sábado, 12 de outubro de 2013

Breve história da propriedade imobiliária no Brasil


Mauro Antônio Rocha*

O descobrimento do Brasil


1. A história da propriedade imobiliária no Brasil tem início na tarde do dia 22 de abril de 1500 quando se avistou o cume do Monte Pascal e na manhã seguinte, com o desembarque e apossamento, em nome da coroa Portuguesa, das terras descobertas por Pedro Álvares Cabral.

2. No entanto, a história dos títulos imobiliários relativos ao território descoberto pode ser considerada anterior, uma vez que, já em 1493, a Bula Inter Coetera, editada pelo Papa Alexandre VI e datada de 4 de maio, determinava a divisão da propriedade do “novo mundo” entre Portugal (terra a leste) e Espanha (Reinos de Castela e Leão) as terras a oeste, a partir de um meridiano traçado em um ponto 100 léguas (por volta de 500 quilômetros) a oeste do arquipélago de Cabo Verde, mediante “doação, concessão e dotação perpétua … de todas e cada uma das terras e ilhas afastadas e desconhecidas situadas em direção ao Ocidente, descobertas ou por descobrir no futuro…”. Insatisfeitos com a divisão adotada, os portugueses negociaram com o Reino da Espanha o tratado de Tordesilhas, assinado em 7 de junho de 1494, obtendo o deslocamento do meridiano traçado para um ponto distante 370 léguas (aproximadamente dois mil quilômetros) a oeste do arquipélago, redefinindo os limites “dominiais” entre aqueles reinos. O território descoberto pela esquadra portuguesa e objeto de apossamento em nome da coroa Portuguesa a ser considerado, portanto, deve ser aquele determinado no tratado de Tordesilhas, ou seja, limitado pelo meridiano traçado a 370 léguas de Cabo Verde e que, nos mapas atuais adentra o território brasileiro pelo Estado do Maranhão e retorna ao Oceano Atlântico ao cruzar o Estado de Santa Catarina.
A descoberta da América, por Cristóvão Colombo, em 1492, a serviço da Espanha, agravou as contendas entre os Reis de Castela e Aragão, Fernando e Isabel e o de Portugal, D. João II, objeto de bulas do Papa Alexandre VI, em 1493, tentando dividir o mundo ocidental entre os dois reinos ibéricos. O tratado de Tordesilhas, de 07 de junho de 1494, tentou pôr fim às divergências com a ‘Capitulação da partição do mar oceano’, e o estabelecimento de uma linha reta de polo a polo, à distância de 370 léguas a oeste das ilhas de cabo Verde. As terras de leste, inclusive ilhas, descobertas ou por descobrir, pertenceriam a Portugal; as de oeste ficariam para a Espanha. O Novo Mundo fora dividido mesmo antes de ser totalmente conhecido e assim prosseguiram as navegações, culminando, as portuguesas, com a descoberta do Brasil a 22 de abril de 1500. (1)
A rigor, não houvesse o meridiano proposto pela bula papal sido afastado pelos reinos de Portugal e Espanha em 270 léguas direção oeste, a esquadra de Cabral teria aportado em terras espanholas, já que, também de acordo com mapas atuais, a linha original cruzava o território brasileiro a partir do Estado do Ceará, desembocando no Atlântico pelo Estado da Bahia, nas proximidades de Salvador, enquanto o local do desembarque dista mais ou menos 400 quilômetros para o sul da capital baiana em linha reta. Assim, antes mesmo do descobrimento, as terras brasileiras já estavam partilhadas e existiam pelo menos dois instrumentos conferindo e definindo a propriedade das terras do ‘novo mundo’.

3. O registro histórico do descobrimento está lavrado na carta do escrivão Pero Vaz de Caminha ao Rei de Portugal, datada de 1º de maio de 1.500, considerada a certidão de nascimento do Brasil e também, a primeira escritura pública relativa a bens imóveis e constituição de direitos reais lavrado no País.
Experiente, o escrivão nascido na cidade do Porto, Portugal, em 1450 era filho de Vasco Fernandes de Caminha, cavaleiro do Duque de Bragança, de quem herdou o cargo de mestre da balança da Casa da Moeda, com a função de tesoureiro e escrivão, casado com Dona Catarina e pai de uma filha, Isabel. Considerado culto e letrado, redigiu os capítulos da Câmara Municipal do Porto em 1497 e foi nomeado escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral em 1500. Logo após o descobrimento, tornou-se escrivão da feitoria de Calecute, Índia, onde morreu durante combate contra saqueadores mouros. (2)
Na carta ao Rei – escritura pública de aquisição territorial – o escrivão público especializou e identificou as terras apossadas da seguinte forma:
Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos até à outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa. Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é toda praia palma, muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa.
4. Em decorrência do descobrimento, a coroa Portuguesa tornou-se titular – por aquisição originária – de todo o território descoberto, nos limites da partilha antes configurada. De acordo com os critérios doutrinários, a propriedade – inclusive territorial – pode ser adquirida de forma originária ou derivada.
A propriedade será originária, quando o bem ‘não tem dono’, inexistindo, portanto, qualquer transmissão de domínio, configurada a ‘res nullius’ – coisa de ninguém – ou ‘res derelicta’ – coisa abandonada. Será derivada, quando a propriedade do bem é transferida de um titular para outro.
Os territórios são adquiridos de forma originária pela ocupação, quando as terras ocupadas não pertencem a nenhum outro estado; pela acessão, acréscimo territorial decorrente de fato natural ou humano; pela adjudicação, quando um território passa à soberania de outro Estado por decisão de uma organização política internacional. A aquisição será derivada – geralmente – pela transferência territorial de um Estado a outro, à titulo gratuito ou oneroso, da soberania exercida sobre determinado território, ou, pela conquista - ato bélico que resulta na posse e anexação total ou parcial do território pertencente a outro Estado.
Embora reine o consenso e quase unanimidade entre os historiadores sobre o caráter originário da aquisição da propriedade do território brasileiro pela coroa Portuguesa, cabe ressaltar que o desembarque dos tripulantes da esquadra de Cabral foi acompanhado por centenas de indígenas, representantes dos dois ou três milhões de nativos que ocupavam e habitavam – há muitos séculos – o território descoberto.
Dos baixios lamacentos do que é o atual Estado do Maranhão às longas extensões arenosas da costa sul do Brasil, praticamente todo o litoral brasileiro estava ocupado por tribos do grupo Tupi-Guarani quando, em 1500, Pedro Alvares Cabral desembarcou nas praias de areia faiscantes de Porto Seguro. Havia cerca de 500 anos, Tupinambá e Tupiniquim tinham assegurado a posse dessa longa e recortada costa, expulsando, para os rigores do agreste, as tribos ‘bárbaras’, que eles chamavam de ‘Tapuí’. (1)
Dessa forma, ainda que a primeira abordagem tenha se efetivado sem qualquer confronto bélico imediato e conhecido, os nativos indígenas, habitantes originais que detinham a posse do território encontrado foram mortos, expulsos ou escravizados e praticamente exterminados após a descoberta, vitimados pelas armas e doenças trazidas pelos europeus, pela submissão ao trabalho escravo, pelo avanço civilizatório e pelas guerras intertribais estimuladas pelos colonizadores, sendo lícito considerar que a aquisição do território brasileiro pela coroa Portuguesa foi derivada e decorrente de atos de conquista.

Os primeiros negócios imobiliários no Brasil

5. O primeiro negócio imobiliário realizado no território brasileiro foi, segundo Eduardo Bueno, o arrendamento das terras ao espanhol Fernão de Noronha pelo prazo de 10 anos, em 1502, para a exploração do pau-brasil, do litoral e defesa da terra, mediante o pagamento de um quinto dos lucros auferidos.
O dono da Colônia Durante dez anos o Brasil teve um dono. Ao fechar um contrato de exclusividade para a exploração do pau-brasil, em 1502, o cristão-novo Fernão de Noronha arrendou a colônia por três anos, à frente de um consórcio de judeus conversos. O acordo teria sido renovado em três ocasiões. As obrigações do cartel eram: explorar o pau-brasil, defender a terra contra a cobiça, já viva, de espanhóis e franceses, estabelecer uma feitoria, explorar 900 léguas (5,9 mil quilômetros) de litoral e pagar um quinto dos lucros à Coroa. Em 1503, Noronha armou sua primeira expedição, descobriu a ilha que hoje tem seu nome e iniciou a exploração do ‘pau de tinta’. Noronha ou Loronha, agente dos judeus alemães Fugger, era um armador nascido nas Astúrias, na Espanha, que enviava frotas à Índia e possuía uma rede de negócios, com sede em Londres. (2)
Alguns historiadores, como Hélio Viana e Bastos Meira registram também que já em 1504 o mesmo Fernão de Noronha teria sido agraciado com a doação da primeira Capitania Hereditária do Brasil, denominada Ilha de São João ou da Quaresma – hoje Fernando de Noronha.
Ainda que tenha efetivamente arrendado as terras descobertas para Fernão de Noronha, durante os primeiros 30 anos a coroa Portuguesa contentou-se em manter o domínio territorial e um punhado de desertores, náufragos e degredados portugueses, despreparados e insuficientes para enfrentar os navegadores franceses que cobiçavam conquistar parte do território brasileiro.

A partilha do território em capitanias e sesmarias

6. Com a missão de promover a colonização, além de defender e explorar a costa, Martim Afonso de Souza chegou à colônia, em 1530, com autorização expressa do Rei de Portugal para distribuir terras e conceder sesmarias que julgasse passíveis de aproveitamento, nomear tabeliães e demais oficiais de Justiça.

7. Em 1532, D. João III decidiu apressar a colonização e povoação do Brasil, mediante a aplicação do mesmo sistema de divisão territorial – em capitanias – que fora bem sucedido nos Açores e na Ilha da Madeira.
Entre 1534 e 1536 D. João III repartiu o território em 14 capitanias, cada uma com 50 léguas de largura aproximadamente, da costa até o limite estabelecido pelo tratado de Tordesilhas, que foram distribuídas a 12 donatários, mediante a outorga de Cartas de Doação – que representava o valor vitalício e hereditário da capitania e transmitia ao donatário a posse da terra, que podia transmiti-la também aos seus descendentes – e Cartas Forais – que tratavam dos tributos devidos pelos colonos, da divisão dos bens entre a Coroa e o donatário e permitia a doação de sesmarias aos cristãos dispostos a tornarem-se colonos.
No entanto, a falta de recursos e de investimentos para administrar e defender os extensos territórios das capitanias decretaram o fracasso desse sistema de parcelamento, que foi extinto em 1759, com o retorno das terras ao domínio pleno da coroa, passando a ser administradas pelo Governo Geral.

O redesenho dos limites e fronteiras

8. Um pouco antes do fim das capitanias, as coroas espanhola e portuguesa assinaram o Tratado de Madri, em 13 de janeiro de 1750, redefinindo os limites instituídos pelo tratado de Tordesilhas no final do século XV que, de fato, restavam desconsiderados e desrespeitados principalmente pelo avanço das expedições bandeirantes, pelas missões jesuíticas de catequização e pela exploração econômica das terras.
De acordo com o Tratado de Madri, os limites coloniais lusitanos e hispânicos seriam definidos por meio do princípio de uti possidetis, ou seja, concorreria a propriedade àquele que ocupou primeiramente a região.

9. A aplicação desse princípio ensejou a necessidade de permutar áreas com ocupação diversa da colonização predominante, resultando na revisão do tratado para que, entre outros, a posse da Amazônia fosse cedida para Portugal, a Colônia do Sacramento passasse ao domínio espanhol e a região de Sete Povos das Missões ao domínio português.
O Tratado de Santo Ildefonso, assinado em 1º de outubro de 1777, foi o primeiro de três tratados homônimos firmados por Portugal e Espanha, com o objetivo de por fim à disputa pela posse da Colônia de Sacramento entre as duas nações. Nele, ficou definido que a Colônia de Sacramento, a ilha de São Gabriel e a região de Sete Povos de Missões, ficariam para a Espanha e, em contrapartida, a margem esquerda do rio da Prata e a ilha de Santa Catarina, ocupada pelos espanhóis, ficariam para Portugal. Ademais, foram restabelecidas algumas linhas gerais do Tratado de Madrid, de forma que o território de São Pedro do Rio Grande foi cortado ao meio, no sentido longitudinal, próximo a cidade atual de Santa Maria, no Rio Grande do Sul.

10. Entre 1808 e 1821 D. João VI e sua corte – composta por 10.000 nobres e representantes do clero chegaram ao Brasil, fugidos de Napoleão Bonaparte; o Rio de Janeiro foi a capital do Reino de Portugal e o Brasil, em 1915, ascendeu à condição de integrante do Reino de Portugal e Algarve – em manobra do rei para adiar a volta a Lisboa.
Nesse período, tropas portuguesas tomaram a Guiana Francesa, em 1809 e a Banda Oriental do Uruguai, em 1817.
O território da Guiana seria devolvido à França em 1817 e o Uruguai seria incorporado ao território brasileiro em 1821 e assim mantido até 1828, com o nome de Província Cisplatina.
Quando, em 1808, a corte chegou ao Rio de Janeiro, a colônia tinha acabado de passar por uma explosão populacional. Em pouco mais de cem anos, o número de habitantes aumentara dez vezes. O motivo fora a descoberta de ouro e diamante no final do século XVII. A corrida para novas áreas de mineração, que incluíam Vila Rica (atual Ouro Preto) e Tijuco, em Minas Gerais, e Cuiabá, no Mato Grosso, produziu a primeira grande onda migratória da Europa para o interior brasileiro. Só de Portugal, entre meio milhão e 800.000 pessoas mudaram-se para o Brasil de 1700 a 1800. Ao mesmo tempo, o tráfico de escravos se acelerou. Quase 2 milhões de negros cativos foram importados para trabalhar nas minas e lavouras do Brasil durante o século XVIII. Foi uma das maiores movimentações forçadas de pessoas em toda a história da humanidade. Como resultado, a população da colônia, estimada em 300.000 habitantes na última década do século XVII, saltou para mais de 3 milhões por volta de 1800. (3)
O território brasileiro passa a constituir bem público

11. Com a proclamação da independência, em 7 de setembro de 1822, o Brasil começa a existir como Estado e Nação, adquirindo personalidade jurídica de direito público e, como consequência jurídica, o território brasileiro – até então propriedade particular da coroa Portuguesa – passa a pertencer ao Estado – Império do Brasil – e a constituir bem público.
Em 1822, o Brasil tinha cerca de 4,5 milhões de habitantes – menos de 3% de sua população atual – divididos em 800.000 índios, um milhão de brancos, 1,2 milhão de escravos (africanos ou seus descendentes) e 1,5 milhão de mulatos, pardos, caboclos e mestiços. Resultado de três séculos de miscigenação racial entre portugueses, negros e índios, esta última parcela da população compunha um grupo semi-livre, que se espalhava pelas zonas interiores e vivia submisso às leis e vontades dos coronéis locais. (4)
Evidentemente, todas essas pessoas ocupavam terras para moradia, produção agrícola, criação de animais, comércio etc., de forma que a posse e exploração dessas terras passam a agregar valor patrimonial e negocial, dando ensejo à necessidade de controle administrativo dos títulos possessórios, bem como aos ainda incipientes negócios envolvendo direitos sobre terras e empréstimos com garantia imobiliária.
A mancha do povoamento ainda se encontrava na faixa litorânea entre a cidade gaúcha do Rio Grande e a baia de Marajó, no estuário do Rio Amazonas, mas o mapa do Brasil já tinha mais ou menos os seus contornos atuais, com duas exceções: a província Cisplatina, que ganharia sua independência como o Uruguai em 1828, e o estado do Acre, que na época fazia parte da Bolívia e seria comprado pelo barão do Rio Branco e incorporado ao território brasileiro no começo do século 20. (1)

A desincorporação do Uruguai

12. Em 1828, doze anos após o término da guerra Cisplatina e seis anos após a Independência, o Brasil assinou tratado com a Argentina, desistindo da Província Cisplatina e reconhecendo o Uruguai como país independente.
A desincorporação do Uruguai daria fim a séculos de conflitos na região, iniciados pela imprecisão do traçado de Tordesilhas, agravado com a fundação de Colônia do Sacramento pelos portugueses em 1680 e que resultou na guerra Cisplatina, iniciada em 1811 e terminada em 1816.
O Uruguai foi reconhecido como um país independente, ocupando território estratégico para apartar e conter as intenções expansionistas de Brasil e Argentina.

A ocupação territorial destituída de títulos

13. Entre 1822 e 1850, foram ocupadas sem títulos e estavam distribuídas da seguinte forma, segundo Paulo Garcia (Terras devolutas. Belo Horizonte, Livr. Oscar Nikolai, 1956, p. 29):
(a) terras particulares – as que estavam incorporadas ao domínio de um particular, em virtude de título legítimo;

(b) terras públicas
(1) pertencentes à Nação, às Províncias ou aos Municípios;
(2) aplicadas a algum uso público (nacional, provincial ou municipal;
(3) sujeitas a posse de particulares em virtude de concessões incursas em comisso;
(4) sujeitas a posse de particulares, sem qualquer título, a não ser a ocupação;
(5) sob domínio útil de um particular;
(6) desocupadas, ou que não estavam em posse de ninguém.

A criação do registro hipotecário

14. Para atender aos interesses dos capitalistas e conferir regularidade aos empréstimos com garantia fundada em direitos imobiliários, foi criado o Registro Hipotecário pela Lei Orçamentária nº 317, de 21 de outubro de 1843, regulamentada pelo Decreto nº 482, de 1846.
“Art. 35. Fica creado um Registro geral de hypothecas, nos lugares e pelo modo que o Governo estabelecer nos seus Regulamentos.”

A Lei de Terras e as terras devolutas

15. A Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, foi o primeiro estatuto da terra pública, promulgado para definir as terras devolutas, punir as invasões de terras públicas e particulares e legitimando posses mansas e pacíficas.
“Dispoem sobre as terras devolutas no Imperio, e ácerca das que são possuidas por titulo de sesmaria sem preenchimento das condições legaes, bem como por simples titulo de posse mansa e pacifica: e determina que, medidas e demarcadas as primeiras, sejão ellas cedidas a titulo oneroso assim para emprezas particulares, como para o estabelecimento de Colonias de nacionaes, e de estrangeiros, autorisado o Governo a promover a colonisação estrangeira na fórma que se declara.” (*Mantida a escrita original)
Pela Lei nº 601, foram proibidas as aquisições de terras devolutas por outro titulo que não seja o de compra, exceto em uma zona de 10 léguas da fronteira, que poderão ser concedidas gratuitamente, o que equivale à extinção do poder de se conceder sesmarias.
Estabeleceu, também, pena de dois a seis meses de prisão e multa de 100$, além da satisfação do dano causado, aos que se apossarem de terras devolutas ou alheias, e nelas derrubarem matos ou lhes puserem fogo, além de despejo, com perda de benfeitorias.
Também garantiu o domínio ao possuidor de terras, com titulo legitimo da aquisição do seu domínio, quer tenham sido originariamente adquiridas por posses de seus antecessores, quer por concessões de sesmarias não medidas, ou não confirmadas, nem cultivadas, qualquer que for a sua extensão.

16. A chamada lei de terras é, portanto, uma lei restritiva de acesso à terra e, não por acaso, interpretada por parte dos historiadores como integrante de um pacote de medidas que precederiam a abolição da escravatura em 1888.
Ocorre que, em 1850, a campanha abolicionista engatinhava e a Inglaterra havia intensificado a pressão política e militar pelo fim da escravidão no Brasil.
Vinte anos antes, fora editada uma lei que tornava livres “todos os escravos que entrarem no território ou portos do Brasil, vindo de fora”. No entanto, tendo em vista o absoluto desrespeito à lei (“feita para inglês ver”) e após denunciar que “a história toda da desfaçatez humana não apresenta passagem que possa rivalizar” os britânicos assinaram um ato unilateral denominado ‘Bill Aberdeen’, que permitia aos ingleses a abordagem de qualquer navio brasileiro em qualquer oceano, em busca de escravos conduzidos ilegalmente.
Pressionado, o governo imperial ainda demorou cinco anos para vencer as resistências da sociedade e do parlamento brasileiro e promulgar a Lei n. 581 de 4 de setembro de 1850, a chamada Lei Eusébio de Queiroz, destinada a reprimir o tráfico, que considerou pirataria a importação de escravos e determinou a apreensão de toda embarcação encontrada em qualquer lugar com escravos a bordo.
Estancada a importação de escravos, a abolição da escravatura não tardaria. Sabia o gabinete imperial da necessidade de regularizar a posse fundiária para evitar que negros livres e escravos libertados tomassem posse das terras ocupadas individualmente ou por grupos nas áreas quilombolas, transformando a terra em mercadoria somente acessível mediante pagamento.
Para tanto, a lei estabeleceu critérios para a regularização de ocupações sesmarias e concessões anteriormente reconhecidas, ainda que não tenham preenchido as condições legais da outorga.
Todas as demais áreas territoriais seriam consideradas devolutas e, portanto, terras públicas de propriedade do Estado que poderiam ser obtidas por meio de compra ao governo.

O registro do vigário

17. Foi no regulamento da Lei nº 601/1850, aprovado pelo Decreto nº 1318, de 30 de janeiro de 1854, que surgiu, no art. 97, o chamado registro do vigário ou paroquial, cujo efeito era meramente declaratório, para diferenciar o domínio particular do domínio público, ainda hoje útil para a pesquisa da origem do domínio das terras particulares. Dessa forma, ficaram os vigários de cada uma das Freguesias do Império encarregados de receber as declarações para o registro das terras, e incumbidos de proceder a esse registro dentro de suas Freguesias, fazendo-o por si, ou por escreventes, dentro dos prazos legais estipulados.
Para tanto, os vigários deveriam manter livros de registro por eles abertos, numerados, rubricados e encerrados e nesses livros efetuar o lançamento por si, ou por seus escreventes, textualmente, das declarações, que lhes forem apresentadas, cobrando do declarante por esse registro o emolumento correspondente, anotando em cada um a folha do livro, em que foi registrado.

A criação do registro imobiliário

18. Mais tarde, com a promulgação da Lei nº 1.237, de 24 de setembro de 1864, regulamentada pelos Decretos nº 3.423 e 3.471 de 1865 e 169-A de 19 de janeiro de 1890, foi criado o Registro Imobiliário.
Segundo José Maria Junqueira de Azevedo, o Registro de Imóveis, com a função de transcrever aquisições imobiliárias e inscrever ônus reais, instituiu-se, no Brasil, pela Lei 1.237, de 24.09.1864, regulamentada pelo Dec. 3.453, de 26.04.1865. Anteriormente, com o fim restrito de inscrever hipotecas, criou-se, então, as normas do Registro Paroquial. Vê-se, assim, que o instituto do crédito precedeu à titulação da propriedade. a inscrição da hipoteca antecedeu a transcrição do imóvel, que só veio a ser instituída com a lei antes referida, que transformou o Registro de Hipotecas em “Registro Geral”. Foi aquele que deu origem ao Registro de Imóveis, haja vista seu escasso préstimo para o crédito. (5)
19. Proclamada a República em 1889 e promulgada a Constituição dos “Estados Unidos do Brasil” em 1891 as terras devolutas de propriedade da União foram distribuídas aos Estados, ficando reservado o domínio apenas das terras “situadas nos limites do Império com países estrangeiros”, a chamada Faixa de Fronteira, criada pela Lei nº 601/1850.
Desde a época da Independência o país tinha feito progressos significativos, embora ainda muito aquém de suas necessidades em alguns itens. As fronteiras estavam definidas e consolidadas, com exceção de um trecho na região do Rio da Prata e do Estado do Acre, que em 1903 seria comprado da Bolívia por 2,9 milhões de libras esterlinas em negociação conduzida pelo barão do Rio Branco. Ao manter intacto um território pouco inferior à soma de todos os países europeus, os brasileiros haviam alcançado uma façanha que nenhum dos seus vizinhos conseguira realizar. O Brasil se mantivera unido, enquanto a antiga América espanhola se fragmentara nas guerras civis do começo do século.(6)
Da compra e incorporação do Acre

20. No final do século XIX, houve grande movimentação de imigrantes nordestinos em direção a terras bolivianas e peruanas para explorar seringais ou trabalhar na extração do látex. Na Bolívia, tomaram a cidade de Puerto Alonso e a rebatizaram como Porto Acre, passando a exigir sua incorporação ao Brasil.
Foram muitos os conflitos armados entre seringueiros brasileiros e tropas Bolivianas e resultaram, num primeiro momento, na criação de um “Estado Independente do Acre”.
Esses conflitos só foram contidos pela assinatura do tratado de Petrópolis, em 1903, pelo qual o Brasil adquiriu à Bolívia, pelo valor equivalente a aproximadamente três milhões de libras esterlinas todo o território do Acre inferior e superior, com extensão de quase 200.000 quilômetros quadrados.

21. Após a compra do território onde existe o Estado do Acre, o Brasil definiu e consolidou suas fronteiras tomando a forma que ostenta nos mapas atuais.
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(*)Mauro Antônio Rocha, Advogado graduado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (1988), com diversos cursos de extensão e aperfeiçoamento em Direito Imobiliário, Urbanístico, Notarial, Societário, Tributário, do Consumidor, entre outros. Pós graduação lato sensu (MBA) em Direito Imobiliário pela Faculdade INESP (Instituto Nacional de Ensino Superior e Pesquisa), São Paulo (SP), em março de 2012. Pós graduação lato sensu em Direito Notarial e Registral pela Faculdade Arthur Thomas, Londrina (PR), em agosto de 2012. Possui Certificação CA 600 ABECIP em Crédito Imobiliário. Palestrante, professor e instrutor (Conselho Regional de Corretores de Imóveis de São Paulo - CRECI/SP, Faculdade Legale, Instituto Brasileiro de Estudos Financeiros - IBRAFI, Confederação Nacional das Instituições Financeiras - CNF, Universidade Corporativa CAIXA, UBS - Escola de Negócios, PROECCI.)
Editor de www.cartilhadofgts.com.br

(1) O direito colonial no Brasil, Bastos Meira, Silvio A., http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/2/730/24.pdf
(2) Brasil: uma história: cinco séculos de um país em construção, Eduardo Bueno, São Paulo: Leya, 2010.
(3) Gomes, Laurentino. 1808. São Paulo: Ed.Planeta do Brasil, 2007.
(4) Gomes, Laurentino. 1822. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010.
(5) Erpen, D.A, e Lamana Paiva, J.P. Panorama histórico do registro de imóveis no Brasil. http://registrodeimoveis1zona.com.br/?p=270
(6) Gomes, Laurentino. 1889, 1ª ed. – São Paulo: Globo, 2013.