sábado, 14 de outubro de 2017

Alienação Fiduciária de Bem Imóvel. Alteração incluída na Lei nº 13.476/2017 contempla o vencimento antecipado da dívida e execução do saldo remanescente nas operações de crédito rotativo.

Mauro Antônio Rocha *

A Lei nº 13.476, de 28 de agosto de 2017, resultante da conversão da Medida Provisória nº 775/2017, adotada pelo Poder Executivo para alterar a Lei nº 12.810, de 15 de maio de 2013, dispor sobre a constituição de gravames e ônus sobre ativos financeiros e valores mobiliários objeto de registro ou de depósito centralizado recebeu diversos acréscimos ao ser apreciada e aprovada na Câmara Federal, em sessão de 16 de agosto passado, dentre os quais a inserção de ‘inovações’ no instituto da alienação fiduciária, aplicáveis, pelo que se depreende numa primeira leitura, exclusivamente à contratação, no âmbito do sistema financeiro nacional (sic), de abertura de limite de crédito e às operações derivadas do limite de crédito.

Encaminhada ao Senado Federal sob a forma do Projeto de Lei de Conversão nº 20, de 2017, a referida Medida Provisória foi aprovada e, naquilo que interessa ao presente estudo, dispõe que a contratação de abertura de crédito rotativo – quando garantida por alienação fiduciária de bem imóvel – obedecerá ao quanto disposto, nos seus artigos 3º a 9º, a seguir transcritos:

Art. 3º A contratação, no âmbito do sistema financeiro nacional, de abertura de limite de crédito, as operações financeiras derivadas do limite de crédito e a abrangência de suas garantias obedecerão ao disposto nesta Lei.

Art. 4º A abertura de limite de crédito, no âmbito desta Lei, será celebrada por instrumento público ou particular, com pessoa física ou pessoa jurídica, e tratará das condições para celebração das operações financeiras derivadas, pelas quais o credor fará os desembolsos do crédito ao tomador, observados o valor máximo previsto no contrato principal e seu prazo de vigência.

Parágrafo único. O instrumento de abertura de limite de crédito referido neste artigo deverá conter os seguintes requisitos essenciais:
I – o valor total do limite de crédito aberto;
II – o prazo de vigência;
III – a forma de celebração das operações financeiras derivadas;
IV – as taxas mínima e máxima de juros que incidirão nas operações financeiras derivadas, cobradas de forma capitalizada ou não, e os demais encargos passíveis de cobrança por ocasião da realização das referidas operações financeiras derivadas;
V – a descrição das garantias, reais e pessoais, com a previsão expressa de que as garantias constituídas abrangerão todas as operações financeiras derivadas nos termos da abertura de limite de crédito, inclusive as dívidas futuras;
VI – a previsão de que o inadimplemento de qualquer uma das operações faculta ao credor, independentemente de aviso ou interpelação judicial, considerar vencida antecipadamente as demais operações derivadas, tornando-se exigível a totalidade da dívida para todos os efeitos legais.

Art. 5º As operações financeiras derivadas serão celebradas mediante a manifestação de vontade do tomador do crédito, pelas formas admitidas na legislação em vigor.

Art. 6º As garantias constituídas no instrumento de abertura do limite de crédito servirão para assegurar todas as operações financeiras derivadas, independentemente de qualquer novo registro e/ou averbação adicional.

Art. 7º O registro das garantias constituídas no instrumento de abertura de limite de crédito deverá ser efetuado na forma prevista na legislação que trata de cada modalidade da garantia, real ou pessoal, e serão inaplicáveis os requisitos legais indicados nos seguintes dispositivos legais:

I - incisos I, II e III do caput do art. 18 e incisos I, II e III do caput do art. 24 da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997;
II - incisos I, II e III do art. 1.362 e incisos I, II e III do art. 1.424 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002; e
III - caput do art. 66-B da Lei nº 4.728, de 14 de julho de 1965.

Art. 8º A exoneração das garantias constituídas em instrumento de abertura de limite de crédito ocorrerá mediante sua rescisão ou após seu vencimento e desde que as operações financeiras derivadas tenham sido devidamente quitadas.

Art. 9º Se, após a excussão das garantias constituídas no instrumento de abertura de limite de crédito, o produto resultante não bastar para quitação da dívida decorrente das operações financeiras derivadas, acrescida das despesas de cobrança, judicial e extrajudicial, o tomador e os prestadores de garantia pessoal continuarão obrigados pelo saldo devedor remanescente, não se aplicando, quando se tratar de alienação fiduciária de imóvel, o disposto nos §§ 5º e 6º do art. 27 da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997.

Especial atenção merecem os incisos V e VI do parágrafo único do art. 4º que tratam dos requisitos essenciais do instrumento de abertura de crédito. O inciso V por exigir, em linguagem obscura, previsão expressa no instrumento contratual de que as garantias constituídas abrangerão todas as operações financeiras derivadas nos termos da abertura do limite de crédito, inclusive as dívidas futuras. A expressão ‘derivada’ tem significados diversos em direito, economia e finanças, podendo ser compreendida aqui – na melhor hipótese – como as operações financeiras provenientes ou decorrentes da abertura de crédito.

O inciso VI, por sua vez, institui procedimento específico de cobrança e intimação do devedor para purgação da mora diverso daquele previsto no art. 26 e parágrafo único da Lei nº 9.514/1997 – que determina a intimação do devedor para satisfazer a prestação vencida e as que se vencerem até a data do pagamento, mais encargos e despesas e que veda a inclusão de valores que correspondam ao vencimento antecipado da dívida – para facultar ao credor que independentemente de aviso ou interpelação judicial, considere vencida (sic) antecipadamente as demais operações derivadas, tornando-se exigível e totalidade da dívida para todos os efeitos legais, eliminando a oportunidade legal de purgação da mora pelo devedor inadimplente.

A principal alteração, no entanto, está inserida no texto do art. 9º do projeto de lei ao estipular que, se, após a excussão das garantias constituídas no instrumento de abertura de limite de crédito, o produto resultante não bastar para quitação da dívida decorrente das operações financeiras derivadas, acrescida das despesas de cobrança, judicial e extrajudicial, o tomador e os prestadores de garantia pessoal continuarão obrigados pelo saldo devedor remanescente, não se aplicando, quando se tratar de alienação fiduciária de imóvel, o disposto nos §§ 5º e 6º do art. 27 da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997.

A intenção aparente do legislador – e das entidades interessadas na transfiguração da norma – é a de assegurar ao credor fiduciário, para além de excussão dos bens ofertados em garantia da operação, o prosseguimento na execução e a expectativa de alcançar outros bens do devedor ou do fiduciante para o fim de proporcionar o que aquelas entidades entendem como retorno integral do crédito concedido.

Em síntese, a proposição legislativa objetiva que – nas operações de abertura de limite de crédito rotativo – o eventual inadimplemento da obrigação autorize a instituição credora a (1) promover o vencimento antecipado, (2) obrigar o devedor ao pagamento imediato do total da dívida e (3) responsabilizar o devedor ou eventual prestador de garantia pessoal pelo pagamento do saldo remanescente na hipótese de venda do bem por valor inferior ao total da dívida, contrariando fundamentos básicos da alienação fiduciária de bem imóvel em garantia.

De início, essa aspiração do legislador deturpa o caráter satisfativo do instituto da alienação fiduciária de bem imóvel – garantia fiduciária pronta e suficiente para proporcionar o retorno do crédito concedido, nos casos de inadimplência contratual – que propicia ao credor fiduciário plena autonomia para examinar previamente o bem oferecido em garantia, proceder à sua avaliação econômica e estabelecer, unilateralmente, o limite de crédito a ser conferido ao tomador, mitigando a possibilidade de prejuízo na operação, limitando-o a situações decorrentes de descaso, comodismo ou inobservância dos critérios analíticos da contratação de crédito.

Ademais, ao finalizar o dispositivo legal o legislador cuidou da inaplicabilidade “do disposto nos §§ 5º e 6º do art. 27 da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997”, de forma a permitir a cobrança de saldo devedor remanescente após a alienação da garantia, fazendo emergir consequências que, seguramente, não tencionou provocar.

A saber, de acordo com os citados §§ 5º e 6º do art. 27 da Lei nº 9.514/1997, após consolidação da propriedade, o imóvel objeto da garantia será levado a leilão para venda por valor não inferior ao valor da dívida e seus acréscimos e, se não houver lance vencedor no segundo certame, o credor estará exonerado da obrigação compulsória de transmissão da propriedade, podendo integrar o bem a seu patrimônio, assim como, de prestar contas da alienação e de entregar ao credor o montante que eventualmente sobejar à dívida, como meio de obter a mútua quitação.

Por conta disso, a partir da consolidação da propriedade há uma inversão de posições entre as partes, passando o credor fiduciário à posição de devedor das obrigações de levar o bem a leilão e prestar contas do valor apurado na venda, enquanto o devedor fiduciante torna-se credor das mesmas obrigações, cuja resolução ocorre exatamente com a aplicação dos dispositivos contidos nos referidos §§ 5º e 6º do art. 27 da Lei nº 9.514/1997.

Daí decorre uma dificuldade intransponível para a aplicação do dispositivo proposto. É que, pelo procedimento legal vigente e não alterado pela lei – especificamente o § 2º do art. 27 da Lei nº 9.514/1997 – o bem imóvel deve ser alienado em leilão público por – no mínimo – o valor da dívida, não dando margem à aferição de saldo devedor remanescente que enseje prosseguimento da cobrança.

Caso não se alcance o valor mínimo de venda o credor adquire a propriedade plena do imóvel, incorporando-o definitivamente ao seu patrimônio, não havendo critérios técnicos definidos para imputar valor ao bem incorporado e, consequentemente, nem para a apuração do saldo devedor remanescente, transformando o dispositivo legal proposto em letra morta e provável fonte perene de demandas judiciais.

Ora, se a aplicação do comando legal (§ 5º do art. 27) às operações tratadas pelo projeto de lei é negada, não ocorrerá a exoneração da obrigação do credor de prestar contas e de entregar ao devedor eventual excesso que resultar da venda, inclusive em relação à eventual e futura disposição do bem, prejudicando a transparência da operação e a celeridade esperada do procedimento extrajudicial.

De todo o exposto, considerando os prejuízos à clareza do instituto da alienação fiduciária de bens imóveis resultantes das alterações trazidas pelas Leis nº 13.465/2017 (Medida Provisória nº 759/2016) e 13.476/2017 (Medida Provisória nº 775/2017), resta evidente que a atividade de criação de normas de direito deve ser exercida restritivamente pelo Poder Legislativo, com a obediência dos ritos e procedimentos constitucionais, cumpridos os trâmites de exame e debates nas comissões temáticas e apreciação final pelos membros das casas congressuais, não sendo admissível que sejam delegadas a entidades representativas de interesses, a burocratas da administração ou elaboradas de afogadilho para aproveitamento e inclusão em pautas de oportunidade.

(*) Mauro Antônio Rocha é Advogado; professor, palestrante, especialista em Direito Imobiliário e Direito Registral e Notarial e membro da Comissão de Direito Notarial e de Registros Públicos da OABSP. Coordenador Jurídico da Caixa Econômica Federal – CEF.