. (com a redação dada pela Lei nº 13.097/2015)
(10) Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis. (...) § 2º Enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel. (...) Art. 1.247. (...) Parágrafo único. Cancelado o registro, poderá o proprietário reivindicar o imóvel, independentemente da boa-fé ou do título do terceiro adquirente.
(11) Redação antiga: Art. 246 - Além dos casos expressamente indicados no item II do art. 167, serão averbados na matrícula as sub-rogações e outras ocorrências que, por qualquer modo, alterem o registro. Redação atual: Art. 246. Além dos casos expressamente indicados no inciso II do caput do art. 167 desta Lei, serão averbadas na matrícula as sub-rogações e outras ocorrências que, por qualquer modo, alterem o registro ou repercutam nos direitos relativos ao imóvel.
(12) Tese C) O regime registral brasileiro admite a averbação de informações facultativas de interesse ao imóvel, inclusive ambientais. Tese D) O Ministério Público pode requerer diretamente ao oficial de registro competente a averbação de informações alusivas a suas funções institucionais
(13) Vale lembrar que o CTN é lei complementar, e as leis 13.097 e 14.382 são leis ordinárias.
(14) Art. 185. Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa.
(15) https://encurtador.com.br/chKQT
(16) A Lei nº 9.532/1997, art. 64.
(17) Lei 8.397/1992, art. 2º.


Publicado originalmente no Boletim Migalhas nº 5.806, de 12/03/2024