terça-feira, 12 de março de 2024

Escrow Account – instrumento de segurança jurídica máxima ao negócio imobiliário. (Parte I)


Eduardo Moreira Reis e Mauro Antônio Rocha

Considerações iniciais sobre o ‘escrow account’, instrumento jurídico-financeiro incluído na Lei 8.935/1994 pelo Marco Legal das Garantias para conferir máxima segurança jurídica ao adquirente de imóvel.

1. Introdução

A aquisição de propriedade imobiliária no Brasil pode ser considerado um negócio de risco que expõe pessoas nacionais e estrangeiras à insegurança jurídica e ao desgaste emocional e psicológico, por demandar do investidor, ou adquirente de imóvel para utilização própria, razoável conhecimento das inúmeras variáveis estruturais e conjunturais do sistema jurídico brasileiro, do qual decorre ser o registro do título finalizado em seu nome a melhor – mas não definitiva – garantia.

Entretanto, é da praxe do mercado que nos negócios de compra e venda de imóveis celebrados sem financiamento o pagamento integral do preço ao vendedor seja realizado até o momento da lavratura da escritura pública, transferência da posse e entrega das chaves – independentemente do efetivo registro do título – antes, portanto, da transferência da propriedade.

Por conta de tal necessidade de efetuar o pagamento do preço, a incerteza sobre o registro e efetiva aquisição da propriedade, esse período – entre a assinatura da escritura e o registro do título – será profundamente estressante para o comprador. Além disso, a demora na superação de eventuais óbices ao registro pode representar uma trava ao negócio imobiliário, impedindo a circulação de riquezas e o desenvolvimento econômico do país.

Outro fator inibidor de negócios imobiliários é a existência de dívidas do alienante, que podem colocar em risco a aquisição ou resultar em penhoras do imóvel, débitos que em muitos casos poderiam ser quitados ou renegociados de forma vantajosa com parte do próprio preço de venda.

A observação sistemática realizada pelos autores, em muitos anos de prática da advocacia imobiliária e acompanhamento de numerosos negócios que originaram litígios e distratos, não atingiram os objetivos visados pelo comprador, tiveram seus efeitos retardados no tempo ou não foram concluídos por vicissitudes dos sistema registral brasileiro e em decorrência da interpretação variável dos tribunais sobre questões atinentes à matéria, aponta para algumas questões, a seguir expostas de forma sintética:

• a maioria dos compradores de imóveis desconhece a matéria registral imobiliária e supõe que as obrigações do vendedor estarão findas com a assinatura da escritura de venda, deixando de reservar parcela do pagamento como precaução contra problemas comuns na fase de registro do título. Por outro lado, como a escritura é o título translativo, os vendedores exigem a quitação plena para sua outorga;

• potenciais compradores deixam de concluir bons negócios por recear as exigências registrais que impedem o registro imediato das escrituras de compra e venda celebradas, postergando a transmissão da propriedade por longo tempo, com custos e riscos consideráveis;

• a impossibilidade ou a demora no registro pode resultar em conflitos diversos, ações de desfazimento dos negócios, de indenização, procedimentos de usucapião como forma de se contornar os óbices registrais etc.;

• muitas são as razões que podem obstar ou dificultar o registro do título para o comprador que já efetuou o pagamento do preço: divergências cadastrais, descrição imprecisa do imóvel nos assentos registrais existentes, problemas fiscais, divergências de dados pessoais ou reais, necessidade de busca de dados de registros anteriores em outras comarcas, inconsistências em formais de partilha de divórcios e inventários ainda não registrados, loteamentos e incorporações com irregularidades, sobreposição de imóveis rurais, externalidades desconhecidas no momento da lavratura da escritura, como indisponibilidades de bens, penhoras ou arrestos ainda não registrados, uniões estáveis não publicizadas no Registro Civil do vendedor e outras mais.

Para enfrentar as dificuldades acima descritas a Lei 14.711/2023 trouxe para o mercado imobiliário um instrumento bastante conhecido e utilizado nas operações comerciais on line e que consiste resumidamente na possibilidade do investidor efetivar o pagamento ou consignação do valor, por meio de um terceiro – tabelião de notas – que efetuará o deposito em conta vinculada ao negócio em instituição financeira e providenciará o repasse do montante à parte devida, tão logo constatada a ocorrência das condições negociais aplicáveis.

Com a adoção do referido instrumento confere-se a necessária segurança jurídica à operação e supera-se, a princípio, dois riscos:

• O risco de o vendedor outorgar escritura antes do recebimento do preço e amargar o inadimplemento do comprador, que com o registro já terá transferido para si o bem – o que exigirá uma ação judicial do vendedor, para eventual desfazimento do negócio ou recebimento do preço;

• O risco de o comprador pagar a integralidade do preço no momento da outorga da escritura e depois não conseguir aperfeiçoar a aquisição, por problemas no registro – o que igualmente exigirá intervenção judicial para desfazimento do negócio e cobrança do valor pago.
2. Escrow account – Conceito, aplicação e utilidade ao negócio imobiliário

O escrow, originário do direito anglo-saxônico, é um contrato de depósito irregular, inominado e atípico, com função de garantia, em favor de sujeito alternativamente determinado. É modalidade não contemplada pelo artigo 632 do Código Civil Brasileiro, que trata do depósito no interesse de terceiro .

Comumente previsto como depósito em garantia em um contrato ou acordo comercial é mantido sob a responsabilidade de um terceiro, até que as cláusulas desse acordo sejam cumpridas por ambas as partes envolvidas no negócio. Normalmente se faz na forma de um depósito em dinheiro em uma conta criada especificamente para isso - uma escrow account, que em português poderia ser traduzida como “conta-caução” ou “conta de garantia” .

Daí é possível extrair-se que o escrow é um contrato necessariamente ligado a uma relação jurídica principal, baseado na fidúcia que as partes assentam em terceiro a quem se confiará o bem, cuja função consiste na garantia de cumprimento de obrigações, assegurando-se ao beneficiário do depósito que, demonstrado seu status de credor, poderá facilmente realizar seu crédito .

Dentre seus elementos essenciais, no que tange às partes, a doutrina portuguesa aponta o escrow como um contrato trilateral, subscrito por duas partes contratantes em negócio jurídico coligado, em razão do qual se realiza o depósito, e um ente fiduciário, o depositário escrow, que acompanhará a execução do contrato principal e a que se confia a guarda dos bens dados em sua garantia

O escrow é utilizado cotidianamente por milhões de brasileiros em plataformas digitais como PayPal, Mercado Pago, Mercado Livre, Shopee, entre outras, que recebem pagamentos dos consumidores em contas próprias, para repasse ao fornecedor após a entrega regular do produto. Mas a forma de escrow que nos parece mais próxima daquela aplicável aos negócios imobiliários é a do crédito documentário praticado no comércio exterior , agregado a elementos do negócio fiduciário , cuja tipologia mais comum no Brasil é a propriedade fiduciária.

O crédito documentário é um compromisso irrevogável do banco emitente que, atuando por instruções de um importador, fica obrigado a efetuar um pagamento - à vista ou a prazo - a um exportador ou à sua ordem, contra a apresentação de documentos em conformidade com os termos enunciados na carta de crédito. O crédito documentário entra no circuito bancário pela via do importador e constitui uma garantia de pagamento a favor do exportador, desde que observados todos os termos e condições previstos na carta de crédito. É um meio de pagamento/recebimento que oferece maior segurança às transações de comércio internacional, em especial no relacionamento com novos parceiros comerciais. Para o importador é garantido que o compromisso do banco emitente de pagar o montante da carta de crédito só se verificará se forem cumpridos por parte do exportador todos os requisitos a que obriga a carta de crédito. Para o exportador (beneficiário) há a garantia do pagamento da mercadoria expedida, contra entrega dos documentos e cumpridos os termos e condições expressos na carta de crédito.

Percebe-se, a partir de tal estrutura negocial, que um contrato de escrow atrelado à apresentação documental, como forma de cumprimento de obrigações, serve bem aos negócios imobiliários. Dada a abstração consubstanciada nos dados registrais e cadastrais, em especial nas certidões a eles pertinentes, o cumprimento da quase totalidade das obrigações normalmente pactuadas em negócios imobiliários pode ser aferido por documentos, o que reduz a discricionariedade do escrow holder (depositário), simplificando e tornando mais seguro o negócio. Pois embora seja pouco comum na prática comercial, é possível atribuir-se ao escrow holder poderes para aferir a verificação das contingências do contrato a que se sujeita a definição do credor do depósito - se o bem (ou dinheiro) será restituído ao depositante ou entregue ao beneficiário, caso em que desempenhará função análoga a de juiz ou árbitro .

Neste caso, emerge a questão da responsabilidade do depositário decorrente da deliberação sobre a verificação ou não da condição acordada, que pode ser contornada, segundo Antunes , com a previsão de cláusula que exonere o depositário de responsabilidades pela decisão assumida, desde que baseada no conteúdo do contrato, “como se estivéssemos perante uma decisão de um árbitro ou juiz a quem não se podem ser assacadas responsabilidades pelo mérito das suas decisões”.

3. O escrow account no Marco Legal das Garantias.

A Lei nº 14.711/2023, conhecida como Marco Legal das Garantias, reconfigurou o escrow como garantia dos negócios imobiliários, ao permitir sua utilização pelos tabeliães, com o apoio de uma instituição bancária, no papel de escrow holders e atribuir ao depósito bancário do valor o status de patrimônio de afetação. Tal reconfiguração se deu mediante a inclusão, na Lei 8.935/1994 (Lei dos Cartórios), dos seguintes dispositivos:

Art. 7º-A Aos tabeliães de notas também compete, sem exclusividade, entre outras atividades

I - certificar o implemento ou a frustração de condições e outros elementos negociais, respeitada a competência própria dos tabeliães de protesto; (...)

III - atuar como árbitro.

§ 1º O preço do negócio ou os valores conexos poderão ser recebidos ou consignados por meio do tabelião de notas, que repassará o montante à parte devida ao constatar a ocorrência ou a frustração das condições negociais aplicáveis, não podendo o depósito feito em conta vinculada ao negócio, nos termos de convênio firmado entre a entidade de classe de âmbito nacional e instituição financeira credenciada, que constituirá patrimônio segregado, ser constrito por autoridade judicial ou fiscal em razão de obrigação do depositante, de qualquer parte ou do tabelião de notas, por motivo estranho ao próprio negócio.

§ 2º O tabelião de notas lavrará, a pedido das partes, ata notarial para constatar a verificação da ocorrência ou da frustração das condições negociais aplicáveis e certificará o repasse dos valores devidos e a eficácia ou a rescisão do negócio celebrado, o que, quando aplicável, constituirá título para fins do art. 221 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), respeitada a competência própria dos tabeliães de protesto.

(...)
Observa-se que a nova lei atribuiu ao tabelião de notas a atribuição tanto para atuar como escrow holder, ou seja, ser o terceiro a quem é confiado o bem (no caso o numerário depositado em garantia) no contrato de escrow, quanto para atuar como árbitro, certificando o implemento ou a frustração de condições e outros elementos negociais, sob sua fé pública notarial. E como desdobramento desse papel conjunto de escrow holder e árbitro, para interpretar o cumprimento ou descumprimento de obrigações e o implemento ou não de condições e a partir das conclusões de tal interpretação, certificar o fato (e o fenômeno jurídico dele decorrente) e repassar o montante à parte devida, seja o depositante, seja o beneficiário do escrow.

Em paralelo, a nova lei atribuiu ao depósito na escrow account o caráter de patrimônio de afetação, a salvo de penhoras, bloqueios ou constrições, exceto as que derivem do próprio negócio principal, ao qual o escrow é acessório. Pois até então a penhora do depósito por dívida do depositante era um risco inerente ao negócio, como se verifica em várias decisões judiciais que reconhecem a plena penhorabilidade dos valores em escrow account .

Verifica-se, portanto, que aos tabeliães de notas foi atribuída uma certa carga de poder decisório, que não é mera aferição da ocorrência de fatos, certificáveis pela fé pública notarial, a serem consignados em ata notarial, mas sim a qualificação jurídica de tais fatos, em face das cláusulas contratuais pactuadas pelas partes.

Certificada a ocorrência de fatos e condições, haverá uma decisão notarial para determinar o beneficiário dos valores, que poderá inclusive ser ambas as partes, conforme a pactuação contratual preveja, por exemplo, uma devolução parcial para uma parte, com multa em favor da outra parte contratante. Em outros termos, ao optar pela atuação do tabelião como escrow holder os contratantes lhe atribuem, em maior ou menor parcela, conforme a complexidade do negócio, também o papel de árbitro.

No tocante ao patrimônio de afetação representado pelo dinheiro depositado em conta bancária, entendemos que, a partir da novel previsão legislativa, tal depósito pode perfeitamente se dar mediante transferência à instituição bancária em caráter fiduciário, como autêntico negócio fiduciário, estipulado pelas partes com interveniência e sob ordens do tabelionato. Pois transferindo-se a propriedade fiduciária do numerário ao banco, sob ordens do tabelionato, ter-se-á uma segregação patrimonial mais eficaz, em titularidade diferente das partes e a princípio não alcançável por ordens de bloqueio judicial em abstrato ou penhoras on line por débitos da parte depositante (evitando-se assim bloqueios e desbloqueios).

A propriedade fiduciária de bens fungíveis (como o dinheiro), embora não admitida pela redação do art. 1.361 do Código Civil, pode ser prevista em legislação especial. Veja-se:

Art. 1.361. Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor.

(...)

Art. 1.368-A. As demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições deste Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial. (destacamos).

A Lei 10.931/2004 alterou a Lei 4.728/1965 (Lei do Mercado de Capitais) para autorizar a alienação fiduciária de coisas fungíveis no âmbito do mercado financeiro:

Art. 66-B. O contrato de alienação fiduciária celebrado no âmbito do mercado financeiro e de capitais, bem como em garantia de créditos fiscais e previdenciários, deverá conter, além dos requisitos definidos na Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, a taxa de juros, a cláusula penal, o índice de atualização monetária, se houver, e as demais comissões e encargos.

(...)

§ 3o É admitida a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, hipóteses em que, salvo disposição em contrário, a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é atribuída ao credor, que, em caso de inadimplemento ou mora da obrigação garantida, poderá vender a terceiros o bem objeto da propriedade fiduciária independente de leilão, hasta pública ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, devendo aplicar o preço da venda no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da realização da garantia, entregando ao devedor o saldo, se houver, acompanhado do demonstrativo da operação realizada.(Incluído pela Lei 10.931, de 2004 – negritos nossos)
Observa-se, portanto, que não há óbice, ao menos sob a égide da legislação federal, para que o escrow estipulado perante o tabelionato tenha o valor entregue à instituição financeira em caráter fiduciário, ficando sob a titularidade resolúvel desta, até que incidam os encargos, termos ou condições contratualmente previstos para o levantamento dos valores, no todo ou em partes.

A recente mudança legislativa, quando devidamente regulamentada, poderá dinamizar o mercado de bens imóveis, especialmente de imóveis com pendências regularização ou de registro de títulos com defeito a ser suprido, ou de casos em que há dívidas do vendedor a serem pagas com os recursos oriundos da venda, dentre outras várias hipóteses. E as partes, se o quiserem, podem perfeitamente reduzir o nível de discricionariedade do tabelião quanto à análise da ocorrência de condições ou cumprimento de obrigações, simplesmente elegendo claramente quais os documentos representativos de cada fato jurídico, para que com a sua mera apresentação, a tempo e modo, se demonstre o direito ao levantamento do numerário – tal qual já ocorre há muito no crédito documentário para importação e exportação.

Embora a princípio contratos particulares imobiliários possam se valer de escrow mediado pelos tabelionatos dentro da nova competência legal que lhes foi atribuída, certamente a grande maioria dos contratos acessórios será instrumentalizada nas escrituras públicas lavradas pelos próprios tabeliães como contratos principais, até mesmo pela possibilidade de se lavrar documentos definitivos, mesmo que com cláusulas resolutivas, com desembolso e salvaguarda dos recursos até o implemento de condições. Tal fato é benéfico ao mercado imobiliário e à segurança jurídica dos negócios, pois no sistema de notariado latino, vigente no Brasil, o tabelião de notas desempenha uma função de assessoria neutra às partes, traduzida na escolha e interpretação de sua vontade, no auxílio a essa formação, na sua adaptação ao ordenamento jurídico, na escolha e aconselhamento sobre os meios jurídicos mais adequados à realização dos fins pretendidos, na redação dos próprios documentos e na explicação às partes sobre o conteúdo e efeito dos atos . A par do trabalho desempenhado pelos tabeliães, a participação dos advogados das partes contratantes na elaboração das cláusulas protetivas de seus interesses é de grande importância, especialmente em se tratando de contratos complexos e que geralmente envolvem quantias significativas.


Eduardo Moreira Reis Advogado especializado em Direito Registral, Imobiliário e Urbanístico. Professor da pós-graduação da PUC/MG. Trabalha há cerca de 30 anos com questões jurídico-fundiárias. Membro da AD NOTARE – Academia Nacional de Direito Notarial, Registral, Crédito e Garantias Imobiliárias.

Mauro Antônio Rocha Advogado especializado em Direito Imobiliário, Notarial, Registral, Crédito e Garantias Imobiliárias. Presidente da AD NOTARE – Academia Nacional de Direito Notarial e Registral.

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NOTAS
1. MARQUES FILHO, Vicente de Paula e GIMENES, Amanda Goda, in A ação de depósito e o contrato de escrow nas operações de fusões e aquisições, p 14 - http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=4206e38996fae402, acesso em 4 de março de 2024.
1. https://www.dicionariofinanceiro.com/escrow/, acesso em 4 de março de 2024.
3. MARQUES FILHO e GIMENES, op cit, p. 8
4. ANTUNES, João Tiago Morais. Do contrato de depósito escrow. Coimbra: Almedina, 2007, p 165.
5. Os Créditos Documentários encontram-se sujeitos às Regras e Usos Uniformes Relativas aos Créditos Documentários da Câmara de Comércio Internacional.
6. In:https://ind.millenniumbcp.pt/pt/negocios/internacional/Pages/cred_doc_importexport.aspx. Crédito Documentário: Como Funciona?
7. In: https://www.economias.pt/credito-documentario-como-funciona/
8. Ver também: https://jus.com.br/artigos/39970/a-moderna-concepcao-do-credito-documentario-nas-relacoes-de-comercio-internacional
9. MARCOS BERNARDES DE MELLO define o negócio fiduciário como ‘’negócios jurídicos pelos quais se transmite a propriedade, a posse, o crédito ou o direito com outra finalidade que não, apenas, a específica de alienar’’ (Teoria do Fato Jurídico, Plano da Existência. 12. Ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 203).
10. MARQUES FILHO e GIMENES, op cit, p. 9
11. Op. cit, p. 167-168
12. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1904340 - SP (2021/0158860-8) EMENTA AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. ALEGAÇÃO DE IMPENHORABILIDADE DE VALORES EM CONTA DE NATUREZA "ESCROW". CONCLUSÃO DO ACÓRDÃO RECORRIDO PAUTADA EM PECULIARIDADES DO CASO. REVISÃO INVIÁVEL. SÚMULAS N. 5 E 7/STJ. AGRAVO CONHECIDO PARA NÃO CONHECER DO RECURSO ESPECIAL. DECISÃO (...) De todo modo, não há se falar em penhora de crédito em reserva exclusiva da agravante. Ainda que dos processos noticiados a fls. 318/322 pela vendedora no contrato firmado com a C., a agravante afirme que só há pendência de débito da executada no processo 1025875-93-93.2015.8.26.0562, com quem admite dividir o valor, fato é que a solução não passa por sua escolha. Já há, inclusive, credores de outro processo com incidente de habilitação em apenso aos autos principais (Proc.1017691-17.2016), onde já manifestaram a pretensão de integrarem o concurso de preferência de credores. Da leitura do acórdão recorrido, verifica-se que a conclusão adotada pelo Tribunal de origem derivou de ampla cognição sobre as premissas fáticas dos autos, sobretudo em relação ao contrato existente entre a recorrente e terceiro (empresa C.), entendendo pela possibilidade de penhora de valor mantido em conta de natureza "escrow" diante das peculiaridades do caso. O acolhimento da pretensão recursal, a fim de reconhecer a impenhorabilidade do montante, demandaria revolvimento do conjunto fático-probatório, bem como interpretação de cláusula contratual, o que encontra óbice nas Súmulas n. 5 e 7/STJ. Ante o exposto, conheço do agravo para não conhecer do recurso especial. Fiquem as partes cientificadas de que a insistência injustificada no prosseguimento do feito, caracterizada pela apresentação de recursos manifestamente inadmissíveis ou protelatórios a esta decisão, ensejará a imposição, conforme o caso, das multas previstas nos arts. 1.021, § 4º, e 1.026, § 2º, do CPC/2015. Publique-se. Brasília, 14 de junho de 2022. MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Relator - (STJ - AREsp: 1904340 SP 2021/0158860-8, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Publicação: DJ 01/07/2022)
EMBARGOS DE TERCEIRO. CONSTRIÇÃO DE CONTA "ESCROW". Sentença de improcedência do pedido de liberação de constrição de conta "escrow" que não comporta reparo. Cerceamento de defesa não verificado. Regular observância ao art. 370, parágrafo único, do CPC/2015. É lícita a penhora incidente sobre conta na modalidade "escrow", não se admitindo a alegação de impossibilidade da constrição em razão da destinação exclusiva dos valores por acordo entre as partes, por não haver previsão da alegada impenhorabilidade no art. 833 do CPC/2015. Precedentes. Honorários recursais. Majoração. RECURSO NÃO PROVIDO. (TJ-SP - AC: 10164982720188260002 SP 1016498-27.2018.8.26.0002, Relator: Alfredo Attié, Data de Julgamento: 23/03/2021, 27ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 25/03/2021)
AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE EXECUÇÃO POR QUANTIA CERTA CONTRA DEVEDOR SOLVENTE - IMPUGNAÇÃO À PENHORA - PENHORA EM CONTA "ESCROW ACCOUNT" – POSSIBILIDADE – BEM NÃO INSERIDO NO ROL DO ARTIGO 833 DO CPC – AUSÊNCIA DE PROVA DE SE TRATAR DE BEM DE TERCEIRO. Ocorre que a conta "escrow account" é, pela natureza jurídica, conta de depósito em garantia, portanto, não alcançada pela impenhorabilidade. ART. 252, DO REGIMENTO INTERNO DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO. Em consonância com o princípio constitucional da razoável duração do processo, previsto no art. 5º, inc. LXXVIII, da Carta da República, é de rigor a ratificação dos fundamentos da sentença recorrida. Precedentes deste Tribunal de Justiça e do Superior Tribunal de Justiça. – DECISÃO MANTIDA – RECURSO IMPROVIDO. (TJ-SP - AI: 20276967920208260000 SP 2027696-79.2020.8.26.0000, Relator: Eduardo Siqueira, Data de Julgamento: 29/04/2020, 38ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 29/04/2020)
13. RODRIGUES, Marcelo Guimarães, Tratado de registros públicos e direito notarial, São Paulo, Atlas, 2014, p. 222.

Publicado originalmente no Boletim Migalhas nº 5.805, de 11/03/2024

segunda-feira, 11 de março de 2024

Escrow Account – instrumento de segurança jurídica máxima ao negócio imobiliário. (Parte II)


Eduardo Moreira Reis e Mauro Antônio Rocha

Considerações complementares sobre o ‘escrow account’, instrumento jurídico-financeiro incluído na Lei 8.935/1994 pelo Marco Legal das Garantias para conferir máxima segurança jurídica ao adquirente de imóvel.

Na parte inaugural deste trabalho, publicada no Boletim Migalhas Nº 5.805, de 11 de março p.p.(1), dissertamos sobre a insegurança jurídica e o desgaste emocional e psicológico a que é submetido o investidor ou adquirente de bem imóvel –por conta do desconhecimento das variáveis jurídicas estruturais e conjunturais que tornam incerto o acolhimento do instrumento de escritura pública ou contrato particular pelo Ofício de Registro de Imóveis competente e o indispensável registro do título nele inscrito, para tornar definitiva e inatacável a transmissão da propriedade.

Nesta parte complementar trataremos das razões jurídicas e sociais que deram azo a essa insegurança e da previsibilidade jurídica desejada pelos participantes dos “negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis”.(2)

1. Das origens da insegurança no mercado imobiliário brasileiro.

A segurança jurídica no mercado imobiliário é uma necessidade básica para a economia de qualquer país. No Brasil, país em desenvolvimento, a segurança outorgada se mostra frágil quando confrontada com uma estrutura fundiária rural ainda em organização sob os aspectos cadastrais e registrais, com desordenada urbanização, alto índice de informalidade e disponibilidade de terras que contrastam com o enorme potencial de crescimento do mercado imobiliário, assumindo a temática extraordinária importância.

Da concentração fundiária rural à urbanização súbita irrompida entre o início e o fim do século passado – e desta à necessidade de imediata e obrigatória inserção, no século atual, no mercado globalizado de economia financeira – o sistema jurídico imobiliário brasileiro busca saltar das práticas antigas às pós-modernas sem ter tido a necessária maturação das modernas, causando evidentes descompassos, tanto normativos quanto práticos.

As demandas sociais por segurança jurídica e fiabilidade no mercado de imóveis, e ao mesmo tempo por maior governança territorial, têm premido o Poder Legislativo a sucessivas iniciativas em prol da modernização desse sistema normativo. Tais iniciativas, a nosso sentir, têm ocorrido principalmente sob quatro principais diretrizes: desjudicialização de procedimentos envolvendo imóveis; modernização e prestígio crescente aos serviços extrajudiciais de tabelionato e registros públicos; ampliação das garantias ao crédito imobiliário e modernização de sistemas cadastrais de gestão territorial.

Essa evolução sistêmica é lenta, e no caso brasileiro – por natureza conservador e burocrático – muitas vezes descompassada entre novos e antigos institutos jurídicos, demandando cautelas diversas, por parte do adquirente de imóveis, além de um instrumental jurídico que o proteja das fragilidades do sistema, por parte do Estado.

Dentre esses diversos instrumentos, alguns apenas apontados ao longo deste texto, abordamos especificamente aquele já conhecido como escrow account (que em português pode ser traduzido como “conta-caução” ou “conta de garantia”) (3), conhecido e largamente utilizado no comércio de bens móveis, admitido no ordenamento jurídico como contrato acessório atípico, que foi inserido na recente Lei 14.711/23 como atividade a ser exercida, sem exclusividade, pelos tabeliães de notas, com operacionalização simplificada, porém bem definida na lei, protegido pelo depósito em instituição financeira e pela segregação patrimonial de qualquer constrição não decorrente do próprio negócio contratado, com novas e maiores potencialidades em prol dos negócios imobiliários.

2. Da segurança jurídica dinâmica e as lacunas entre os microssistemas normativos.

O conceito de segurança jurídica varia na doutrinaiv, podendo ser entendido, dentre outras concepções, como uma elevada capacidade de prever as consequências jurídicas de fatos ou atos pela maioria das pessoas, o que envolve uma coerência e previsibilidade jurídica acessívelv e uma disponibilidade de informações para a coletividade em geral (4).

Para o Direito Registral Imobiliário, a segurança jurídica é alcançada em duas vertentes: segurança jurídica estática e segurança jurídica dinâmica (7). A segurança jurídica estática se dá pelo efeito de assegurar a estabilidade política do domínio; e a segurança dinâmica, com a possibilidade de uma transmissão segura dos direitos. A segurança dinâmica é aquela almejada pelo adquirente num negócio imobiliário, fator essencial para a formatação e implementação segura dos negócios – podendo-se dizer que o objetivo da segurança dinâmica dos negócios imobiliários é exatamente se tornar estática para o adquirente (8).

Desde a inauguração do mercado formal de terras no Brasil, pela Lei 601 de 1850, até os dias atuais, as regras relativas ao mercado imobiliário vêm se adequando às necessidades socioeconômicas e se positivando em microssistemas normativos conexos, mas que nem sempre evoluem e se transformam ao mesmo tempo. O que se denomina genericamente de Direito Imobiliário é composto desses microssistemas, com regras cíveis obrigacionais e reais, sucessórias, de família, urbanísticas, registrais, tributárias, agrárias, ambientais, empresariais e outras mais. Assim sendo, por exemplo, as regras para produção imobiliária horizontalizada e verticalizada (loteamentos e incorporações) se interconectam com a legislação vigente de registros públicos, legislação contratual geral e legislação processual civil, dentre outras; os imóveis rurais têm seu regramento próprio do Direito Agrário, com regras registrais, cadastrais e ambientais próprias e posteriores ao Estatuto da Terra, de 1964; os imóveis públicos têm um regramento especial, que articula com a legislação cível e registral; a legislação minerária contém institutos afetos ao mercado imobiliário, como as servidões minerárias; a proteção a grupos étnicos condiciona o mercado de terras; a legislação de desapropriações e tombamentos igualmente condiciona o tráfico imobiliário.

Esses microssistemas se modificaram estruturalmente ao longo do século XX, em especial com o advento do regime matricial dos registros públicos de imóveis e com o status constitucional atual das normas ambientais e urbanísticas, e já sofreram mudanças diversas no século atual. Para possibilitar a lida com essa multiplicidade de direitos e dados, as alterações legislativas recentes têm convergido para o crescente fortalecimento do registro público de imóveis, como guardião dos direitos sobre imóveis e da segurança jurídica dinâmica, sendo o fólio registral, por excelência, o locus da concentração segura da informação jurídico-imobiliária.

Em paralelo, alguns procedimentos envolvendo a propriedade imobiliária que outrora dependiam da atuação direta do Poder Judiciário tiveram sua competência estendida às serventias extrajudiciais, como a retificação de registro, a usucapião, as execuções hipotecárias, as adjudicações compulsórias e outros mais. Outros procedimentos tiveram sua competência atribuída ao serviço registral, como a regularização fundiária urbana. Ainda nessa tendência “desjudicializante” o Decreto-Lei 745/69 foi alterado em 2015(9), dando novo rumo interpretativo aos vetustos entendimentos jurisprudenciais e doutrinários de que os contratos de promessa de compra e venda de imóveis, mesmo com cláusula resolutiva expressa, necessitariam de intervenção judicial para sua resolução.

Nesse aprimoramento legislativo do sistema registral, a informatização dos cadastros e registros públicos possibilitou meios mais eficientes de preservação de direitos de credores, como as indisponibilidades. Num átimo de tempo, gravames são instituídos sobre quaisquer bens imóveis do devedor em território nacional (inclusive sobre bens móveis, com o SERP – Sistema Eletrônico de Registros Públicos, previsto nas leis 11.977/09 e 14.382/22). O dado registral está facilmente acessível, com as centrais registrais digitais, e tanto a legislação quanto os tribunais, ao aplicá-la, têm ampliado a via da averbação registral como meio de publicização de direitos, ou até de expectativa de direitos sobre os elementos objetivos e subjetivos da matrícula.

O chamado princípio da concentração dos gravames e ônus na matrícula imobiliária, ou seja, a possibilidade de o interessado visualizar a exata situação jurídica de um imóvel mediante a sequência registral retratada no fólio real, sem ter que realizar infindáveis pesquisas acautelatórias (ações reais ou reipersecutórias, por exemplo), antes de adquirir o bem ou tomá-lo como garantia, é um imperativo fundamental para a segurança jurídica. Tal princípio já existia há muito no ordenamento jurídico brasileiro, mas na prática o “clandestinismo registral” o enfraqueceu ao longo dos anos. A Lei 13.097/2015, veio reforçar em muito tal princípio, aumentando a segurança jurídica do adquirente de boa-fé quanto a débitos ou gravames do alienante não inscritos na matrícula. A Lei 14.382/22 acrescentou um parágrafo ao art. 54 da referida lei, que passou a viger com a seguinte redação:
[...]

“Art. 54. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações:

I - registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias;

II - averbação, por solicitação do interessado, de constrição judicial, de que a execução foi admitida pelo juiz ou de fase de cumprimento de sentença, procedendo-se nos termos previstos no art. 828 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil);

III - averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei; e

IV - averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do inciso IV do caput do art. 792 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).

§ 1º Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no registro de imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos arts. 129 e 130 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel.

§ 2º Para a validade ou eficácia dos negócios jurídicos a que se refere o caput deste artigo ou para a caracterização da boa-fé do terceiro adquirente de imóvel ou beneficiário de direito real, não serão exigidas:

I - a obtenção prévia de quaisquer documentos ou certidões além daqueles requeridos nos termos do § 2º do art. 1º da Lei nº 7.433, de 18 de dezembro de 1985; e

II - a apresentação de certidões forenses ou de distribuidores judiciais.

[...]

Há respeitáveis (embora ainda minoritários) entendimentos doutrinários no sentido de que as regras sobre a concentração de atos na matrícula positivadas pelas leis 13.097 e 14.382 mudaram o sistema registral imobiliário brasileiro, que até então se pautava pela legitimação registral, caracterizado pela presunção relativa de veracidade da inscrição registral imobiliária (10), para o sistema de fé pública registral, no qual aquele que, de boa-fé, confiou na informação registral e a partir dela adquiriu um direito real sobre um imóvel, terá seu direito protegido em caso de defeitos ou nulidades na cadeia dominial anterior. O sistema da legitimação registral é o praticado, por exemplo, na Espanha, enquanto o sistema da fé pública registral é conhecido como sistema alemão. Todavia, como se detalhará adiante, ainda que a doutrina majoritária e os tribunais se perfilhem a tal entendimento, a proteção do adquirente em face da fraude contra credores ou da fraude à execução praticada pelo transmitente de forma alguma exaure os riscos da aquisição imobiliária.

A Lei 14.382 também alterou, de forma discreta, mas significativa, o art. 246 da Lei 6.015/1973(11), alargando a admissibilidade das chamadas “averbações facultativas”. E o STJ, ao julgar o REsp 1.857.098-MS, estabeleceu, por unanimidade, teses vinculantes referentes ao direito de acesso à informação no Direito Ambiental, destacando-se, para o Registro de Imóveis, a possibilidade de averbação de informações facultativas sobre o imóvel e a possibilidade de requisição diretamente ao registro de imóveis, pelo Ministério Público, da averbação de informações alusivas a suas funções institucionais(12). Tudo isso contribui para a concentração dos dados na matrícula, destacando-se que até mesmo direitos ainda não “calcificados”, como no caso de inquéritos e procedimentos investigativos do Ministério Público, segundo a tese firmada pelo STJ, a princípio são passíveis de averbação.

No tocante aos cadastros públicos de imóveis foram criados o Cadastro Ambiental Rural (CAR), integrante do Sistema Nacional de Cadastro Ambiental (SICAR), o Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF), Cadastro Nacional de Imóveis Rurais (CNIR), o Cadastro Fiscal de Imóveis Rurais (CAFIR) e o Cadastro Imobiliário Brasileiro (CIB), este abrangendo os imóveis rurais e urbanos, como parte integrante do Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais (SINTER). Existem ainda os cadastros imobiliários municipais e estaduais, tanto urbanísticos, fiscais e administrativos, e todos eles, em maior ou menor grau, se fazem necessários para uma informação segura sobre direitos relativos a imóveis. E sua interconexão com o registro imobiliário se dá exatamente pelas averbações nas matrículas imobiliárias. Tais cadastros, ao longo do tempo, contribuirão para uma base fundiária confiável em todo o país, elevando em muito a segurança jurídica. Mas vários, atualmente, estão sendo ainda iniciados ou apenas começaram a ser “alimentados”.

Apesar das inovações legislativas, da desjudicialização, dos novos instrumentos de crédito real disponíveis para o mercado, da tecnologia digital e da facilitação da concentração das informações no fólio registral, a aquisição de imóveis no Brasil não deixou de ser um negócio de risco. Tal risco se dá por questões objetivas e subjetivas, ou mesmo por óbices documentais de ordem formal.

Há diversos níveis de risco quanto aos imóveis, desde os mais baixos, de imóveis que já passaram por crivos jurídicos administrativos e registrais, como unidades condominiais resultantes de incorporações ou lotes de loteamentos regulares, até os mais elevados, de parcelas de terrenos, urbanos ou rurais, ainda pendentes de alguma forma de regularização, e questões de ordem pessoal dos alienantes, sejam pessoas naturais ou jurídicas. E não são raras as situações em que os direitos sobre o imóvel pretendido foram havidos pelo alienante mediante títulos antigos e defeituosos, pendentes de registro.

Ainda que se considere o princípio da concentração do art. 54 da Lei 13.097, há os débitos fiscais inscritos em dívida ativa, que pela redação do art. 185 do Código Tributário Nacionalxiii se presumem fraude à execução (14), as aquisições originárias, que se implementam independentemente do registro (usucapião, desapropriação etc.,), as situações falimentares e outras mais, que representam exceções ao princípio. E há situações que, mesmo albergadas pelo referido princípio, frequentemente são opostas ao adquirente por força de decisões judiciais, especialmente trabalhistas e nas varas de família. Essas exceções não afastam a necessidade da chamada due diligence, que é a pesquisa e análise prévia de fatos jurídicos relativos ao imóvel e ao alienante, para verificação dos riscos envolvidos no negócio pretendido.

Para exemplificar o que aqui chamamos de descompasso sistêmico, não é raro que em relação a um único terreno urbano se tenha uma situação registral de regularidade formal coexistindo com um cadastro tributário que reflete uma configuração diferente, um cadastro urbanístico também diverso e um procedimento de tombamento, ou um decreto de utilidade pública, ainda não levados a registro. E que nesse hipotético terreno tenha havido, no passado, uma atividade contaminante do solo, (como por exemplo, um posto de combustíveis), que até a implementação de medidas corretivas impossibilitará o licenciamento de empreendimentos no imóvel – sem qualquer menção na matrícula. Ou ainda que num caso de loteamento anterior à atual legislação de parcelamento do solo e de registros públicos sejam exigidas contrapartidas urbanísticas pelo Município, para considerar o imóvel um lote regular e certificalo como tal, ou mesmo que o próprio serviço registral imobiliário exija tal certidão municipal, ou eventualmente exija averbação de construções existentes, desdobro ou instituição de condomínio em caso de mais de uma edificação no terreno, como condição para uma abertura de matrícula.

Igualmente é perfeitamente possível que um terreno rural de registro regular, já georreferenciado e com cadastro e reserva ambiental definida apresente sobreposição a outro, não georreferenciado e cadastrado, ou tenha um passivo ambiental (que é obrigação propter rem, nos termos do art. 2º, § 2º do Código Florestal) ainda em fase de investigação, ou se situe em área de proteção antropológica (indígenas e quilombolas, por exemplo), área de unidade de conservação ou zona de amortecimento desta, sítio arqueológico ou mesmo em área de concessão de direito minerário ou de outra servidão de natureza administrativa - sem qualquer menção na matrícula.

Percebe-se que a questão é complexa, e mesmo as regras mais recentes de desjudicialização e garantias ao adquirente ainda se encontram em processo de assimilação pelo meio jurídico, em especial pelos juízes e tribunais. No tocante aos cadastros públicos, cujos dados são sujeitos a averbação e representam também meios para maior segurança, a gradativa e demorada implementação e a cultura do clandestinismo registral são obstáculos significativos. Tudo isso representa risco ao adquirente, evidenciando a necessidade da due diligence imobiliária em grande parte dos negócios.

3. A duplicidade formal e a praxe negocial: a demanda por mais garantias ao adquirente após a formação do título translativo e a disponibilização dos recursos financeiros

Sabe-se que conforme o art. 1.245 do Código Civil Brasileiro, a propriedade imóvel transfere-se entre vivos com o registro do título translativo. E que tal título, pela regra geral do art. 108 do Código, deve se dar pela forma da escritura pública, em negócios de valor superior a 30 salários-mínimos. E que na quase totalidade dos negócios de compra e venda de imóveis sem financiamento, o vendedor exige que o pagamento do preço seja integralizado até a data da lavratura da escritura.

A maioria dos compradores de imóveis, por falta de conhecimento sobre a matéria registral imobiliária, supõe igualmente que as obrigações do vendedor terminam com a assinatura da escritura, e não reservam qualquer parcela do pagamento para se precaver contra problemas na fase de registro – que são muito comuns. Outros potenciais adquirentes, geralmente assessorados por advogados, deixam de fazer o negócio, exatamente por receio de, após pagarem todo o preço, terem problemas na fase registral, e não conseguirem mais recuperar o valor pago. Tais compradores precavidos, que por vezes perdem bons negócios por receio de dificuldades registrais, têm suas razões: pois uma parcela significativa das escrituras de compra e venda celebradas no Brasil, ao serem levadas ao Registro de Imóveis, não são registradas de imediato. Destas, muitas jamais alcançarão o registro, e outras somente são registradas após o atendimento de exigências registrais, que podem representar tempo e custos consideráveis. Esses registros impossíveis ou demorados têm como resultados conflitos diversos, ações de desfazimento dos negócios, de indenização, procedimentos de usucapião como forma de se contornar os óbices registrais e outras mais.

Fator estrutural que acentua esse problema está nas vicissitudes do procedimento de dúvida registrária previsto no art. 198 da Lei nº 6.015/73. Embora tenha natureza administrativa (art. 204), a dúvida é julgada por um juiz de direito, com intervenção do Ministério Público, e em alguns Estados é sujeita a duplo grau obrigatório de jurisdição. Com exceção das grandes comarcas, que possuem varas especializadas, o processo é julgado por um juiz de vara cível, ou até de vara única, já sobrecarregado por feitos de naturezas diversas e muitas vezes sem vivência com as especificidades do Direito Registral. O resultado não poderia ser outro senão uma tramitação lenta e sujeita a entendimentos diversos, o que discrepa de outros instrumentos legais instituídos exatamente em prol da funcionalidade do sistema registral.

Quando o tempo é crucial para o interessado no registro, esperar mais de um ano por uma decisão incerta é uma opção pouco aceitável - o que leva à subutilização desse instrumento tão importante, hoje evitado a todo custo pelo jurisdicionado, que prefere o “mal menor” e, quando viável, cumpre a exigência equivocada para ter o ato registral efetivado. Quando é impossível atender à exigência e a dúvida é a única via, o prejuízo pode ser significativo.

E no caso do adquirente que precisa do registro em tempo hábil para um empreendimento, por exemplo, qualquer possibilidade, ainda que em tese, do manejo da via da dúvida registral pode contraindicar o negócio. Esse é mais um exemplo do descompasso entre microssistemas normativos do Direito Imobiliário, sobre o qual inclusive já nos manifestamos em outras oportunidades(15) .

Em tais situações a instituição de cláusula resolutiva pode viabilizar a resolução contratual, mas a recuperação do valor, normalmente pago quando da outorga escritura, dependerá da solvabilidade do vendedor – o que pode representar outro problema. Tais aspectos inibem não só os negócios entre brasileiros, mas também as aquisições de imóveis por estrangeiros, que podendo optar por investir em países onde o risco na aquisição de imóveis é muito menor, relutam em investir com tantos riscos e variáveis.

Os fatos ora mencionados, familiares para quem milita na área imobiliária, revelam uma demanda por instrumentos jurídicos que possam garantir ao adquirente que caso ele destaque de seu patrimônio e disponibilize ao comprador o preço pactuado, e surjam impeditivos ou condicionantes ao negócio, mais ou menos previsíveis, lhe seja possível desfazer o contrato e reaver o valor, no todo ou em parte, sem necessidade de recorrer ao Poder Judiciário. E ao mesmo tempo garantir ao alienante que ainda que ele outorgue os direitos reais sobre o bem antes do recebimento do preço, o valor estará a salvo e garantido, apenas pendente da implementação de uma condição. Tal condição pode ser uma qualificação registral positiva, a solução de um problema envolvendo o imóvel, o pagamento de uma dívida que possa ameaçar o negócio ou outra qualquer, pactuada entre as partes.

4. A questão da fraude contra credores e a oportunidade de negociação da dívida pelo alienante.

Não são incomuns as situações nas quais o alienante se encontra endividado, e pretende vender o bem exatamente para quitar seus débitos. E do outro lado, o adquirente deseja comprar o imóvel, mas teme a configuração da fraude contra credores ou fraude à execução. Nos casos de débitos fiscais em dívida ativa, por exemplo, nem mesmo a ausência de averbação da dívida ou de ação executiva fiscal livram o adquirente do risco de uma discussão judicial. E havendo, por exemplo, um arrolamento administrativo de bens do contribuinte(16), a venda poderá até ensejar o manejo de medida cautelar fiscal (17)

Em tais situações, se houvesse a garantia para as partes de que satisfeito credor do vendedor, a venda convalescerá válida e eficaz, livre do risco da fraude a credores para o adquirente, o negócio poderia perfeitamente se realizar, mediante a reserva do valor dispendido pelo comprador, nas mãos de uma terceira pessoa, com o direcionamento específico dos recursos financeiros para a satisfação das dívidas e entrega do remanescente à parte alienante do imóvel.

Ressalte-se que para o devedor a disponibilidade do recurso pode inclusive viabilizar negociações com a parte credora, com propostas à vista. No caso do Fisco Federal, por exemplo, a Lei 13.988/2020 prevê a transação resolutiva de litígio relativo à cobrança de créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária.

A escrow account, como se vê, é um instrumento que como contrato acessório atípico já era útil para a lida com as variáveis e riscos das aquisições imobiliárias, e que já poderia ser utilizado nos exemplos acima. Mas o instituto, no tocante à transmissão de imóveis, padecia de fragilidades, como a penhorabilidade do valor depositado, e para os negócios imobiliários merecia tratamento legal próprio - o que agora o texto do Marco Legal das Garantias (Lei 14.711/23) claramente buscou sanar.

5. Da simplificada operacionalização do escrow account.

Para a contratação do escrow account a parte a quem compete efetuar o pagamento consignará, por meio do tabelião de notas, o preço total ou parcial da aquisição ou valores conexos, que será depositado em instituição financeira credenciada e conveniada, constituindo patrimônio de afetação que não poderá ser constrito por autoridade judicial ou fiscal, por motivo estranho ao próprio negócio, para que, ao final, constatada a ocorrência ou a frustração das condições negociais aplicáveis seja lavrada ata notarial, a pedido das partes,para efetivar e certificar o repasse dos valores devidos à parte devida e a eficácia ou a rescisão do negócio celebrado.

O escrow account é um contrato inominado e atípico, com função de garantia, em favor de sujeito alternativamente determinado. Apesar de concentrado, deve abrigar os requisitos de validade do art. 104 do Código Civil – forma prescrita em lei, partes capazes, objeto lícito, possível, determinado ou determinável, livre manifestação da vontade.

O escrow account poderá ser formalizado em contrato específico, no qual serão feitas menções cruzadas de vínculo com o negócio jurídico garantido ou em instrumento único mediante a inclusão de suas cláusulas e condições específicas ao conteúdo do contrato imobiliário principal.

Ainda que os contratos principais imobiliários possam ser pactuados mediante instrumentos particulares – nos casos admitidos expressamente por lei – o contrato de escrow mediado por tabelião de notas deverá ter a escritura pública como forma legalmente prescrita.

As cláusulas específicas do escrow devem ser minudentes e estar perfeitamente delineadas de forma a delimitar as condições e obrigações a serem cumpridas pelas partes, os riscos cobertos, as multas e os encargos, termos ou condições contratualmente previstos para o levantamento dos valores, no todo ou em partes e podem reduzir o nível de discricionariedade do tabelião quanto à análise da ocorrência de condições ou cumprimento de obrigações, elegendo claramente os documentos representativos de cada fato jurídico que serão apresentados, a tempo e modo, para demonstrar o direito ao levantamento do numerário.

É essa aparente simplicidade que se depreende do disposto no art. 7º-A e seus parágrafos inseridos na Lei nº 8.935/1994, pela Lei nº 14.711/2023 (Marco Legal das Garantias), nos seguintes termos:
[...]

Art. 7º-A Aos tabeliães de notas também compete, sem exclusividade, entre outras atividades:

I - certificar o implemento ou a frustração de condições e outros elementos negociais, respeitada a competência própria dos tabeliães de protesto;

II - atuar como mediador ou conciliador;

III - atuar como árbitro.

§ 1º O preço do negócio ou os valores conexos poderão ser recebidos ou consignados por meio do tabelião de notas, que repassará o montante à parte devida ao constatar a ocorrência ou a frustração das condições negociais aplicáveis, não podendo o depósito feito em conta vinculada ao negócio, nos termos de convênio firmado entre a entidade de classe de âmbito nacional e instituição financeira credenciada, que constituirá patrimônio segregado, ser constrito por autoridade judicial ou fiscal em razão de obrigação do depositante, de qualquer parte ou do tabelião de notas, por motivo estranho ao próprio negócio.

§ 2º O tabelião de notas lavrará, a pedido das partes, ata notarial para constatar a verificação da ocorrência ou da frustração das condições negociais aplicáveis e certificará o repasse dos valores devidos e a eficácia ou a rescisão do negócio celebrado, o que, quando aplicável, constituirá título para fins do art. 221 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), respeitada a competência própria dos tabeliães de protesto.


6. Conclusões.

Com as breves notas que aqui se apresentou, apontamos alguns problemas comuns nos negócios imobiliários e os riscos deles advindos para os adquirentes, bem como as lacunas decorrentes do descompasso entre novos e velhos instrumentos dos sistemas normativos que orientam o Direito Imobiliário.

Caminha-se a passos largos para um sistema mais coeso e seguro, mas a realidade atual ainda é de considerável clandestinidade registral e pouca integração entre cadastros e registros. E mesmo institutos jurídicos modernos e promissores, como a concentração de atos e dados na matrícula, demandam uma maturação dos operadores do Direito, sobretudo dos juízes, para que se mostrem eficazes na prática cotidiana. Nesse ponto até a dificuldade política para se votar no mesmo nível constitucional do Código Tributário Nacional, regras que atribuam à Fazenda Pública o ônus de inscrição de seus créditos nas matrículas imobiliárias, representa um mais uma variável de risco aos negócios.

A proliferação de decisões judiciais desacreditadoras do sistema, muitas delas via embargos de terceiro, nos prova a cada dia que essa assimilação é lenta e gradativa. Há ainda o problema dos muitos imóveis que remanescem registrados no sistema de fólio pessoal, com títulos pendentes de registro e abertura de matrículas, e o descompasso sistêmico da lentidão do processamento das dúvidas registrarias, verdadeiro gargalo para a celeridade na transmissão de direitos.

Todos esses fenômenos geram custos e riscos para as operações imobiliárias e amplificam a demanda social por instrumentos que possam facilitar a lida com esses percalços, como o escrow, que agora se reestrutura para os negócios imobiliários.

A nosso ver andou bem o legislador, atendendo a um ponto sensível dos negócios imobiliários e escolhendo, para a gestão desse novo instrumento, um agente especializado e de grande confiabilidade no meio social, que é tabelionato de notas. E a atuação dos advogados das partes contratantes do escrow, na definição das cláusulas e condições contratuais e seus modos de aferição inequívoca, em prol dos interesses e da segurança de seus constituintes, decerto contribuirá para a sua boa aceitação no meio imobiliário.


Eduardo Moreira Reis Advogado especializado em Direito Registral, Imobiliário e Urbanístico. Professor da pós-graduação da PUC/MG. Trabalha há cerca de 30 anos com questões jurídico-fundiárias. Membro da AD NOTARE – Academia Nacional de Direito Notarial, Registral, Crédito e Garantias Imobiliárias.

Mauro Antônio Rocha Advogado especializado em Direito Imobiliário, Notarial, Registral, Crédito e Garantias Imobiliárias. Coordenador de Contencioso Jurídico na Caixa Econômica Federal. Presidente da AD NOTARE – Academia Nacional de Direito Notarial e Registral.


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NOTAS (1) Boletim Migalhas nº 5805, de 11/03/2024.
(2) Art. 108 da Lei nº 10.406/2002 (Código Civil Brasileiro).
(3) https://www.dicionariofinanceiro.com/escrow/, acesso em 1º de março de 2024.
(4) LOUREIRO, Luiz Guilherme, Registros Públicos, teoria e prática, 4. Ed, Forense, SP 2013, p. 265.
(5) ÁVILA, Humberto, Teoria da segurança jurídica, 3ª ed, Malheiros, SP, 2014, p. 139.
(6) SIQUEIRA, Alexis Mendonça Cavichini Teixeira, MAHLMANN, Jean Karlo Woiciechoski, Presunção absoluta e os sistemas de registro de imóveis: dormientibus non sucurrit ius, Coleção IRIB Academia, COP Editora, RJ, 2022, p. 26.
(7) SANTOS, Francisco José Rezende - A Segurança Jurídica e o Registro De Imóveis- mensagem do Presidente do IRIB em carta aberta aos associados
(8) SIQUEIRA e MAHLMANN, 2022, op cit, p. 29.
(9) Decreto-Lei nº 745/1969 - Art. 1º Nos contratos a que se refere o art. 22 do Decreto-Lei nº 58, de 10 de dezembro de 1937, ainda que não tenham sido registrados junto ao Cartório de Registro de Imóveis competente, o inadimplemento absoluto do promissário comprador só se caracterizará se, interpelado por via judicial ou por intermédio de cartório de Registro de Títulos e Documentos, deixar de purgar a mora, no prazo de 15 (quinze) dias contados do recebimento da interpelação. Parágrafo único. Nos contratos nos quais conste cláusula resolutiva expressa, a resolução por inadimplemento do promissário comprador se operará de pleno direito (art. 474 do Código Civil), desde que decorrido o prazo previsto na interpelação referida no caput, sem purga da mora. (com a redação dada pela Lei nº 13.097/2015)
(10) Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis. (...) § 2º Enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel. (...) Art. 1.247. (...) Parágrafo único. Cancelado o registro, poderá o proprietário reivindicar o imóvel, independentemente da boa-fé ou do título do terceiro adquirente.
(11) Redação antiga: Art. 246 - Além dos casos expressamente indicados no item II do art. 167, serão averbados na matrícula as sub-rogações e outras ocorrências que, por qualquer modo, alterem o registro. Redação atual: Art. 246. Além dos casos expressamente indicados no inciso II do caput do art. 167 desta Lei, serão averbadas na matrícula as sub-rogações e outras ocorrências que, por qualquer modo, alterem o registro ou repercutam nos direitos relativos ao imóvel.
(12) Tese C) O regime registral brasileiro admite a averbação de informações facultativas de interesse ao imóvel, inclusive ambientais. Tese D) O Ministério Público pode requerer diretamente ao oficial de registro competente a averbação de informações alusivas a suas funções institucionais
(13) Vale lembrar que o CTN é lei complementar, e as leis 13.097 e 14.382 são leis ordinárias.
(14) Art. 185. Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa.
(15) https://encurtador.com.br/chKQT
(16) A Lei nº 9.532/1997, art. 64.
(17) Lei 8.397/1992, art. 2º.


Publicado originalmente no Boletim Migalhas nº 5.806, de 12/03/2024

sábado, 2 de março de 2024

PONTO DE VISTA - Especialistas analisam o Marco Legal das Garantias



O chamado Marco Legal das Garantias, como é conhecida a Lei nº 14.711/2023, foi sancionado em outubro de 2023 e teve origem no PL nº 4.188/2021. O texto, que altera diversas outras leis, dispõe sobre o aprimoramento das regras de garantia, a execução extrajudicial de créditos garantidos por hipoteca, a execução extrajudicial de garantia imobiliária em concurso de credores, o procedimento de busca e apreensão extrajudicial de bens móveis em caso de inadimplência de contrato de alienação fiduciária, o resgate antecipado de Letra Financeira, a alíquota de imposto de renda sobre rendimentos no caso de fundos de investimento em participações qualificados que envolvam titulares de cotas com residência ou domicílio no exterior e o procedimento de emissão de debêntures.

De acordo com o relatório “Ease of Doing Business” de 2020, do Banco Mundial, a taxa de recuperação de garantias no Brasil era de 18%, enquanto a média mundial era de 37%. Isso mesmo com o período de negociação no Brasil sendo de quatro anos, que é maior do que a média da América Latina, de 2,9 anos.Para analisar de forma detalhada a lei, quais ganhos e desafios ela traz com as diversas mudanças, novidades e possibilidades para o sistema de garantias, falamos com especialistas.



Qual sua análise sobre o Marco Legal das Garantias? 

Fábio Machado Baldissera e Felipe Tremarin: Entendemos que o Marco Legal das Garantias veio com o intuito de aperfeiçoar as garantias reais, em especial o instituto da hipoteca e da alienação fiduciária sobre bens imóveis, bem como de aprimorar o sistema de execuções de garantias por meio do regime extrajudicial. Isso, ao nosso entender, traz maior segurança aos operadores do mercado financeiro, o que poderá resultar em uma maior concessão de crédito e na redução de custos envolvidos. 

Mauro Antônio Rocha Com o inapropriado rótulo de “marco legal das garantias” – sabiamente descartado do texto final – a Lei nº 14.711 foi sancionada em 30 de outubro de 2023 com o objetivo de “aprimoramento das regras relativas ao tratamento do crédito e às [sic] medidas extrajudiciais para recuperação de crédito”. Norma legal de trajetória insólita, o projeto de lei apresentado em 2021 – elaborado com retalhos de sugestões provindas de diversas minutas divulgadas nos últimos anos pelas entidades representativas das instituições financeiras – foi surpreendentemente reanimado para atender ao interesse da área econômica do governo atual, em 2023.

O clamor da mídia e o imoderado entusiasmo dos especialistas patrocinados propiciaram a exagerada repercussão das promessas de redução das taxas de juros, a expansão do crédito, a geração de empregos, o destravamento do mercado, o acirramento da concorrência entre instituições e o aumento da participação do crédito imobiliário no PIB anunciado pelo marketing das entidades e associações. A nosso ver, sopesados os habituais e nunca efetivamente comprovados efeitos de acesso fácil ao crédito barato, as mudanças trazidas se conformam de maneira a enrijecer a execução da dívida, realçando a intuição comum de que os fiduciantes não têm patronos, defensores ou simpatizantes na Administração Pública ou no Congresso. 

Quais são as principais mudanças trazidas pela nova legislação? 

Fábio Machado Baldissera e Felipe Tremarin: São diversas as inovações trazidas pelo Marco Legal das Garantias que, como mencionado anteriormente, visam aperfeiçoar o regime das garantias no Direito brasileiro. Entre as principais inovações, destacamos aquelas relacionadas, principalmente, às inovações trazidas aos institutos da hipoteca e da alienação fiduciária de bens imóveis, bem como aquelas relacionadas à excussão extrajudicial de tais garantias, sem excluir, obviamente, a importância das diversas outras inovações trazidas pela legislação, como é o caso, por exemplo, das alterações realizadas no âmbito registral e notarial e aquelas trazidas ao mercado de capitais, dando destaque à simplificação do procedimento de emissão de debêntures. Destacamos as seguintes alterações: a previsão de alienação fiduciária superveniente de bem imóvel, a partir da qual será possível uma nova alienação fiduciária sobre o mesmo imóvel; a possibilidade de estender a hipoteca e/ou a alienação fiduciária de bem imóvel, por meio da qual a garantia já constituída possa ser utilizada como garantia de operações novas e autônomas de crédito; a criação de procedimento que possibilita a execução extrajudicial dos créditos garantidos por hipoteca em procedimento a ser realizado perante o Cartório de Registro de Imóveis competente, em procedimento similar à excussão da alienação fiduciária e a criação da execução extrajudicial da garantia imobiliária em concurso de credores, por meio do qual, em situações em que houver mais de um crédito garantido pelo mesmo imóvel, o Oficial do Registro de Imóveis Competente intimará simultaneamente todos os credores concorrentes para habilitarem os seus créditos. 

Mauro Antônio Rocha: Naquilo que nos interessa, merecem destaque positivo (i) a permissão de contratação e registro da alienação fiduciária de bem imóvel superveniente, regulada pelos §§ 3º a 10 incluídos ao art. 22 da Lei nº 9.514/1997, proporcionando o aproveitamento do gap entre o total do crédito garantido e o valor do imóvel integralmente transmitido em caráter resolúvel ao fiduciário, que desperdiça oportunidades de crédito e garantia; (ii) a extensão da garantia fiduciária existente para operações de crédito novas e autônomas de qualquer natureza, mediante simples aditamento contratual e independentemente do cancelamento da garantia originária, para assentir com a utilização do crédito residual concedido e aproveitamento da garantia excedente; (iii) a possibilidade de execução extrajudicial de créditos garantidos por hipoteca, regulada pelo art. 9º da Lei 14.711, que apostou no aproveitamento dos procedimentos conhecidos e já experimentados da execução extrajudicial da garantia fiduciária, com as adaptações requeridas por se tratar, a hipoteca, de direito real de garantia sobre coisa alheia. No campo dos procedimentos de execução extrajudicial, foi positiva a inserção do art. 27-A, que simplificou a intimação do fiduciante no caso de dívida garantida por múltiplos imóveis, facilitando a consolidação da propriedade e o leilão dos imóveis em coerência com as premissas gerais da garantia fiduciária. Inexplicável, no entanto, a ausência de detalhamento procedimental mínimo de controle das informações e anotações entre os ofícios de registro envolvidos. Destacam-se negativamente (i) o recrudescimento sistemático dos procedimentos de execução extrajudicial, especialmente com relação às intimações e realização da garantia em leilão público, sempre em detrimento dos interesses dos devedores; (ii) a expansão da obrigação de pagamento de saldo devedor remanescente (até então devido apenas em operações específicas e pontuais previstas na legislação extravagante) para contratos de qualquer natureza, com a exceção para contratos de crédito habitacional de que trata o § 4º do art. 26, exigível por meio da excussão das demais garantias da dívida ou, se for o caso, de ação de execução, quando o produto do leilão for insuficiente à quitação total do crédito e encargos (§ 5º-A do art. 27 da Lei de Regência); (iii) a redução para 50% do valor do imóvel, em qualquer situação, do referencial mínimo admitido para venda em leilão, previsto no § 2º do art. 27, pelo aproveitamento oportunista de proposta que estabelecia o percentual referido na lei processual para caracterizar o preço vil como valor mínimo na execução de dívidas de valor inferior, permitindo que o credor abdique unilateralmente da recuperação integral do crédito em proveito do recebimento do valor da dívida remanescente. 

O Marco Legal das Garantias irá impulsionar a atividade imobiliária e os atos de registro no Brasil? Quais são os pontos de atenção para os profissionais da área?
 
Fábio Machado Baldissera e Felipe Tremarin: Sim, entendemos que o Marco Legal das Garantias irá impulsionar a atividade imobiliária, uma vez que ele tem o objetivo de aperfeiçoar as garantias reais sobre imóveis, o que trará maior segurança e confiança aos operadores do mercado. Isso tende a resultar em uma maior concessão de crédito e na redução de custos envolvidos em financiamentos. No entanto, alertamos que a nova legislação não irá afastar de pronto todas as dificuldades e inseguranças enfrentadas pelo setor imobiliário. Isso levará tempo e demandará um trabalho em conjunto entre o setor, juristas e advogados especializados em Direito Imobiliário, de modo que juntos possam levar ao Poder Judiciário argumentos favoráveis ao setor com relação às inovações trazidas pelo Marco Legal das Garantias. 

Mauro Antônio Rocha: Os pontos positivos anteriormente referidos, em especial a permissão para o “recarregamento” da garantia, têm potencial para impulsionar, ainda que de forma residual, o mercado imobiliário e, principalmente, proporcionar o melhor aproveitamento do bem alienado fiduciariamente. Outros dispositivos não comentados dessa feita (execução extrajudicial de garantias fiduciárias de bem móvel, solução negocial prévia ao protesto e a administração fiduciária de garantias, por exemplo) deverão tracionar as atividades dos registros de títulos e documentos e dos cartórios de protestos. Porém, não querendo atrapalhar a festa, a simples leitura da lei é suficiente para identificar alguns procedimentos interessantes para a modernização da lei e ampliação da segurança jurídica dos contratantes, enquanto outros claramente potencializam controvérsias que deixarão o instituto exposto às interpretações judiciais, bem como para ressaltar o superdimensionamento dos benefícios e a ausência no texto legal de novidade capaz de suportar a bonança prometida pela mídia e pelos mercados. Ao profissional do Direito, notadamente àqueles que advogam em favor dos devedores, cabe buscar a correta compreensão das alterações legais trazidas de forma a monitorar a legalidade das atividades praticadas pelos oficiais de registro no âmbito da execução extrajudicial, especialmente a regularidade das intimações, da consolidação da propriedade e – principalmente – da observância dos prazos legais para realização dos leilões públicos, das regras relativas aos preços de oferta e venda do imóvel, bem como da fiscalização das despesas, taxas e emolumentos adicionados ao saldo devedor e da prestação de contas para a apuração final dos saldos devedor e remanescente da dívida e quitação da dívida após a arrematação.

FÁBIO MACHADO BALDISSERA é Advogado. Doutor em Direito. Especialista da área imobiliária.

FELIPE TREMARIN é Advogado. Especialista em Direito Imobiliário pelo Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter).

MAURO ANTÔNIO ROCHA é Advogado. Especialista, Palestrante e Instrutor com pós-graduação em Direito Imobiliário pelo Instituto Nacional de Ensino Superior e Pesquisa/SP, e em Direito Notarial e Registral pela Faculdade Arthur Thomas, Londrina. Professor convidado para diversos cursos de graduação e pós-graduação. Associado AASP desde 1990.
  
(Publicado originalmente no Boletim AASP #3188, de março/2023 - acesso restrito aos associados da AASP)

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Especialistas avaliam que marco legal das garantias era necessario

Mauro Antônio Rocha (☆)

Em evento online promovido pelo Migalhas para discutir o marco legal das garantias (lei 14.711/23), os palestrantes concordaram que a legislação era necessária, embora tenham discordado de algumas das mudanças propostas. Sob a coordenação de Mauro Antônio Rocha, o encontro reuniu renomados especialistas em quatro painéis, abordando 10 subtemas.

Ainda na explanação inicial, Mauro Antônio Rocha ressaltou que a lei é bastante recente e ainda está sendo analisada pelos especialistas. O coordenador também lembrou que a proposta não tramitou rapidamente no Senado. "É preciso recordar que a matéria tratada no projeto não é nova. Estamos discutindo esse assunto desde pelo menos 2007."

O marco legal das garantias, sancionado no final de outubro, possibilita que um mesmo bem seja utilizado como garantia em mais de um pedido de empréstimo. A norma estabeleceu novas regras e condições para a realização de penhora, hipoteca ou transferência de imóveis para pagamento de dívidas.

Dentre os pontos relevantes, a lei permite ao devedor contrair novas dívidas com o mesmo credor da alienação fiduciária original, desde que dentro do limite da sobra de garantia da operação inicial. Por exemplo, se o valor garantido por um imóvel no primeiro empréstimo for de até R$ 100 mil e a dívida original for de R$ 20 mil, o devedor poderá tomar novo empréstimo junto ao mesmo credor em valor de até R$ 80 mil.



Publicado originalmente no Boletim Migalhas

sábado, 2 de dezembro de 2023

O mistério dos arts. 23 e 24 da lei 9.514/97 (ou a casa da mãe Joana legislativa)


Mauro Antônio Rocha (☆)


Os textos dos arts. 23 e 24 da lei 9.514/97 publicados no Portal da Legislação e no Portal da Câmara dos Deputados são divergentes e estão, aparentemente, ambos errados.


1. Ainda que ressalve reiteradamente 'não substituir os textos publicados no Diário Oficial da União' o Portal da Legislação do Governo Federal, mantido pela Casa Civil da Presidência da República, é o repositório legislativo mais confiável e acessado pelos operadores do Direito no Brasil e o conteúdo de suas páginas é reproduzido e transcrito em processos, pareceres, estudos e livros, dispensando, geralmente, a essencial confirmação de veracidade.

No entanto, ao revisar - em cópia reproduzida do Portal da Legislação - os dispositivos da lei 9.514,1 severamente modificados pelo recente Marco Legal das Garantias, minha percepção foi desviada para algumas óbvias incongruências no texto dos arts. 23 e 24, que suportaram a revogação, inclusão e transformação de parágrafos originados na MP de 14 de fevereiro2, convertida na lei 14.620, de 13 de julho, ambas de 20233.

2. Compulsando os remissivos verifiquei que a MP 1.162, na parte em que tratou exclusivamente da Lei nº 9.514/1997, se limitou a revogar o parágrafo único do art. 24 para nele incluir os parágrafos 1º (com a reinserção do texto revogado) e 2º, para, naquilo que nos interessa, viger com a seguinte redação:

Art. 24. O contrato que serve de título ao negócio fiduciário conterá:

[...]

Parágrafo único. (Revogado pela MP 1.162/23) 

§ 1º Caso o valor do imóvel convencionado pelas partes nos termos do inciso VI do caput seja inferior ao utilizado pelo órgão competente como base de cálculo para a apuração do imposto sobre transmissão intervivos, exigível por força da consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário, este último será o valor mínimo para efeito de venda do imóvel no primeiro leilão. (incluído pela MP 1.162/23)

§ 2º Nos contratos firmados com cláusula de alienação fiduciária em garantia, caberá ao fiduciante a obrigação de arcar com o custo do pagamento do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana - IPTU incidente sobre o bem e das taxas condominiais existentes. (incluído pela MP 1.16/23).

Ao tramitar pelo Congresso Nacional a anunciada MP foi transmutada para o projeto de lei de conversão PLV 14/23 e posteriormente para a lei Ordinária 14.620/23, sancionada com vetos pelo Presidente da República. Assim, nos exatos termos do § 12 do art. 62, da Constituição Federal, a norma legal supratranscrita manteve-se integralmente vigente até a data da sanção presidencial, para, a partir de então, entrar em vigor o texto adotado pela lei ordinária de conversão.

Ocorre que a lei de conversão não prestigiou as alterações trazidas ao art. 24 pela MP, com a consequência - observado o dispositivo constitucional aludido - da repristinação da norma com o retorno à redação original, a partir da sanção da lei, na forma abaixo:

Art. 24. O contrato que serve de título ao negócio fiduciário conterá:

[...]

Parágrafo único.  Caso o valor do imóvel convencionado pelas partes nos termos do inciso VI do caput deste artigo seja inferior ao utilizado pelo órgão competente como base de cálculo para a apuração do imposto sobre transmissão intervivos, exigível por força da consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário, este último será o valor mínimo para efeito de venda do imóvel no primeiro leilão. (Incluído pela lei 13.465/17)   

Entretanto, a redação atualizada da lei 9.514/97 ofertada pelo Portal da Legislação ainda mantém indevidamente revogado o parágrafo único do art. 24 e vigentes os parágrafos 1º e 2º descartados pelo PLV convertido em lei, prontos para induzir os incautos ao erro e a merecer os reparos técnicos apropriados.

Não bastasse isso, ao deslocar parcialmente para o art. 23 um dos parágrafos anteriormente alocados no art. 24 pela MP o legislador mandou às favas as regras básicas de redação legislativa para, independentemente de qualquer comando, sem transcrever a norma do parágrafo único, transformá-lo em § 1º de maneira a permitir a inclusão do § 2º, da seguinte forma:

Art. 23.

§ 1º.........................................................

§ 2º Caberá ao fiduciante a obrigação de arcar com o custo do pagamento do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana - IPTU incidente sobre o bem e das taxas condominiais existentes." (NR) 

Não por acaso, confusos e em dúvida, os técnicos da Casa Civil mantiveram tanto o § 1º quanto o parágrafo único no texto da lei (grifo nosso):

Art. 23. Constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título.

Parágrafo único. Com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário possuidor indireto da coisa imóvel.

§ 1º Parágrafo único. Com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário possuidor indireto da coisa imóvel. (Incluído pela lei 14.620/23) 

§ 2º Caberá ao fiduciante a obrigação de arcar com o custo do pagamento do IPTU incidente sobre o bem e das taxas condominiais existentes. (Incluído pela lei 14.620/23). 

3. De outra forma, o Portal de Atividade Legislativa da Câmara dos Deputados que também se revela excelente e confiável repertório de textos legais atualizados, regularmente consultado por pesquisadores e advogados quando imperioso o double check, tratou com precisão cirúrgica do art. 24, excluindo os parágrafos adicionados pela MP e abandonados pelo PLV e repristinando o parágrafo único anteriormente existente. No entanto, para nossa surpresa e preocupação, adotou gambiarra redacional ao indicar no § 1º do art. 23 uma remissão de transformação de dispositivo inexistente no texto legal de origem ("Parágrafo único transformado em § 1º pela lei 14.620, de 13/7/23").

4. Os desacertos apontados podem parecer desimportantes, mas revelam a incúria e o descaso do legislador no tratamento da norma, resultantes, dentre outros fatores, do desnecessário aproveitamento da urgência das medidas provisórias e da avidez com que representantes das entidades e dos mercados financeiros avançam contra os direitos dos fiduciantes, o que restou claramente evidenciado na redação final da lei 14.711/23, fragilizando o instituto e proporcionando relevantes argumentos para a judicialização de seus procedimentos.

Está na hora da eclosão de um movimento de depuração da lei, para o efetivo aprimoramento do instituto da alienação fiduciária de bem imóvel e para a correção dos desvios e exclusão dos malfeitos na lei 9.514/97, tão importante para a garantia dos negócios jurídicos em geral.

Para começar, proponho que a Casa Civil do Governo Federal e a presidência da Câmara Federal determinem a imediata correção dos textos da lei 9.514 ali publicados.


(☆)Mauro Antônio Rocha
Advogado graduado pela Faculdade de Direito da USP e pós-graduado em Direito Imobiliário e Direito Notarial e Registral.
Eleito Presidente da AD NOTARE Academia Nacional de Direito Notarial e Registral para o biênio 2024/2025


NOTAS

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1 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9514.htm (acesso em 29/11/23)
2 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Mpv/mpv1162.htm (acesso em 29/11/23)
3 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Lei/L14620.htm (acesso em 29/11/23)

Publicado originalmente no Boletim Migalhas nº 5.738, de 02 de dezembro de 2023.

sábado, 18 de novembro de 2023

Marco Legal das Garantias. A mora do devedor impõe a consolidação da propriedade?


Mauro Antônio Rocha (☆)



Na alienação fiduciária, caracterizada a mora do devedor, o fiduciário deve requerer de imediato a consolidação da propriedade e, se preciso, a venda do imóvel em leilão, respeitando os prazos legais.


1. Em extenso e excelente artigo publicado no boletim Migalhas nº 5.7191 o Prof. Carlos E. Elias de Oliveira apresentou detalhada análise da lei 14.711, de 30 de outubro de 2023, cognominada Marco Legal das Garantias - cuja leitura lenta, desordenada e simultânea com outros textos sobre a matéria animaram os mornos dias pós feriado - minha atenção foi apanhada por duas questões aparentemente desconectadas do tema por que, a rigor, não se encontram diretamente reguladas pela norma legal analisada.

Nelas, o autor analisa causas e consequências do voluntário retardo do credor fiduciário na instauração do procedimento de execução extrajudicial da alienação fiduciária de imóvel e trata da possibilidade de fazê-lo o próprio devedor ou fiduciante, inaugurando o procedimento de excussão como instrumento de defesa.


2. O autor se refere à ilegalidade de o fiduciário retardar injustificadamente as providências necessárias para iniciar os atos destinados à execução da dívida fiduciária, com a intenção de auferir benesses financeiras decorrentes dos elevados encargos moratórios e legais incidentes sobre a dívida consolidada, com a consequente redução do valor a restituir ao fiduciante após a quitação total da dívida ou elevação indevida da dívida remanescente e exigível.

Dispõe o autor que esses encargos vantajosos podem incentivar o credor a postergar o procedimento executivo, adotando "postura de má-fé (de espertalhão) censurada pelo nosso ordenamento por meio do 'duty to mitigate the loss', o dever de mitigar as próprias perdas, que "estabelece que o credor não pode adotar conduta oportunista que estimule o aumento da dívida com o objetivo de obter proveito maior."

Nesse contexto, sustenta que o § 5º A - inserido pela lei comentada ao art. 27 da lei 9.514/97 com o objetivo de imputar ao fiduciante o risco do negative equity - para além de responsabilizar o devedor e o fiduciante pelo pagamento do saldo da dívida eventualmente remanescente após a alienação do bem imóvel em leilão público - pode gerar situação extremamente sensível ao fiduciante, uma vez que, "quanto mais tempo o credor demorar a cobrar a dívida, maior será o valor da dívida por conta da incidência dos encargos moratórios", ressalvando a não aplicação da regra aos casos de financiamento para aquisição ou construção de imóvel residencial "perante instituições financeiras".

Grifei "perante instituições financeiras" pois, a meu ver, foi atraída pela utilização, no 'caput" do art. 26-A, do substantivo masculino 'financiamento' que designa operação de crédito própria de entidades com funcionamento e atividades autorizadas pelo Banco Central do Brasil.  Ocorre que, pelo princípio da isonomia e considerada a quantidade de imprecisões conceituais e redacionais encontráveis no texto legal, parece-me que a exceção apontada deve ser aplicada também às operações de parcelamento do preço (não-financeiras) praticadas por construtoras e incorporadoras, o que, por certo, abrirá um novo franco para a judicialização dos contratos de garantia fiduciária.


2.1 O anunciado § 5º A, incluído no art. 27 da lei 9.514/97, foi trabalhado pelo legislador para, em conjunto com outros dispositivos, estender às operações financeiras e comerciais ordinárias realizadas com garantia fiduciária a responsabilidade dos fiduciantes e prestadores de garantia pessoal pelo pagamento do saldo devedor remanescente, que fora introduzida inicialmente pelo burlesco art. 9º da lei 13.476/17 que, ao cuidar das garantias constituídas no instrumento de abertura de limite de crédito, dispôs sobre dita obrigação sem que se tivesse dado conta de que, no procedimento então vigente para a venda do imóvel em leilão - exclusivamente pelo valor revisado do bem em primeiro leilão ou pelo valor total da dívida no segundo - não haveria hipótese possível de aplicação da imposição pretendida, situação agora corrigida pela redução do referencial mínimo para venda do bem imóvel à metade do "valor de avaliação" (expressão inserta no § 2º do art. 27 da lei que, pela inexistência de avaliação ou reavaliação do bem levado à leilão, contém explosiva potência de judicialização).

Assim, ao mesmo tempo em que a lei aperta o devedor e o fiduciante reduzindo as possibilidades de 'saída honrosa' para a situação de inadimplência enfrentada, mostra toda a sua magnanimidade para com o fiduciário, ao estabelecer prazos não peremptórios, incompatíveis com a presteza do procedimento adotado e destituídos de penas pelo não cumprimento.

Não por acaso, a lei de regência (a) não penaliza o fiduciário pela administração descuidada do contrato que afeta a indicação dos meios de localização rápida e eficiente dos intimados; (b) não impõe prazo ao fiduciário para o início do procedimento de excussão após evidenciado o inadimplemento; (c) não determina prazo para o atendimento da exigência legal de apresentação dos comprovantes de pagamento dos tributos para a consolidação da propriedade; (d) não estabelece multa para o descumprimento do prazo de realização do público leilão após a consolidação da propriedade, que, ademais, foi agora absurdamente alargado para sessenta dias (art. 27, caput, com redação).

Esses são apenas alguns exemplos de situações admitidas pela lei, favoráveis e suficientes para proporcionar ao fiduciário a postergação de medidas e proporcionam a acumulação de parcelas vencidas, acréscimos moratórios e penalizações de toda ordem, para além da imputação de taxa de ocupação ao fiduciante e de sua própria desobrigação quanto às despesas condominiais e tributárias incidentes, sem correr o risco de responder por violação voluntária do 'duty to mitigate'.

Aliás, cabe aqui apontar uma inusitada contradição interna na lei 14.711/23. De um lado, a lei permite e fomenta a extensão ou recarregamento de crédito em contratos bancários com garantia fiduciária, bem como impulsiona  a contratação das alienações fiduciárias de propriedades supervenientes - operações que são lastreadas direta ou indiretamente pelo bem patrimonial nominado direito real de aquisição, no qual se sub-rogarão esses créditos em eventual execução de garantia antecedente - enquanto, de outro lado, a lei penaliza gravemente o devedor e seu garante fiduciante com a extensão de prazos, a redução do referencial mínimo para venda do imóvel em leilão e a execução de saldos remanescentes. Evidentemente, a ausência de valores sobejantes - representação financeira do mencionado direto real de aquisição - transmudará para pó a garantia desses credores tardios.


2.2 De resto, cumpre redizer que a aspiração de penalizar o fiduciante por prejuízos nunca comprovados ou não comprováveis pelas entidades representativas dos mercados financeiro e de capitais deturpa o caráter satisfativo do instituto da alienação fiduciária de bem imóvel - garantia fiduciária pronta e suficiente para proporcionar o retorno do crédito concedido, nos casos de inadimplência contratual - que propicia ao credor fiduciário plena autonomia para examinar previamente o bem oferecido em garantia, proceder à sua avaliação econômica e estabelecer, unilateralmente, o limite de crédito a ser conferido ao tomador, mitigando a possibilidade de prejuízo na operação, limitando-a a situações decorrentes de descaso, comodismo, incompetência ou inobservância dos critérios analíticos da contratação de crédito.


3. Legitimidade do fiduciante para iniciar a execução extrajudicial


Na sequência, o autor questiona a legitimidade de, constatado o retardo comissivo ou omissivo do fiduciário, o próprio devedor ou o fiduciante requerer o início do rito executivo extrajudicial previsto na lei 9.514/97 para a consolidação da propriedade e oferta pública de venda do imóvel para a liquidação da dívida, entendendo ser "plenamente viável", considerada a omissão dos arts. 26 e 27 A da referida lei, que o devedor ou fiduciante tome a iniciativa de inaugurar os procedimentos executivos, mediante requisição ao competente Ofício de Registro de intimação do fiduciário para o recolhimento dos tributos devidos e consequente consolidação da propriedade plena para a realização dos públicos leilões de venda e quitação da dívida, dispensando-se, por óbvio, a intimação do requerente para a purgação da mora.

Trata-se, ainda no entendimento do autor, "do direito do devedor em atenuar os seus prejuízos, pois, quanto mais demorar a excussão do imóvel, maior será o saldo devedor remanescente."


3.1 O questionamento engendrado é bastante interessante e merece ser marcado e ponderado para futuras revisões da norma analisada.

No entanto, nas condições atuais, considero impraticável a solução proposta por não reconhecer a omissão legal apontada. Na verdade, a lei traz um procedimento expresso, específico e definido para a execução extrajudicial que autoriza apenas ao fiduciário a iniciativa de requerer ao Oficial de Registro de Imóveis a intimação do devedor e do fiduciante e consecução do procedimento até a consolidação efetiva da propriedade.

Por conta do procedimento legal estatuído entendo que a intimação tempestiva do fiduciante, assim como a consolidação da propriedade, a venda do bem em leilão público e demais atividades requeridas para a realização do ativo e quitação da dívida constituem obrigações do fiduciário, cujo descumprimento configura a violação contratual que autoriza ao devedor ou fiduciante exigir judicialmente sua efetivação, inclusive com o pedido de antecipação de tutela e fixação de multa para o caso de descumprimento, além da imposição de perdas e danos, nos termos dos arts. 536 § 4º e 815 do CPC.


4. A análise e o entendimento do texto da lei em comento, notadamente da parte relativa ao "aprimoramento" das regras da alienação fiduciária de bem imóvel, ainda preliminares, já demonstram a fragilidade de parte das proposições, o que potencializa controvérsias e expõe o instituto às interpretações judiciais.



(☆)Mauro Antônio Rocha Advogado graduado pela Faculdade de Direito da USP e pós-graduado em Direito Imobiliário e Direito Notarial e Registral. Vice Presidente da AD NOTARE Academia Nacional de Direito Notarial e Registral


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Nota:

1 Oliveira, Carlos E. Elias de. Lei das Garantias (lei 14.711/23): Uma análise detalhada. Boletim Migalhas nº 5.719. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/396275/lei-das-garantias-lei-14-711-23--uma-analise-detalhada.

Publicado originalmente noBoletim Migalhas nº 5.722, de 07 de novembro de 2023.

sexta-feira, 3 de novembro de 2023

SEMINÁRIO DESVENDANDO O MARCO LEGAL DAS GARANTIAS. IMPERDÍVEL

MIGALHAS e AD NOTARE promoverão o seminário DESVENDANDO O MARCO LEGAL DAS GARANTIAS, com a participação de grandes especialistas nas áreas do Direito Imobiliário, Crédito Imobiliário, Direito Civil e Direito Notarial e REgistral, sob a Coordenação do Dr. Mauro Antônio Rocha.
Informações sobre os participantes, programação e inscrições podem ser obtidas em MIGALHAS EVENTOS