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domingo, 10 de agosto de 2008

E você, chamaria o ladrão?

É DIFÍCIL admitir que policiais, como regra, mesmo sabendo que num carro suspeito não há bandidos, mas pessoas inocentes, atirem contra elas. Mais plausível é que, se o fizerem, seja por confusão e descontrole, devido ao estado de tensão em que trabalham, sempre ameaçados de perderem a vida.
Certamente, a morte de inocentes, seja por que causa for, é inaceitável, e há que tomar medidas drásticas para evitá-la, a começar por um rigoroso treinamento, de que carece nossa polícia, e pelo uso, agora adotado, de armas menos letais. Não obstante, esses erros, que são graves, não podem servir de argumento para que se condene a disposição do governador do Rio de não ceder no combate ao crime organizado.
Quem são esses bandidos, como agem? Será que só agora, depois que o governo estadual decidiu desarmá-los, passaram a exercer terror sobre a população favelada e a matar policiais? O grau de violência e ferocidade com que agem não tem limites. Vimos, há pouco, como trataram três rapazes que alguns soldados do Exército lhes entregaram. Mataram os três, mas, antes, os torturaram e mutilaram. Pergunto se isso tem a ver com a política de repressão adotada pelo governo estadual. Sabemos que não. Nos últimos quatro anos e meio, eles mataram 646 policiais, dos quais 504 fora de serviço.
É preciso que se vejam as coisas com objetividade e isenção. Ninguém ignora que os traficantes impõem seu poder de vida e morte sobre os moradores das favelas, a ponto de obrigá-los a deixar as portas das casas abertas para que possam nelas se esconder e escapar das batidas policiais. Por isso, às vezes, o confronto se trava dentro de uma dessas casas e, se um morador morre, a polícia é acusada de matá-lo. Já repararam que, quando alguém é atingido por bala perdida, essa bala saiu sempre da arma do policial?
Sabe-se, agora, que senhoras, moradoras da favela, são obrigadas pelos traficantes a ir à polícia dizer que viram quando o policial atirou no morador.
Não é de hoje que os bandidos decidiram exercer o terror também sobre os policiais. É sabido que nenhum policial se atreve a sair de casa fardado. Todos andam à paisana; só vestem a farda no quartel. Se, em alguma circunstância, o assaltante identifica o assaltado como policial, mata-o na hora. Se você tivesse que viver sob semelhante ameaça, como se comportaria ao se defrontar com um bandido? A polícia precisa prender mais e matar menos. Para isso, entre outras coisas, é preciso manter o controle emocional no exercício de suas tarefas, mas não se pode ignorar a tensão psicológica de quem vive sob constante ameaça. Nada justifica os erros da polícia, mas há que levar em conta que policiais são pessoas como nós, que arriscam a vida por todos, a troco de um baixo salário. Não podemos embarcar no jogo do crime organizado, que viola as normas sociais e põe em risco a segurança de todos. Essas normas não foram inventadas por acaso, e sim porque, sem elas, o convívio humano torna-se inviável. Quem mais necessita da lei são os que habitam as regiões da cidade dominadas pelos traficantes, porque onde não vigora a lei vigora o arbítrio. Mas, já agora com maior freqüência, os moradores das áreas nobres têm experimentado a truculência dos bandidos. Nessas horas, reclamam da falta de policiamento, porque, como disse certo pensador, é quando a faca perde o fio que a gente se lembra do amolador de facas. A polícia existe para fazer cumprir as leis, prender quem se nega a cumpri-las; não para matar. Ela é parte da sociedade que a criou e a mantém porque necessita dela.
Pôr no mesmo plano bandido e policial equivale a tomar o partido dos bandidos.
Dando conseqüência ao domínio que exercem sobre as favelas, os bandidos decidiram agora eleger seus representantes na Câmara de Vereadores e, em razão disso, impõem limites à campanha dos demais candidatos em seu território. A intervenção do governo para restabelecer ali o Estado de Direito pode gerar conflitos e mortes. Deve então omitir-se? Não pega lá muito bem reconhecer a legitimidade da polícia; pega muito melhor ser tolerante com os bandidos, tidos como vítimas da sociedade. Inventou-se que a pobreza é a mãe do crime, quando alguns dos maiores ladrões deste país são ricos. Os bandidos são minoria insignificante nas comunidades faveladas. Dizem que o traficante Nem, da Rocinha, tem 200 homens armados. Um exagero, mas, ainda que seja verdade, é quase nada diante dos 65 mil habitantes daquela comunidade, que é dele refém.
*Ferreira Gullar, Revista da Folha, ed. 10/08/2008.