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quarta-feira, 1 de outubro de 2014

FGTS: Uma história de gatos e gatunos. A segunda parte de uma estranha história



No capítulo anterior (logo abaixo) vimos que o governo empurrou para os empresários e empregados a conta do do prejuízo causado ao FGTS pelo expurgo sofrido pelos Planos Verão e Collor 1.
Vimos, também, como "o governo recorreu às mais extravagantes manobras para esconder um fato óbvio: o gato que comeu o dinheiro do fundo chama-se Tesouro, que é quem tinha de arcar com o custo."


A HISTÓRIA. O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço foi criado pela Lei nº 5.107, de 1966, para a) assegurar ao trabalhador optante a formação de um pecúlio relativo ao tempo de serviço; b) formar um fundo de recursos para o financiamento de programas de habitação popular, de saneamento básico e de infra-estrutura urbana.
Segundo o desenho original, o fundo receberia depósitos mensais, efetivados pelos empregadores em nome dos empregados, no valor de 8% da sua remuneração, representando 1,067 salário por ano. A conta de cada trabalhador inscrito teria correção monetária mais juros de 3% ao ano. Ou seja, havia um compromisso de remuneração. A correção monetária foi, por conta dos planos de estabilização, substituída pela TR (Taxa Referencial de Juros).

E assim, o fundo funcionava.

Recebia o dinheiro depositado pelos empregadores, depositava-os na conta dos respectivos trabalhadores e remunerava seus saldos. Ora, para pagar a correção (TR) mais juros anuais de 3%, o FGTS aplicava os recursos arrecadados. Ou seja, fazia ativos com eles. E como aplicava seus recursos? Financiando habitação popular e obras de saneamento e infra-estrutura.
Eram empréstimos que pagavam juros variáveis, mas todos, sem exceção, sofriam a mesma correção monetária (hoje em dia TR).
Segundo o balanço do FGTS de setembro de 2000, os ativos eram compostos de R$ 731,1 milhões em conta-depósito, R$ 11,8 bilhões aplicados em títulos federais de liquidez, R$ 1,1 bilhão em créditos vinculados, R$ 67,9 bilhões em operações de crédito e R$ 2,1 bilhões em títulos do FCVS (Fundo de Compensação de Variações Salariais). Os empréstimos foram distribuídos da seguinte maneira: R$ 43,6 bilhões em habitação, R$ 21,7 bilhões em saneamento e R$ 5,2 bilhões em obras de infra-estrutura.

E, incrível, apesar de o STF ter mandado corrigir o saldo do FGTS, em nenhum momento o governo ordenou que se corrigissem pelo mesmo percentual as aplicações feitas com recursos do fundo. E deveria. Ao não fazê-lo, o fundo quebra; ao fazê-lo, descobre-se o óbvio: não vai se acertar a conta do FGTS mexendo em seus passivos (o que deve, ao fim e ao cabo, aos trabalhadores), mas nos seus ativos - aqueles que, enfim, asseguram a remuneração dos recursos aplicados.

Corrigindo-se ativos e passivos pelo mesmo percentual estabelecido pela Justiça, de fato, não há um rombo, mas um problema de caixa. E caixa, qualquer empresa sabe, se faz cobrando dívidas e/ou vendendo ativos.

FCVS. Diz o bom senso que esse deveria ser o passo inicial do processo. O passo que o governo se recusa a dar. O gato de Alice entende o motivo dessa aparente distrofia cerebral. E ela atende pelo nome de FCVS.
Tal expediente foi criado em 1967 para resolver um problema: as prestações do mutuário eram corrigidas anualmente (pelo índice de correção dos salários), mas o saldo devedor era atualizado trimestralmente pela taxa de correção estabelecida para a caderneta de poupança. A diferença - o que restava do saldo devedor ao término do contrato com o mutuário - seria paga pelo FCVS, que era bancado exclusivamente pelo Tesouro.
Ao longo dos anos, o rombo do FCVS foi crescente. Em 1985, por exemplo, enquanto as prestações foram corrigidas em 112%, o saldo devedor foi corrigido em 246%. A diferença, volta-se a frisar, era (ou deveria ser) coberta pelo FCVS, que era (e é) bancado com recursos do Tesouro.
Na época, o déficit potencial do FCVS era estimado em R$ 60 bilhões. O FCVS era um "esqueleto", uma dívida não paga pelo Tesouro, que aparecia no balanço dos bancos participantes do SFH (Sistema Financeiro da Habitação), ou seja, todos os bancos importantes.
Reconhecer simplesmente a dívida - e continuar sem pagá-la - equivalia a, de uma penada, quebrar todo o sistema financeiro, ou o que havia de relevante nele. Por isso, o governo fez mais do que reconhecer o "esqueleto". Botou as cabeças de seus burocratas para funcionar e, naquela ocasião, a proposta não carecia, como agora de lucidez econômica.
Em 1996, o governo editou a Medida Provisória nº 1.981. E nela estabelecia um processo de novação dos créditos dos bancos junto ao FCVS (contra o Tesouro, portanto), vale dizer, assumiu a existência da dívida e disse como iria pagar: com a emissão de títulos. No caso, a dívida foi convertida em títulos federais, livremente negociados e passíveis de utilização no Programa Nacional de Desestatização e na quitação de débitos no âmbito do SFH.
A despeito de os títulos serem negociados no mercado com deságio (afinal, o Tesouro não havia pagado sua dívida), a Caixa Econômica Federal foi autorizada a receber tais títulos pelo seu valor de face. E, de fato, depois do processo de consolidação pelo qual passou o sistema financeiro, a Caixa detém hoje a maior parte desses títulos.
Os CVS são papéis de 30 anos, com carência de oito para o pagamento de juros e de 12 para o pagamento do principal - contados a partir de 1997. Eles rende juros de 6,17% (no caso de a operação ter sido financiado com recursos de caderneta) e de 3,12% (com recursos do FGTS) mais correção (TR).
Na época, o governo achou engenhosa a solução encontrada para a retirada do "esqueleto" do armário - os bancos nem tanto, mas, de fato, eles não quebraram por isso. O Tesouro anunciou que, com a medida, estaria economizando R$ 5 bilhões e reduzindo o déficit potencial do FCVS para R$ 55 bilhões.
No ano passado, quando o Banco Central exigiu que a Caixa enquadrasse seus créditos seguindo os critérios de risco estabelecidos (os empréstimos de maior risco exigem a feitura de provisões), as contas foram refeitas, e o rombo do FCVS, de responsabilidade do Tesouro, foi calculado em R$ 54 bilhões.

FAZENDO AS CONTAS. Ora, se o bom senso manda corrigir pelo mesmo percentual ativos e passivos do FGTS e manda igualmente que os eventuais rombos sejam cobertos com a cobrança dos créditos devidos e/ou com a venda de ativos (pois são eles que possibilitam que os recursos rendam), o que os números mostram é que, no mínimo, 63% da correção devida é de responsabilidade do Tesouro, pelo simples fato de que é este o responsável pelo FCVS. O restante deve ser cobrado de prefeituras, de Estados e do próprio governo federal.

Talvez essa conta explique por que não foi o gato de Alice que comeu o dinheiro (ou o rendimento) e por que também não devem ser os trabalhadores e empresários os que devem fazer uma espécie de vaquinha para que o FGTS possa cumprir com o que a Justiça determinou.

(Continua...)
(Revista República, Ano 5, nº 53, março de 2001, páginas 20 a 27.)