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quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Sobre a judicialização da cobrança de dívida garantida por alienação fiduciária de imóvel.

Mauro Antônio Rocha (☆)


A cobrança de dívida garantida por alienação fiduciária de bem imóvel deve ser extrajudicial na forma da Lei 9.514/97, exceto se houver intransponível impedimento jurídico-legal para execução na forma da lei.

1. Ainda na metade do ano – já cansado por acompanhar as novidades que são incorporadas ao direito imobiliário tão-só para turbinar comissões do mercado financeiro e o vaivém do transformado marco das garantias com suas inusitadas e mal redigidas emendas – fui atentado por alunos e colegas para o interessante artigo publicado no boletim Migalhas(1) pelo eminente jurista e professor Carlos Eduardo Elias de Oliveira sobre a cobrança judicial de dívida com garantia fiduciária e instado a – quiçá – reconsiderar posição contrária a essa possibilidade.

Naquilo que efetivamente nos afasta, o autor entende factível a opção – ao talante do credor – entre a via judicial ou extrajudicial para a execução de dívida garantida por alienação fiduciária de imóvel, bem como, no processo judicial e “com o mesmo resultado prático”, requerer “a consolidação da propriedade fiduciária” ou “a penhora e a adjudicação do direito real de aquisição do devedor fiduciante na forma da lei processual, caso em que haverá automática consolidação da propriedade”.

2. Ponderando que a simplicidade e a celeridade do procedimento extrajudicial de execução da garantia fiduciária foram os principais benefícios almejados e sempre destacados pela unanimidade dos especialistas no cotejo com o processo judicial, cabe indagar quais outros interesses afloram e estão a impelir esses credores ao apelo judiciário.

O ilustre professor nos adverte sobre ações de execução intentadas por credores “para cobrar dívidas garantidas por alienação fiduciária no lugar de valer-se da execução extrajudicial da Lei nº 9.514/97” para “asfixiar o devedor” com a penhora de bens e créditos diversos, deixando “de molho” o imóvel onerado e já constrito. Outros credores, aclara, percorrem o caminho judicial ao pressentir que o crédito sobeja o valor do bem constituído em garantia e temer a extinção “do saldo devedor remanescente após a execução do imóvel nos termos do § 5º do art. 27 da Lei nº 9.514/97”.

De plano, o modus operandi apontado na primeira hipótese, além de incompreensível, é obviamente inadmissível em uma operação regular de crédito com garantia fiduciária e externa características extorsivas, expondo o devedor a danos materiais e morais indenizáveis por quem os tenha causado.

Com relação à segunda hipótese não é raro o apelo ao judiciário pelo credor que sabe ser a garantia insuficiente para a liquidação do crédito e tem a pretensão de prosseguir na execução com vistas ao recebimento da diferença entre o valor total da dívida apurada conforme disposto no § 3º do art. 27 da Lei nº 9.514/1997 que supere o valor de avaliação do imóvel incorporado ao patrimônio por força do disposto no § 5º do mesmo artigo, assim como, para a apreciação de situações específicas que envolvam fraudes, desiquilíbrio contratual etc.

Neste ponto, importa ressaltar que, salvo a ocorrência de sinistro que destrua, inutilize ou reduza o valor da garantia sob a responsabilidade do devedor (casos em que o vencimento antecipado da dívida autoriza o credor a optar pelo processo judicial de execução) a eventual insuficiência de garantia escancara a incompetência do credor na formulação de um negócio jurídico em que a lei a ele permite (i) vistoriar para aceitar ou não a garantia oferecida; (ii) definir o valor de mercado do bem; (iii) limitar o crédito à capacidade de pagamento do devedor, desvinculado do valor do imóvel; (iv) apropriar-se plena e definitivamente do bem no caso de ausência de arrematantes em leilão público.

3. De início, cumpre destacar que o contrato de alienação fiduciária de bem imóvel de que trata a Lei nº 9.514/1997 é acessório e pressupõe a existência de um contrato principal, geralmente – mas não necessariamente – de mútuo em dinheiro.

Pela alienação fiduciária o devedor, ou terceiro garantidor, transfere a propriedade fiduciária do bem imóvel ao credor, sob condição resolutiva vinculada ao pagamento integral da dívida e seus encargos.

É contrato típico, para o qual a lei de regência fornece um conteúdo mínimo, com destaque especial para a obrigatoriedade de cláusula dispondo sobre os procedimentos de intimação válida do fiduciante – nos casos de inadimplemento – da consolidação da propriedade, de venda do imóvel em leilão público para o pagamento do débito e acerto de contas com o fiduciante.

Evidentemente, ao contratar a garantia fiduciária, as partes se obrigam a respeitar os princípios basilares das relações contratuais (probidade e boa-fé), assim como a observar, na hipótese de inadimplemento do contrato principal, o procedimento extrajudicial detalhadamente descrito na lei e transcrito para o contrato acessório, que obriga o credor a oferecer o bem à venda em leilão público e o devedor a aceitar a transmissão plena, incondicionada e definitiva do imóvel ao credor caso negativo o certame, com quitação mútua onde a lei não inova e sem qualquer permissão ou motivação jurídica que justifique, em situação de normalidade, a execução do contrato de garantia fiduciária na via judicial.

A nosso ver, não há que se cogitar da ausência de vedação legal expressa e tampouco se aproveitará o art. 19 da Lei nº 9.514/1997 (2) que – para além de regular exclusivamente relações jurídicas decorrentes de cessão fiduciária em garantia, limitação que assoma claramente de simples leitura e interpretação literal ou teleológica de seu texto – é norma extravagante e não integrante do capítulo II da lei onde estão estabelecidos os procedimentos de constituição, resolução e execução extrajudicial da alienação fiduciária de bem imóvel.

4. Dos questionamentos enfrentados no citado artigo subsumem, pelo menos, três diferentes situações:

4.1 A primeira diz respeito à pretensão de processar a execução da dívida na via judicial, porém com a utilização dos procedimentos descritos no capítulo II da Lei nº 9.514/1997, mantida a garantia fiduciária.

A nosso juízo, a resposta deve ser negativa – exceto na hipótese de comprovado e intransponível impedimento jurídico-legal para a excussão na forma da lei – uma vez que os procedimentos de intimação, consolidação da propriedade e venda do imóvel em público leilão ali descritos compõem um microssistema criado e destinado exclusivamente à execução extrajudicial, dispondo a via judicial de rito próprio para a execução em geral.

4.2 A segunda abarca a intenção de execução da dívida (contrato principal) na via judicial concomitantemente com o procedimento extrajudicial de consolidação da propriedade fiduciária (contrato acessório) adotado pela Lei nº 9.514/97.

Também aqui a resposta deve ser negativa, dado não haver sentido na dúplice execução proposta para a satisfação de crédito único.

Ademais, ainda que, por absurdo, admitisse as execuções simultâneas – também se afigura equivocada a afirmação de que o credor chegará “ao mesmo resultado prático” se pedir na via judicial a consolidação da propriedade fiduciária ou “a penhora e a adjudicação do direito real de aquisição do devedor fiduciante na forma da lei processual, caso em que haverá automática consolidação da propriedade”.

Parece claro que, nos termos do caput e parágrafos do art. 27, a consolidação da propriedade em nome do credor precede a realização de oferta de venda do imóvel em público leilão pelo valor mínimo correspondente ao montante total da dívida. O sucesso na venda implicará na liquidação e consequente quitação da dívida. O revés na transmissão da propriedade plena e incondicionada do imóvel para o patrimônio do credor, com quitação mútua e sem qualquer inversão de recursos financeiros, salvo as despesas inerentes.

A adjudicação do direito real de aquisição do fiduciante requer, nos termos do art. 876 do CPC (3), oferta de preço não inferior ao da avaliação que, no caso, corresponderá à diferença entre o valor total da dívida e o valor de avaliação do imóvel. A parcela do preço que exceder a dívida será depositado em favor do executado ou quando inferior será amortizado para prosseguimento da execução pelo saldo remanescente (4). Haverá, nesta hipótese, inversão efetiva de recursos equivalentes à oferta ou equivalente redução incidente sobre o montante da execução.

No entanto, a “automática consolidação da propriedade”, resultante da confusão (5), não desobriga a realização de público leilão, que se fará com as regras comuns da Lei nº 9.514/1997 (essa é a proposta) e consequente oferta de venda pelo valor da dívida reduzido pela amortização parcial com alto risco de arrematação por terceiro em prejuízo do credor arrematante.

4.3 Na terceira situação é proposta a possibilidade de renúncia do credor à garantia fiduciária constituída para a execução judicial da dívida.

Somente aqui a resposta será positiva, nada obstando que o credor renuncie formalmente à garantia fiduciária constituída para utilizar-se da via judicial na execução do contrato principal (dívida), desde que previamente notificada ao devedor e ao fiduciante, se for o caso, além de requerido o cancelamento da propriedade fiduciária ao Oficial de Registro competente.

Dessa forma, poderá o credor requerer a penhora de bens do patrimônio do devedor – inclusive do imóvel anteriormente ofertado em garantia – que se apresentem suficientes para o pagamento da dívida.

5. Concluindo, resta mantido nosso entendimento de que a execução do contrato de alienação fiduciária de bem imóvel em garantia, pela inadimplência, deve ser realizada extrajudicialmente na forma dos arts. 26, 26-A e 27 da Lei nº 9.514/1997, admitida a via judicial quando comprovado o intransponível impedimento jurídico-legal para a consecução da execução na forma da lei.

As demais exceções citadas neste texto se referem, em verdade, a situações exteriores ao âmbito da alienação fiduciária, tal como a renúncia à garantia fiduciária ou a execução judicial de parcela ou percentual de dívida não abrangida pela garantia.

As presentes considerações foram elaboradas para expor o entendimento do autor, em coerência com parte da doutrina especializada e jurisprudência de nossos Tribunais, como mais um instrumento para o debate e fortalecimento do estudo do instituto da alienação fiduciária e da garantia fiduciária.


(*) Mauro Antônio Rocha Advogado especializado em Direito Imobiliário, Notarial e Registral, Crédito e garantias imobiliárias. Vice-Presidente da AD NOTARE – Academia Nacional de Direito Notarial e Registral.
________________________
1.https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/392244/cobranca-judicial-de-divida-por-alienacao-fiduciaria-de-imovel
2.Lei 9514/97. Art. 19. Ao credor fiduciário compete o direito de: I - conservar e recuperar a posse dos títulos representativos dos créditos cedidos, contra qualquer detentor, inclusive o próprio cedente; II - promover a intimação dos devedores que não paguem ao cedente, enquanto durar a cessão fiduciária; III - usar das ações, recursos e execuções, judiciais e extrajudiciais, para receber os créditos cedidos e exercer os demais direitos conferidos ao cedente no contrato de alienação do imóvel; IV - receber diretamente dos devedores os créditos cedidos fiduciariamente.
3.CPC. Art. 876. É lícito ao exequente, oferecendo preço não inferior ao da avaliação, requerer que lhe sejam adjudicados os bens penhorados.
4.CPC. Art.876 [...] § 4º Se o valor do crédito for: I - inferior ao dos bens, o requerente da adjudicação depositará de imediato a diferença, que ficará à disposição do executado; II - superior ao dos bens, a execução prosseguirá pelo saldo remanescente.
5.CC. Art. 381. Extingue-se a obrigação, desde que na mesma pessoa se confundam as qualidades de credor e devedor.

Publicado originalmente no Boletim Migalhas n°5677 edição de 31/08/2023