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quarta-feira, 27 de junho de 2007

O direito de construir é inerente ao direito de propriedade?

A Constituição Federal de 1988 traz, entre os direitos fundamentais, o direito de propriedade, garantindo ao proprietário o uso, a fruição a disposição e reivindicação do bem, ressalvando, no entanto, que a propriedade deverá atender a sua função social (art.5º, XXII e XXIII).
Os mesmos direitos são garantidos ao proprietário no ‘caput’ do art. 1228 do Código Civil. Da mesma forma, o parágrafo primeiro do citado artigo da lei civil ressalva que “o direito de propriedade deve ser exercido em consonância, com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.”
O direito de construir, como meio de melhor aproveitamento do imóvel ou de incrementar seu valor econômico é, assim, inerente ao direito de propriedade, porém, em seu exercício o proprietário estará limitado e deverá observar a função social de sua propriedade.
Evidentemente, o acatamento do caráter absoluto desse direito como inerente ao direito de propriedade se apresentaria prejudicial à atividade urbanística desenvolvida pelo Poder Público em benefício da coletividade e impossibilitaria seu controle do uso do solo urbano. Por isso, ao Poder Público, detentor do poder de polícia, foi conferida a competência para impor limitações administrativas disciplinadoras dessas construções.
A Prof. Liana Portilho Mattos, no livro “Nova ordem Jurídico Urbanística – Função social da propriedade na prática dos Tribunais” coletou e comparou três significativos acórdãos relativos ao tema aqui tratado e que demonstram com clareza o entendimento de nossos tribunais sobre o assunto. No primeiro, originário da Sexta Câmara Cível do TJRJ, decidiu-se que o Poder Público pode revogar a licença de construir anteriormente concedida e não efetivamente utilizada, face à edição de nova legislação municipal que amplie as restrições ao direito de construir. O segundo acórdão colacionado, originário da Terceira Câmara do mesmo TJRJ, discutiu o dever do Poder Público de indenizar os proprietários de diversos imóveis que sofreram limitações urbanísticas ao seu uso suficientes para impedi-los de edificar nos mencionados lotes. No terceiro acórdão foi analisada a legalidade da negativa de licença pelo poder municipal para a construção de subestação de energia elétrica em área residencial.
Bastante significativos, igualmente, os acórdãos coletados no STJ, nos quais se discute a constitucionalidade da negativa de licença, pela Prefeitura de Ribeirão Preto, para a edificação de prédio residencial em área considerada “corredor comercial”, em que, de acordo com as alegações dos interessados, já existam outros imóveis residenciais, em desacordo com a lei. No presente caso, decidiu o STJ “não caber ao Judiciário dizer sobre o acerto ou desacerto das conveniências municipais em razão do bem comum”. Em outro, discutiu-se a constitucionalidade de legislação municipal que dispôs sobre recuo obrigatório para soerguimento de edificações nos lotes dos recorrentes, impondo-lhes uma limitação administrativa para a proteção de mananciais.
Relatam os historiadores que já no período colonial buscava o Poder Público restringir o direito de construir, principalmente quanto à preservação do arruamento e preservação dos direitos de vizinhança. Já na República, ampliada a competência legislativa municipal as limitações ao direito de construir passaram a ser impostas por leis municipais ou regulamentos administrativos. Ainda assim, o Código Civil de 1916 manteve o caráter exclusivista e absoluto do direito de propriedade. Atualmente, o Direito Civil prega a plenitude do exercício daqueles direitos pelo proprietário, desde que observados os interesses da coletividade e suas necessidades, representados, principalmente, pelo respeito às limitações administrativas e às normas de defesa ambiental, além dos direitos de vizinhança.
Portanto, o princípio da função social da propriedade, que embora previsto em constituições anteriores somente foi ‘revelado’ ao Direito Brasileiro pela Constituição Federal de 1988, destituiu do direito de propriedade o sentido exclusivo, absoluto e individual herdado do Direito Civil anterior, decorrente dos ideais difundidos pela Revolução Francesa que, de certa forma, considerou a propriedade “um direito sagrado”, de maneira a justificar a prevalência do interesse pessoal sobre o interesse coletivo.
Depreende-se das decisões judiciais comparadas pela Prof. Liana Mattos, que ainda prepondera a noção civilista, absoluta e exclusivista do direito de propriedade em detrimento de sua função social preconizada na Constituição Federal, muito embora já seja possível vislumbrar algumas mudanças no entendimento de nossos Tribunais.
Nesse sentido, é válido repetir e transcrever parte do acórdão prolatado no julgamento da Apelação Cível nº 597163518, em 27 de dezembro de 2000, da Sexta Câmara do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
“Injusta” é hoje, antes de tudo, e principalmente em função da urbanização acelerada ocorrida no mundo, inclusive no Brasil, a posse que fere a justiça distributiva, fim último de todo o Estado que se pretenda Democrático e de Direito, como aquele apregoado pela Constituição de 1988. Conclusão que tanto mais se afirma quando se pensa que a escassez de terra não decorre do fato da coisa, da própria natureza, suficientemente pródiga para os brasileiros, mas origina-se de escandalosa concentração da terra em mãos de poucos, da visão do direito de propriedade como ente absoluto e incontrastável.”
De maneira aparentemente conciliadora, a Prof. Liana considera “vacilante” a compreensão do nova marco jurídico-urbanístico por nossos Tribunais, principalmente sua compreensão acerca do caráter materialmente fundamental do direito de propriedade condicionado a uma função social. Entendemos, no entanto, que, muito menos que vacilante, essa compreensão ainda é parca e que a aplicação efetiva da fundamental função social esperada da propriedade permanece tímida e até mesmo temida.
De toda forma, não se pode negar que, já passados quase vinte anos da promulgação da Constituição Federal e quase cinco do Estatuto da Cidade, nossa jurisprudência apresenta um número considerável de decisões importantes que denotam uma lenta e gradual aceitação dos novos parâmetro constitucionais relativos à propriedade e ao direito de propriedade.