sexta-feira, 12 de maio de 2023

Alienação Fiduciária de bem imóvel versus CDC. Muito além do Tema 1095 do STJ.

Mauro Antônio Rocha [*]

De cada negócio jurídico firmado na venda e compra de bem imóvel com financiamento imobiliário e alienação fiduciária emergirão obrigações e direitos - inclusive de natureza consumerista - que remanescerão vigentes e exigíveis pelos prazos legais definidos, independentemente das demais avenças insertas no instrumento contratual.


1. De volta ao Tema 1.095 dos Precedentes Qualificados do Superior Tribunal de Justiça, com acórdão exarado nos autos do recurso especial 1.891.498/SP1, que foi publicado no final do ano passado para ratificar entendimento daquele tribunal sobre a "prevalência do Código de Defesa do Consumidor na hipótese da resolução do contrato de compra e venda de bem imóvel com cláusula (sic) de alienação fiduciária em garantia", com a seguinte ementa:

Em contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária devidamente registrado em cartório, a resolução do pacto, na hipótese de inadimplemento do devedor, devidamente constituído em mora, deverá observar a forma prevista na lei 9.514/97, por se tratar de legislação específica, afastando-se, por conseguinte, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor.2

Conforme anotado em artigo anterior que publicamos no boletim Migalhas3, o incontido entusiasmo demonstrado na recepção do acórdão pelos mercados da construção civil e do crédito imobiliário parece haver encruado após a divulgação das primeiras impressões e interpretações dos especialistas sobre os seus estreitos limites, que facultam a aplicação do repetitivo somente às ações que apresentem cumulativamente as seguintes condições: (i) contrato de compra e venda de imóvel garantido por alienação fiduciária, portanto, com parcelamento do preço, (ii) compra, venda e alienação fiduciária registradas na matrícula imobiliária correspondente, e (iii) inadimplemento caracterizado com a constituição do devedor em mora.

Em que pese a limitação exposta, o precedente é valioso e prontamente aplicável a centenas de processos que, com as condições requeridas, tramitam nos tribunais entulhando os escaninhos e congestionando os fluxos do Poder Judiciário.

2. A publicação do acórdão com a divulgação da tese repetitiva nele firmada serviu, no entanto, para revigorar e reintroduzir a debate um entendimento doutrinário singular que busca incompatibilizar os preceitos do código de proteção do consumidor com os regramentos adotados pela legislação de regência da alienação fiduciária imobiliária, especialmente quanto a eventual resolução de contrato quitado de compra e venda de imóvel com o parcelamento do preço ou financiamento imobiliário, como se a constituição da garantia fiduciária do recebimento do crédito pudesse impor uma blindagem impediente ao exercício pelo devedor do direito constitucional de propor, sob risco e utilizando-se das razões e dos argumentos jurídicos disponíveis, a ação de 'desfazimento' contratual que entender cabível.

Para os mentores desse entendimento o pagamento integral do preço ao proprietário vendedor e a correspondente transferência definitiva da propriedade ao adquirente exaurem o negócio jurídico da venda e compra, subsistindo entre as partes somente as obrigações relativas ao contrato de mútuo e à garantia fiduciária, e desse sofisma jurídico extraem argumentos para a não sujeição das "operações de venda e compra de bem imóvel com garantia de alienação fiduciária" aos ditames da lei 8.078/90.

A intenção declarada é evitar que ao possível "desfazimento" do contrato de venda e compra acatado pelo Poder Judiciário seja determinada a aplicação do disposto no art. 53 do Código de Defesa do Consumidor para considerar nulas as cláusulas de perdimento total das prestações pagas em benefício do credor e propiciar reembolso ao devedor e fiduciante de parte considerável do quantum dispendido, em detrimento aos procedimentos extrajudiciais de excussão previstos na legislação específica que, ao contrário, privilegiam a alienação do bem para a satisfação do crédito, ainda que isso implique na aniquilação dos interesses do fiduciante.

3. Por discordar da percepção exposta peço vênia para escrutinar os meios utilizados para a contratação aqui aludida e trazer algumas considerações relevantes para uma melhor compreensão do assunto e prosseguimento dos debates.

De início, com o intuito de facilitar a compreensão sobre essas transações - geralmente realizadas de forma concomitante e em instrumento contratual único -  podemos destacar e apontar ao menos três camadas contratuais: (i) cláusulas regulatórias da venda e compra do imóvel, negociadas e firmadas apenas pelos vendedores e compradores; (ii) cláusulas do mútuo em dinheiro, que cuidam da captação de recursos e sua destinação ao pagamento do preço, firmadas pela entidade concessora do crédito e pelo comprador, na condição de mutuário ou (ii.1) cláusulas de confissão e reconhecimento de que parte do preço será objeto de pagamento futuro, assinadas pelo comprador, como confitente e pelo proprietário-vendedor, na condição de credor; e (c) cláusulas da alienação fiduciária imobiliária, para garantia do recebimento do mútuo contratado ou da dívida confessada, firmadas pelo comprador, na condição de fiduciante e pela entidade financeira (no caso de financiamento imobiliário) ou pelo incorporador, construtor ou vendedor pessoa física (no caso de parcelamento), como credores fiduciantes.

De cada um desses negócios jurídicos emergirão obrigações e direitos - inclusive de natureza consumerista - que remanescerão vigentes e exigíveis pelos prazos legais definidos, independentemente das demais avenças insertas no instrumento contratual.

3.1 A destacada compra e venda de imóvel poderá ser contratada, para o que importa ao presente estudo, em dois ambientes, das relações de consumo e das relações civis e particulares, com distintas consequências jurídicas.

No ambiente das relações de consumo estarão os contratos firmados por pessoas jurídicas ou físicas, que explorem atividades de incorporação imobiliária, construção civil ou comercialização de bens imóveis, sujeitas às obrigações previstas na lei 8.078/90 - Código de Proteção ao Consumidor, na condição de fornecedores, conforme art. 3º da lei citada, especialmente quanto às responsabilidades pelo fato e pelos vícios de qualidade ou quantidade do produto (imóvel), nos termos dos arts. 12 e 18 do código, inclusive pela evicção de direito e pela disparidade do produto entregue com as informações constantes de indicações ou mensagem publicitária, arcando, se for o caso, com a reparação do vício, restituição imediata e atualizada da quantia paga, possível substituição do produto ou com o abatimento proporcional do preço.

Nas transações contratadas por pessoas jurídicas ou físicas no âmbito das relações civis e particulares os proprietários-vendedores estarão sujeitos ao disposto nos arts. 441 e seguintes do Código Civil e serão responsáveis notadamente pelos vícios ocultos e redibitórios, pelos defeitos, pela evicção de direito, passíveis de restituição dos valores pagos atualizados, abatimento do preço ou desfazimento do negócio jurídico com indenização por perdas e danos.  

A submissão desses contratos às leis consumerista e civil, assim como a responsabilidade dos vendedores não se exaure pelo pagamento do preço em parcelas futuras diretamente ao proprietário-vendedor ou mediante financiamento de entidade de crédito imobiliário, não podendo - evidentemente - ser afastada pela mera constituição de garantia para o recebimento do crédito.

Nada impedirá, dessa forma, ao comprador e fiduciante com base nas normas acima referidas, a propositura das ações necessárias ao 'desfazimento' do negócio jurídico viciado e à restituição das quantias pagas, sendo irrelevante, para isso, a contratação do mútuo, confissão de dívida ou garantia fiduciária.

Do mesmo modo, por sua natureza e características jurídicas o contrato de venda e compra, em qualquer dos casos, pode ser objeto de ação de 'rescisão' contratual por interesse de qualquer das partes, nos termos do art. 472 e 473 do Código Civil, não configurando a pretensão quebra antecipada do contrato, sendo incabível - ao menos enquanto adimplente - a aplicação dos arts. 26 e 27 da lei 9.514/97,

3.2 O contrato de financiamento bancário (mútuo), por sua vez, firmado em qualquer dos ambientes estará sujeito às mesmas obrigações, direitos e reponsabilidades dispostas no CDC e acima referidas, por força do disposto no § 2º do art. 3º e das disposições específicas da Resolução CMN 4.949/214, passível de rescisão, também, quer pela responsabilidade pelo fato e vícios do produto (crédito concedido) ou pelo interesse/desinteresse das partes, do modo acima exposto.

Ao contrato de confissão de dívida, por não configurar relação de consumo, não se aplicam as normas do Código de Defesa do Consumidor.

3.3 O contrato de alienação fiduciária imobiliária, afastadas as nulidades e o exercício de direito de arrependimento, somente se extinguirá por força, e em consequência, da extinção do contrato principal garantido - seja ele contrato de venda e compra, mútuo em dinheiro ou confissão de dívida, pela (a) dação em pagamento; (b) transação; (c) execução contratual (adimplemento); (d) inexecução contratual (inadimplemento) e (e) resilição contratual.

Na hipótese da extinção contratual pelo pagamento total da dívida (adimplemento), pela dação em pagamento, pela transação ou pela resilição consensual com a consolidação da propriedade em nome do credor, o cancelamento da alienação fiduciária decorrerá da extinção da dívida e do deduzido 'esvaziamento' da garantia conferida.

Assim, reiterando, não se resolve o contrato de alienação fiduciária de outra forma senão pelo pagamento ou liquidação da dívida ou pela consolidação da propriedade em nome do fiduciário, não estando sujeito a outras responsabilidades além daquelas dispostas na lei 9.514/97, nem à resolução por interesse das partes e sua sujeição ao CDC decorre apenas e tão-somente de resultar de atividade bancária e financeira, não se caracterizando a contratação, salvo melhor juízo, como fornecimento ou consumo, nem a garantia fiduciária como produto ou serviço.

4. Cabe esclarecer, neste ponto, que, seja qual for o motivo da eventual resolução, tanto o contrato de mútuo quanto o contrato de confissão de dívida, firmados nas operações aqui tratadas, não serão cancelados ou extintos, salvo pelo pagamento integral do crédito ou liquidação da dívida, não sendo lícito litigar sobre devolução de parcelas pagas pelo mutuário ou confitente, exceto quanto às alegações de fraude na contratação ou comprovado excesso de pagamento.

De igual forma, parece claro que a pretensão do comprador-fiduciante ao distrato ou desfazimento do negócio jurídico fundado no inadimplemento de sua obrigação contratual de pagar, quer no contrato de mútuo em dinheiro quer no contrato de confissão de dívida, não impedirá a excussão promovida pelo credor fiduciário na conformidade do procedimento extrajudicial próprio da alienação fiduciária contratada, não havendo, a nosso ver,  falar-se em conflito das leis, uma vez que o art. 53 do CDC é perfeitamente compatível com o procedimento de realização de venda do imóvel em público leilão, conforme exigido pela lei 9.514/97, ao estabelecer que, do montante apurado na arrematação, o exato valor da dívida seja entregue ao credor fiduciário e o valor excedente total ao fiduciante, ainda que, na prática, os resultados sejam diferentes.      

5. De todo o exposto, forçoso concluir que a aplicação da tese do Tema 1.095 do STJ (precedentes qualificados) se dará - exclusivamente - na operação de venda e compra firmada no âmbito da relação de consumo para pagamento em parcelas, com garantia fiduciária, que apresentar os demais requisitos exigidos na ementa - contratos registrados, inadimplemento e constituição em mora - afastando-a da aplicação do Código de Defesa do Consumidor no caso de resolução.     

Não se empregará o Tema 1.095 do STJ, contudo, na operação que envolva contrato de compra e venda de imóvel firmado no âmbito de relação de consumo, com mútuo em dinheiro concedido por entidade bancária ou financeira e alienação fiduciária em garantia, por não se enquadrar no primeiro requisito previsto na ementa (a alienação fiduciária garante o pagamento do contrato de mútuo e não da compra e venda).

Não se aplicará, igualmente, aos contratos de compra e venda de imóvel firmado no âmbito de relação civil entre particulares, com garantia fiduciária em favor de instituição financeira ou do próprio vendedor uma vez que o repetitivo ficou limitado aos contratos firmados no âmbito do CDC, excluindo as transações contratadas entre particulares no âmbito do Código Civil.

6. Por último, cumpre verificar a maneira como se perfaz a volta ao 'status quo ante' principal consequência de eventual e possível 'resolução' ou 'desfazimento' do contrato de venda e compra do bem imóvel.

6.1 Nas transações imobiliárias realizadas no âmbito das relações de consumo ou no das relações civis, com financiamento concedido por instituição financeira, as consequências da 'resolução' do contrato de venda e compra por qualquer motivo - exceto inadimplemento contratual - serão diversas, devendo a decisão dispor: (a) sobre o retorno da propriedade do imóvel ao vendedor; (b) sobre a devolução parcial ou total do valor pago pelo devedor fiduciante ao vendedor; (c) sobre a liquidação do saldo devedor do financiamento imobiliário;  (d) sobre o cancelamento do contrato de alienação fiduciária pelo 'esvaziamento' da garantia.

Na hipótese de não ter sido citado para o processo, a decisão não produzirá efeitos em relação ao credor fiduciário, nem será registrada na matrícula imobiliária por conta do princípio da continuidade e, nesse caso, (a) o imóvel continuará na propriedade fiduciária da instituição financeira e o devedor fiduciante continuará obrigado ao pagamento da dívida ou das parcelas, podendo o credor, em caso de inadimplemento, iniciar o procedimento extrajudicial de execução; (b) o vendedor devolverá o valor recebido ao adquirente (por força da condenação) e poderá, com a anuência do fiduciário, sub rogar-se na dívida e na posição de devedor fiduciante, convalescendo o contrato de alienação fiduciária; e (c) se o vendedor não se sub rogar ou liquidar a dívida o credor fiduciário, fundado na fragilização da garantia fiduciária, poderá proceder ao vencimento antecipado da dívida para a execução extrajudicial da alienação fiduciária, consolidação da propriedade e venda do imóvel em leilão público.

6.2 Nas transações realizadas no ambiente das relações civis e particulares com dívida confessada e garantia fiduciária o retorno ao status quo ante pelo desfazimento consensual se completará com a devolução ao comprador do valor recebido (parcial, total ou com acréscimos indenizatórios, conforme decisão judicial); o retorno da propriedade plena do imóvel ao vendedor, e a extinção do contrato de alienação fiduciária pelo esvaziamento da garantia.

7. Finalmente, não nos parece juridicamente correta a pretensão de se configurar quebra antecipada de contrato (anticipatory breach)5, para propiciar ao credor a execução extrajudicial da alienação fiduciária com os procedimentos previstos nos art. 26 e 27 da lei 9.514/97, o mero exercício pelo comprador adimplente do direito de ação, expresso no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, de propor a resolução contratual que entender adequada,

Resta claro, portanto, que a lei 8.078/90 incide em contextos diversos sobre os contratos que compõem a operação de aquisição de bem imóvel para pagamento futuro e que a pretensão do adquirente à 'resolução' do contrato principal é justa e legítima e pode decorrer tanto das responsabilidades impostas ao vendedor pelo Código de Defesa do Consumidor ou pelo Código Civil vigente, ou tão-somente do interesse/desinteresse das partes, sendo inadmissível vedar o acesso ao judiciário ou pretender configurar seu legítimo exercício como quebra do pacto para o fim de validar a excussão extrajudicial da dívida.

São essas as considerações que entrego com a pretensão de propiciar o prosseguimento do debate e o aprimoramento da alienação fiduciária de bem imóvel e da garantia fiduciária.

NOTAS
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1 Resp 1.891.498/SP, Rel. Min. Marco Buzzi, 2ª Seção do STJ. jul. 26/10/22, pub. 19/12/22.
2 Precedente qualificado. Tema 1.095. Superior Tribunal de Justiça.
3 https://www.migalhas.com.br/depeso/385234/alienacao-fiduciaria-de-bem-imovel-em-garantia
4 https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=Resolu%C3%A7%C3%A3o%20CMN&numero=4949 acesso em 9/5/23.
5 "anticipatory breach" é a expressão correta em inglês.


Artigo publicado no BOLETIM MIGALHAS

segunda-feira, 24 de abril de 2023

Alienação Fiduciária de bem imóvel em garantia. As limitações do Tema 1095 do STJ e os arroubos inconvenientes do ‘mercado’.


Mauro Antônio Rocha [*]


Nos termos em que foi redigida a ementa, o repetitivo 1095 se aplica apenas às ações que tratem cumulativamente de: (i) compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária, (ii) devidamente registrado na matrícula imobiliária correspondente, e (iii) devedor inadimplente e constituído em mora.



1. A Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça publicou no final do ano passado acórdão exarado nos autos do recurso especial 1.891.498/SP[1] , para ratificar entendimento jurisprudencial sobre a “convergência entre o disposto no art. 53 do CDC e os ditames da Lei nº 9.514/1997” e firmar a tese do precedente qualificado repetitivo nº 1095, com a seguinte ementa:

Em contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária devidamente registrado em cartório, a resolução do pacto, na hipótese de inadimplemento do devedor, devidamente constituído em mora, deverá observar a forma prevista na lei 9.514/97, por se tratar de legislação específica, afastando-se, por conseguinte, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor.[2]

A tese recebida com incontido entusiasmo pelo empresariado da construção civil, instituições de crédito imobiliário e pelos pensadores do IBRADIM sustenta que, para além de ser posterior e específica, a Lei nº 9.514/97, em seu art. 27, § 4º, “expressamente prevê, repita-se, a transferência ao devedor dos valores que, advindos do leilão do bem imóvel, vierem a exceder (sobejar) o montante da dívida, não havendo se falar, portanto, em perda de todas as prestações adimplidas em favor do credor fiduciário”.[3]

2. A redação deficiente da ementa exige, no entanto, algum esforço de interpretação para perfeita compreensão de seu alcance.

Na estrutura jurídica adotada para a alienação fiduciária de bem imóvel no Brasil há uma nítida distinção entre a operação de venda e compra de imóvel, com alienação fiduciária do bem para garantia do pagamento parcelado e periódico do preço ao vendedor/credor fiduciário e a operação de venda e compra com pagamento do preço à vista realizado com recursos obtidos mediante contratação de mútuo em dinheiro no mercado de crédito imobiliário com a garantia fiduciária, neste caso, do montante do empréstimo concedido em dinheiro.

Nesse sentido:

“Na aquisição de bem imóvel no âmbito dos sistemas oficiais de financiamento imobiliário – processa-se uma operação de venda e compra com pagamento do preço integral e à vista.

Concomitantemente, a instituição financeira concede ao adquirente um empréstimo em dinheiro destinado ao pagamento do preço, cujo retorno estará garantido pela alienação fiduciária do bem financiado (ou de um outro bem qualquer), de forma que o inadimplemento da obrigação do devedor implicará na execução extrajudicial da dívida com vista ao retorno dos recursos financeiros ao credor.”[4]

Decorre dessa distinção que somente contratos de compra e venda com parcelamento do preço contam com “garantia de alienação fiduciária” e, dessa forma, estariam sujeitos aos ditames da tese repetitiva mencionada. E não poderia ser diferente, uma vez que, na compra e venda com financiamento imobiliário a “garantia de alienação fiduciária” é constituída em favor do contrato de mútuo, cuja resolução só é possível, em qualquer hipótese, com o reembolso do crédito ou liquidação total da dívida contratada, sem prejuízo do direito constitucional do adquirente do imóvel de, assumindo os riscos inerentes, intentar ação própria com vistas à resolução do contrato de venda e compra.

De outro lado, por confrontar o art. 53 do Código de Proteção ao Consumidor com dispositivos da lei de regência da garantia fiduciária o repetitivo delimitou sua aplicação aos contratos firmados em relação de consumo, excluindo também as operações imobiliárias contratadas entre particulares no âmbito do Código Civil.

Avançando, a ementa se refere a “contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária devidamente registrado em cartório”. A utilização do substantivo masculino registrado está a indicar que o objeto do registro exigido é o contrato de compra e venda, o que aparenta tratar-se de mero erro na redação.

Ressalte-se que, pelo princípio registral da cindibilidade o contrato principal (de venda e compra) é registrável independentemente do contrato acessório (alienação fiduciária em garantia). No entanto, é vedado o ingresso do contrato acessório ao fólio imobiliário sem o registro do contrato principal.

De toda forma, tanto a transmissão da propriedade quanto a constituição da propriedade fiduciária se perfazem com o registro dos contratos no competente Ofício de Registro de Imóveis, não havendo justificativa para se falar em execução extrajudicial com – ou sem – os preceitos da Lei nº 9.514/1997 se inexistentes esses registros, havendo “simples crédito, situado no âmbito obrigacional, sem qualquer garantia real nem propriedade resolúvel transferida ao credor”.[5]

Finalmente, nos termos em que foi redigida a ementa, a tese do repetitivo 1095, com a observância da forma prevista na Lei nº 9.514/97, se aplicará tão somente às ações que apresentem cumulativamente as seguintes condições: (i) contrato de compra e venda de imóvel com parcelamento do preço garantido por alienação fiduciária, (ii) compra e venda e alienação fiduciária registradas na matrícula imobiliária correspondente, e (iii) inadimplemento caracterizado e devedor constituído em mora.

3. Entretanto, menos de três meses passados, em artigo publicado no boletim Migalhas[6] , o brilhante advogado Dr. Alexandre Junqueira Gomide, vice-presidente do IBRADIM, explicita sua inquietação e discordância com a limitação imposta ao campo de aplicação do repetitivo e revela novas proposições de interesse exclusivo dos, já não tão satisfeitos, mercados da construção civil e imobiliário, que preveem, o vencimento integral da dívida, ainda que o devedor fiduciante se encontre adimplente, na “hipótese de o devedor fiduciante não ter mais condições financeiras para adimplir o contrato de mútuo (pagamento das prestações a vencer)”, assim como, a desobrigação – nesses casos – da intimação para a purgação da mora, ficando o credor fiduciário autorizado a iniciar a realizar os leilões públicos de venda para a satisfação do crédito, o que na execução judicial corresponderia, a nosso juízo, à supressão da citação e privação do executado do devido processo legal.

E, para rematar, o i. Advogado pondera sobre a possibilidade de se impedir o devedor fiduciante adimplente de buscar a solução judicial para a resolução do contrato de compra e venda do imóvel, utilizando-se das razões e dos argumentos jurídicos possíveis, com a consequência do cancelamento automático do contrato acessório de garantia, em caso de eventual provimento do pedido, contrariando dispositivos constitucionais de direitos e garantias fundamentais.

“São as outras situações referidas no julgado que causam inquietação. Segundo o julgado, para aplicação da lei 9.514/1997, há necessidade de o devedor fiduciante estar inadimplente. Tal assertiva pode levar à incorreta interpretação de que o adquirente adimplente que pretende a extinção do vínculo contratual da compra e venda com alienação fiduciária pode simplesmente propor ação de resolução do contrato para devolver a coisa e obter o reembolso (ainda que parcial) do preço pago. [...]

Assim, o acórdão que resultou na tese firmada pode permitir a incorreta interpretação de que o adquirente adimplente em contrato com alienação fiduciária tem a possibilidade de propor ação de resolução do contrato de compra e venda, de modo a afastar a incidência da Lei especial.”

É interessante constatar que no mesmo texto de fundo jurídico elaborado com a intenção declarada de enaltecer a prevalência da Lei nº 9.514/1997 e seus artigos 26 e 27 em relação ao CDC permitindo ao credor fiduciário excutir a garantia mediante procedimento especial de execução extrajudicial e simplificada neles estabelecido, o articulista contradite as travas de segurança e proteção jurídicas conferidas ao devedor fiduciante e que caracterizam o procedimento extrajudicial estabelecido na lei, especialmente a observância dos pressupostos essenciais da execução extrajudicial (inadimplemento da obrigação e decurso do prazo contratual de carência) previstos no art. 26 e § 2º da lei; da limitação da cobrança às prestações vencidas ou que se vencerem até a data do pagamento (que expressam a vedação de impertinente cobrança antecipada de dívida não vencida); bem como da obrigatória convocação pessoal do fiduciante para tomar conhecimento da cobrança e purgar a mora, se quiser, no prazo legal, tudo em conformidade com o § 1º do art. 26 da lei de regência.

4. É quando trata da execução extrajudicial da garantia que o artigo abraça estranhas considerações, claramente desconexas do procedimento executivo extrajudicial único, específico e simplificado estabelecido nos seus artigos 26 a 27 da Lei nº 9.514/1997 e projeta sua aplicação a situações contratuais regulares e adimplentes, pela simples presunção do credor fiduciário de possível e eventual impossibilidade futura de pagamento pelo devedor fiduciante.

Considera-se inadimplente o devedor que deixou de cumprir a obrigação legal ou contratual, no tempo, lugar e forma estabelecido e, a contrario sensu, será considerado adimplente, para todos os fins de direito, a parte que cumpriu regularmente a obrigação, ainda que ao fazê-lo tenha manifestado discordância, descontentamento ou a intenção de extinguir o vínculo contratual da compra.

Ademais, mesmo que o tenha feito de forma visceral e capaz de caracterizar a quebra antecipada do contrato, o vencimento antecipado da dívida total e sua constituição em mora, remanescerá ao fiduciante a garantia própria do direito de ação, expressa no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal de propor, a risco, a ação de resolução contratual que entender adequada, assim como a obrigatoriedade do fiduciário de proceder à intimação do devedor, na forma e nos termos da Lei nº 9.514/1997, para a purga da mora no prazo legal.

Para além disso, o direito processual brasileiro dispõe de medidas cautelares eficazes para os casos de previsível impossibilidade futura de pagamento ou de condutas contrárias ao cumprimento da obrigação, que representem risco efetivo e comprovável de prejuízo ao credor fiduciário.

5. Concluindo, com a devida vênia, a segurança jurídica buscada pelo ilustre advogado e seus representados para a “principal propulsora do mercado imobiliário e da concessão dos financiamentos habitacionais” deve resultar de um justo equilíbrio entre as partes, da estabilidade dos procedimentos de execução extrajudicial e, especialmente, do respeito aos direitos dos fiduciantes que propiciam a ‘combustão’ sem a qual não se atingirá a ‘propulsão’ almejada.

Para tanto, é preciso elidir teses inconvenientes e com potencial de superexposição do procedimento extrajudicial às injunções e interpretações do Poder Judiciário e prestigiar proposições que aprimorem os procedimentos de intimação do fiduciante e de realização dos bens consolidados e, principalmente, que viabilizem a adaptação da garantia fiduciária aos interesses de outros setores da economia cujos contratos, de alta complexidade, não podem continuar dependentes de modelos sintéticos forjados para a garantia de negócios jurídicos triviais como a venda e compra imobiliária.

(*) Mauro Antônio Rocha é advogado graduado pela USP, com pós-graduação em Direito Imobiliário e Direito Notarial e Registral, especializado em Crédito e Garantias Imobiliárias. Vice-Presidente da AD NOTARE – Academia Nacional de Direito Notarial e Registral.

Artigo publicado no BOLETIM MIGALHAS

NOTAS
1 Resp 1.891.498/SP, Rel. Min. Marco Buzzi, 2ª Seção do STJ. jul. 26/10/2022, pub. 19/12/2022.
2 Precedente qualificado. Tema nº 1095. Superior Tribunal de Justiça.
3 Página 9 do voto do relator Min. Marco Buzzi, no Resp 1.8991.498/SP.
4  ROCHA, Mauro Antonio. Alienação Fiduciária de bem imóvel - Da supergarantia do crédito imobiliário ao Big Mac dos negócios financeiros. São Paulo: Editorial Lepanto, 2022. p. 317
5 Item 34 do voto vogal proferido pela Min. Nancy Andrighi, no Resp 1.8991.498/SP.
6 https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-edilicias/384717/o-tema-repetitivo-1095-do-stj-primeiras-impressoes

quarta-feira, 29 de março de 2023

Alienação fiduciária de bem imóvel em garantia. Algumas notas sobre a ilicitude da publicação de "edital único" para o leilão de venda de imóvel em execução extrajudicial



A publicação do chamado "edital único" de público leilão para a venda do imóvel com a propriedade consolidada em execução extrajudicial pode configurar violação das determinações da lei 9.514/97 e submete o fiduciante ao risco de avultado prejuízo.


Mauro Antônio Rocha [*]



1. "O procedimento executivo extrajudicial estabelecido pela lei 9.514/97 para a garantia fiduciária é único, específico e extremamente simplificado"1 e, para além de detalhado no diploma legal, deve ser integral e obrigatoriamente transcrito, em forma clausular, para o contrato de alienação fiduciária de modo que a exposição do devedor ou fiduciante às sabidas e contundentes consequências do descumprimento das obrigações pactuadas não comporta manifestação lamuriosa.

No entanto, apesar da execução simplificada e com o intuito de abreviar o trâmite legal e administrativo, o credor fiduciário muitas vezes apadrinha artimanhas e truculências ao arrepio da lei que, mesmo sem conferir benefícios diretos, prenunciam a violação de direitos e submetem o fiduciante ao risco de avultado prejuízo.

Exemplo disso é a publicação e divulgação dos "editais únicos" para a oferta de venda do imóvel em 'primeiro' e 'segundo' leilões, que serão realizados na mesma data - ou em dias subsequentes - por valores tão discrepantes que desestimulam irremediavelmente ocasional intenção de participação e lanço em primeiro leilão, tolhendo a legítima expectativa do fiduciante de obtenção de justo preço na arrematação e consequente recuperação de parte do patrimônio arruinado.

Confirmam o acima relatado as seguintes ofertas, colhidas aleatoriamente em edições recentes do jornal Folha de S. Paulo:


2. A alienação fiduciária de bem imóvel exige do fiduciário que, consolidada a propriedade em nome do credor pelo inadimplemento de obrigação contratual pelo fiduciante, ofereça o objeto da garantia à venda, em leilão público a ser realizado em trinta dias2, pelo maior lance superior ao valor indicado para esse efeito no contrato,3 revisado conforme critérios estabelecidos contratualmente4, com o propósito da conversão desse ativo nos recursos monetários necessários à satisfação do crédito e pronta devolução ao devedor da sobra eventualmente apurada.

Cabe salientar, que a apuração do preço para venda estipulado com fulcro na norma legal resultará, de partida e comumente, desfavorável ao fiduciante por não espelhar, com a fidelidade desejada, o valor atualizado do imóvel, uma vez que o  'quantum' inserido na grande maioria dos contratos firmados apenas reproduz o preço da aquisição - produto da competência de negociação das partes - não vinculado a prévia avaliação técnica, bem como o critério de revisão geralmente adotado é o da atualização monetária pelos mesmos índices de correção da dívida, não impactado pela possível valorização por razões de mercado ou acessão de benfeitorias.

3. Não se encontrará na lei 9.514/97 dispositivo que autorize ou justifique a publicação do "edital único".

O 'caput' do art. 27 da lei se limita a prescrever a promoção de compulsório "público leilão para a alienação do imóvel", de maneira que a única hipótese de realização de um "segundo leilão", prevista no § 1º do mesmo artigo, advém da previsão de  possível resultado negativo, a indicar que o preço ofertado excede ao valor de mercado do imóvel e, consequentemente, supera as expectativas de ocasionais lançadores e compradores.

Assim, o parágrafo primeiro do art. 27 da lei deve ser interpretado de maneira a extrair duas importantes informações para a exata compreensão do procedimento de realização do bem: (i) a intenção legal de, constatado o insucesso do leilão promovido, reiterar a oferta de venda com a redução do lance mínimo ao montante suficiente ao pagamento integral da dívida (respeitadas, também, as limitações prescritas na lei 9.514/975 e no Código Civil vigente6); (ii) a indicação de que o leilão reiterado encerra o estágio de alienação obrigatória do imóvel, prosseguindo a liquidação, no caso de insucesso recorrente, com a extinção da dívida, quitação mútua e a indevidamente denominada 'adjudicação' pelo credor.

Deste modo, a realização do 'segundo' leilão somente seria admissível após frustrado o leilão inicial pela ausência de interessados ou de lance vencedor. Ou, de forma direta e precisa, não aparenta ser lícito aventar a realização de um segundo leilão, tornando público preço de venda largamente reduzido, antes de afirmado o insucesso da oferta inicial.

A motivação fundada no princípio da economia processual - produção do resultado máximo possível com o mínimo de tempo e dinheiro - para a publicação do edital único não se sustenta face à ausência de qualquer cerimônia visível em todo o procedimento com relação à imputação de encargos, despesas, custas e emolumentos, pagos ou incorridos, à conta do fiduciante. Ademais, ao infirmar a possibilidade da venda do imóvel por justo preço essa conduta afasta o credor do princípio da economia processual para acerca-lo da imoderada oneração e do desnecessário dispêndio do patrimônio do fiduciante.

4. Ainda que a interpretação do texto legal aqui exposta venha a ser questionada, o que se admite apenas ad argumentandum, as premissas do presumível prejuízo patrimonial suportado pelo fiduciante não serão facilmente refutadas.

É evidente, inafastável e incontestável que as ofertas de venda do mesmo imóvel pelo valor integral da avaliação em "primeiro" leilão e pelo valor da avaliação reduzido em até metade do preço inicial no "segundo leilão", apresentadas em um único edital, para aquisição no mesmo dia ou em dias seguintes, desencorajará e dissuadirá eventuais interessados na arrematação ainda no certame inaugural.

Dessa forma, seria de grande conveniência a explícita vedação da divulgação de oferta com preço reduzido antes de finalizado o leilão inicial e confirmado o resultado negativo. A alteração da norma legal, por meio de atividade legislativa regular, pode ser facilitada pela retomada da apreciação pelo Senado Federal do projeto de lei  4.188/021 que propõe, dentre outras coisas, o aprimoramento das regras de garantia e dos procedimentos extrajudiciais na alienação fiduciária de bem imóvel, mas que, infelizmente, empilha proposições claramente propensas a beneficiar unicamente aos credores fiduciários.

5. Finalmente, enquanto não decidida por atividade legislativa ou judicial a questão, cabe ao fiduciante sopesar a oportunidade e risco de intentar as medidas judiciais de sustação do leilão ou dos seus efeitos, apontando como vício intrínseco do edital a situação aqui exposta, com vistas a impedir a eventual venda ou, ao final, invalidar a arrematação do imóvel.

As presentes notas resultam de estudos e pesquisas acadêmicas procedidas pelo autor e ora são publicadas com o intuito de apontar o justo equilíbrio entre os direitos de fiduciários e fiduciantes, com vistas - e como eventual subsídio - à declaração de interesse do Governo Federal em retornar o projeto de lei do "Marco legal das garantias" à sua regular tramitação.


[*] Mauro Antônio Rocha
Advogado graduado pela Faculdade de Direito da USP. Pós-Graduação em Direito Imobiliário e Direito Notarial e Registral. Vice Presidente da AD NOTARE Academia Nacional de Direito Notarial e Registral


NOTAS


1 ROCHA, Mauro Antonio. Alienação Fiduciária de bem imóvel - Da supergarantia do crédito imobiliário ao Big Mac dos negócios financeiros. São Paulo: Editorial Lepanto, 2022. P.105
2 art. 27 da lei 9.514/97
3 § 1º do art. 27 da lei 9.514/97
4 Art. 24, VI da lei 9.514/97
5 § único do art. 24 da lei 9.514/97
6 Art. 891 e parágrafo único do Código de Processo Civil.
7 § 5º do art. 27 da lei 9.514/97


Publicado originalmente no boletim Migalhas

sexta-feira, 17 de março de 2023

Alienação Fiduciária de bem imóvel em garantia. Os desacertos normativos da contagem de prazo para consolidação da propriedade em consequência do inadimplemento contratual pelo fiduciante.



Na “ausência” de termo legal expresso para a consolidação da propriedade após decorrido o prazo para purgação da mora – e com base em incurial norma de serviço emanada da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo – os direitos dos fiduciantes são violados e suas dívidas injustamente oneradas.

Mauro Antônio Rocha [*]


1. De acordo com os procedimentos da Lei nº 9.514/1997 verificado o inadimplemento total ou parcial da dívida pelo devedor e observado o decurso do prazo contratual de carência cabe ao credor iniciar a execução extrajudicial requerendo ao Oficial de Registro de Imóveis a intimação do fiduciante para efetuar o pagamento no prazo legal.

Transcorrido o lapso de quinze dias contados da efetiva intimação, sem que o fiduciante pague o débito apontado, o oficial de registro certificará o fato e dará ciência ao credor, para que este proceda à comprovação de recolhimento do ITBI e do laudêmio incidentes sobre a transmissão do domínio exigida para a averbação da consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário.

A lei não determina expressamente o prazo para que o credor efetive os pagamentos e comprove os recolhimentos fiscais essenciais para a averbação. Essa “ausência” de termo legal expresso permitiu, por largo tempo, a procrastinação indeterminada e conveniente do pagamento dos tributos, da averbação da consolidação e da consequente alienação do imóvel em leilão pelo fiduciário, violando direitos e onerando a dívida do fiduciante.

2. No ano de 2013, entretanto, a Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo incluiu no capítulo XX de suas normas de serviço, destinadas aos cartórios extrajudiciais, dispositivo – posteriormente replicado nas normas administrativas do extrajudicial de diversos outros estados da federação – redizendo que a consolidação da propriedade se faz à vista do comprovante de recolhimento dos tributos exigidos, que a base de cálculo do imposto sobre a transmissão da propriedade é o valor econômico declarado pelas partes ou o valor tributário do imóvel, independentemente do valor remanescente da dívida, complementado por subitem que vige atualmente com a seguinte redação, após ser alterado pelo Provimento CG nº 56/2019:
250.2. Decorrido o prazo de 120 (cento e vinte) dias sem as providências elencadas no item anterior, os autos serão arquivados, com cancelamento do protocolo. Ultrapassado esse prazo, a consolidação da propriedade fiduciária exigirá novo procedimento de execução extrajudicial.

A rigor, a norma administrativa apenas indicou ao oficial de registro que, no caso de abandono do feito pelo interessado, procedesse ao arquivamento dos autos “decorrido o prazo de 120 dias sem as providências elencadas”, além de prescrever punição obviamente deturpada ao exigir “novo procedimento de execução extrajudicial” para o prosseguimento da excussão como consequência da negligência, entretanto, restou convencionado entre oficiais de registro de imóveis e credores fiduciários que “o credor tem um prazo de 120 dias”, conforme a norma administrativa e que “o prazo de vigência da prenotação de pedido de intimação ficará prorrogado até a finalização do procedimento com a apresentação do pagamento do imposto de transmissão, ITBI ou laudêmio”.

Ainda que se pretenda sustentar a aludida “ausência” de prazo legal para a averbação da consolidação da propriedade – tema que será enfrentado em seguida – para justificar a adoção do prazo sugerido na norma de serviço é preciso ressaltar que a e. Corregedoria da Justiça, mesmo autorizada a regulamentar as atividades dos cartórios extrajudiciais, não detém competência para legislar, especialmente sobre Direito Registral, matéria privativa da União, nos termos do art. 22, inciso XXV, da Constituição Federal, alterar prazos ou estabelecer obrigações para o jurisdicionado e, para além disso, que o prazo destacado não traz coincidência razoável com os demais prazos prescritos na lei, que expressam a celeridade e a agilidade pretendida no procedimento extrajudicial adotado.

3. Ocorre, porém, que a afirmada presunção de “ausência” de prazo legal para a averbação de interesse do credor não resiste ao exame superficial do procedimento de execução extrajudicial trazido pelo art. 26 da Lei nº 9.514/1997 sob o crivo do direito registral vigente.

Nos termos do art. 26 da Lei nº 9.514/1997, a execução extrajudicial tem início com a constituição do fiduciante em mora e a prenotação de requerimento do fiduciário para que o oficial de registro proceda à intimação do fiduciante para a purgação da mora. Sobre a prenotação, ou inscrição no Livro do Protocolo, discorre o Desembargador Ricardo Dip, ao comentar o artigo acima transcrito:
“Se o atual registro imobiliário brasileiro, centrado ‘quodammodo’, no método da matrícula ou fólio real (art. 195, LRP), demanda, para a complementação do sistema publicitário, o recurso a uma fonte pessoal (art. 180, LRP), não menos a metódica registral, já não à vista direta da publicidade, mas dirigida à garantia de direitos, exige uma ordem no tempo aquisitivo desses direitos. Não,
entre nós, uma ordem exógena: ainda que o pudera ser, mediante alguma espécie de prioridade indireta, extrarregistrária, p. ex., notarial. No entanto, isto sim, uma ordem endógena, interna ao método registrário: a prenotação, i.e., a inscrição no Livro do Protocolo (art. 173, inc. I, 174 e 184 e ss., LRP).” (os grifos são do autor)

Isto posto, o registro imobiliário brasileiro obedece a “uma ordem no tempo aquisitivo” consubstanciada na prenotação, que estabelece o direito posicional de preferência, assim lecionado por Dip:
“O transitório direito posicional de preferência registrária, resultante da prenotação – potior in iure qui priusin tempore ou, mais exatamente, prius in tempore, fortior in tabula – permanece: (a) pelo prazo ordinário de 30 dias; (b) durante o processamento da dúvida (cf. art. 203. LRP); (c) até que se perfaça o registro ou a averbação objeto, a cujo perfazimento – não importa se mal ou bem – não subsiste a eficácia da prenotação.” (os grifos são do autor)

A Lei nº 6.015/1973 – Lei dos Registros Públicos – que estabelecia, na redação vigente até o dia 27 de junho de 2022, a cessação dos efeitos da prenotação após decorridos 30 (trinta) dias de seu lançamento no protocolo – estabelece na redação vigente após o dia 28 de junho de 2022 que:
Art. 205 – Cessarão automaticamente os efeitos da prenotação se, decorridos 20 (vinte) dias da data do seu lançamento no Protocolo, o título não tiver sido registrado por omissão do interessado em atender às exigências legais.

O procedimento administrativo da execução extrajudicial da alienação fiduciária está regulamentado nos itens 236 e seguintes do capítulo XX, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo e, para o que interessa ao presente estudo, suficiente trazer os seguintes itens:
238. Prenotado e encontrando-se em ordem, o requerimento deverá ser autuado com as peças que o acompanham, formando um processo para cada execução extrajudicial.
[...]

240.1. O prazo de vigência da prenotação ficará prorrogado até a finalização do procedimento.

240.2 Formulada nota devolutiva pelo registrador no período compreendido entre a admissão do requerimento de intimação e a certificação do transcurso de prazo sem purgação da mora, o não atendimento das exigências por omissão do requerente no prazo de 30 dias acarretará o arquivamento do procedimento de intimação, com o cancelamento da prenotação.

Temos, assim, que, rigorosamente observada a norma administrativa, a prenotação do requerimento de intimação dará início ao “processo para cada execução extrajudicial” – e, portanto, ao prazo ordinário de 20 dias predito na norma legal, que permanecerá sobrestado “no período compreendido entre a admissão do requerimento de intimação e a certificação do transcurso de prazo sem purgação da mora” e da necessidade de comprovação do recolhimento dos tributos devidos – com igual prazo para cumprimento de exigência formulada em nota devolutiva, nesse período – ou até que se perfaça seu objeto, o que coincidirá com a purgação da mora ou com a efetiva consolidação da propriedade – “a cujo perfazimento – não importa se mal ou bem – não subsiste a eficácia da prenotação”.

Dessa forma, ainda que se considere as naturais dificuldades encaradas pelos oficiais registradores e seus prepostos para a intimação pessoal do fiduciante, ultrapassando os desencontros, incertezas cadastrais e ocultações deliberadas – que, muitas das vezes, exigirão a publicação de editais – justificadoras do protraimento do prazo sem o correspondente lastro legislativo, bem como uma autoconcedida “autorização legislativa” de prorrogação normativa do prazo de validade da prenotação inserida pela Corregedoria Geral da Justiça no item 45 e, mais especificamente, no item 240.1 supra transcrito, no capítulo XX das normas de serviço parece-nos evidente que o decurso do prazo quinzenário conferido à purga da mora rematará a protelação conferida, fazendo com que se retome a contagem do prazo legal para a “finalização do procedimento”.

Na doutrina pesquisada, somente BRANDELLI resvalou na questão proposta, da seguinte maneira:
“Apesar de a prenotação do requerimento de intimação ter validade legal de 30 dias (art. 205 da Lei n. 6015/73), neste caso, sua validade será sobrestada pelo tempo que seja necessário para o cumprimento das intimações, o que poderá importar em inúmeras diligências, bem como do decurso do prazo para pagamento, após a efetivação das intimações.”

Reconhece BRANDELLI a necessidade do sobrestamento da prenotação “pelo tempo que seja necessário para o cumprimento das intimações (grifo nosso) [...] bem como do decurso do prazo para pagamento, após a efetivação das intimações”. Pode-se inferir da leitura que, mesmo na doutrina favorável, o eventual sobrestamento não se estende para além da ultimação do prazo para a purga da mora.

4. Prosseguindo, para a determinação da vigência do prazo de averbação da consolidação da propriedade é imprescindível que seja definido o momento da “finalização do procedimento”.

A nosso juízo, e com vistas às normas legais e à melhor doutrina, havendo o lançamento do requerimento de intimação no Livro de Protocolo, isto é, feita a prenotação, “a finalização do procedimento” ocorrerá com:
• a purgação da mora;
• a averbação da consolidação da propriedade ao credor; ou
• o não cumprimento de exigência de qualquer natureza pelo credor, regularmente apontada pelo oficial de registro, inclusive comprovação do recolhimento dos impostos devidos.

A primeira alternativa não requer maior destaque, sendo finalizado o procedimento com o pagamento da dívida dentro do prazo legal deferido para a purgação da mora. Na segunda, “a finalização do procedimento” provirá do averbamento da consolidação da propriedade em nome do credor, após descumprido o prazo de purgação pelo fiduciante regularmente intimado e comprovado o pagamento dos tributos incidentes – respeitado o prazo legal demarcado para a prenotação.

Menos óbvia, a alternativa final reclama maior aprofundamento: “a finalização do procedimento” se dará com a cessação dos efeitos da prenotação pela omissão do interessado em cumprir exigência legal, assim dizendo, no vigésimo dia contado do lançamento do requerimento da intimação no Livro do Protocolo, sobrestado pela expedição da intimação e retomado a partir de ciente o fiduciário do decurso do prazo para pagamento pelo fiduciante, declinada a data inicial e incluída a do término do prazo.

No caso específico de omissão na comprovação de cumprimento da obrigação tributária bastará que se determine o termo inicial da prenotação [dia 1], o dia da expedição da intimação [dia 2] e a data em que o oficial do registro deu ciência ao credor fiduciário do decurso do prazo [dia 3].

A título de exemplo para requerimento protocolado já na vigência da lei que reduziu o prazo da prenotação para 20 dias:
[Dia 1] prenotação em 04/07/2022 (o dia inicial é descartado);
[Dia 2] intimação expedida em 07/07/2022 (já decorridos 3 dias);
[Dia 3] certificação do final do prazo 28/02/2023 (decorrido mais 1 dia).

A partir de então o credor terá 16 dias (dos 20 dias de prazo de que trata o art. 205 da LRP), com termo final em 16/03/2023, para cumprir a exigência, ou seja, comprovar o pagamento dos impostos devidos sob pena de perempção da prenotação e a obrigação de reiniciar o procedimento de execução extrajudicial, conforme demanda a norma administrativa. Cabe realçar que alguns autores entendem que o prazo de cumprimento de exigência no período da prenotação será sempre de vinte dias, o que altera o termo final para 20/03/2023, mas em nada altera o raciocínio exposto.

No caso de garantia fiduciária vinculada a operação de financiamento habitacional deverá ser observada a carência de 30 dias, após a expiração do prazo de purgação da mora, para a consolidação da propriedade e, nessa hipótese, o [dia 3] corresponderia ao termo final da carência, retomando o prazo limite para a comprovação do recolhimento dos tributos e consolidação da propriedade.

Resta claro do exemplo em comento que o sobrestamento é findo com a certidão e ciência do credor do transcurso do prazo sem purgação da mora pelo fiduciante, retomando a prenotação seu trâmite normal e que a “finalização do procedimento” resultará da comprovação de pagamento dos tributos exigidos e da averbação da consolidação na respectiva matrícula ou, decorrido o prazo legal, do cessamento automático dos efeitos da prenotação.

Cumpre, a respeito do assunto até aqui tratado, ressaltar nosso entendimento de inconstitucionalidade da cobrança do imposto de transmissão (ITBI) na consolidação da propriedade.

5. Não bastasse isso, a norma concebida na corregedoria paulista pretende impor ao fiduciário negligente penalidade cabalmente desconectada da estrutura jurídica do instituto ao vedar o prosseguimento da excussão, após decurso do prazo ali fixado e o cancelamento do protocolo por abandono, exigindo a abertura de novo procedimento de execução extrajudicial, como se o deletério descaso do credor tivesse o condão de repristinar o contrato fulminado.

A norma não explicita o que deve ser entendido por “novo procedimento de execução extrajudicial”, contudo, a melhor interpretação será encontrada no item 238 do capítulo XX das mesmas normas de serviço que assim dispõe: “o processo” (sic) de execução extrajudicial será formado com a autuação do requerimento de intimação e das peças que o acompanham”.

Destarte, a aplicação da penalidade tratada no item 250.2, capítulo XX, das normas de serviço da Corregedoria Geral resultaria na invalidação integral da execução extrajudicial e no restabelecimento do status quo ante, consequentemente no seu refazimento desde o requerimento de intimação do fiduciante e, portanto, no convalescimento – imediato e irreversível – do contrato de alienação fiduciária e na ressurreição do contrato principal, com o consequente retraimento das obrigações contratuais do fiduciante ao início do período de negligência do fiduciário, inclusive quanto ao vencimento das parcelas e encargos punitivos pelo não pagamento nos prazos originários, atribuindo e acumulando prejuízos ao fiduciante.

De direito, conforme procedimentos arrolados na Lei nº 9.514/1997, a ‘certidão de transcurso de prazo sem purgação da mora’ pelo fiduciante constitui o título administrativo inscritível da consolidação da propriedade, ou seja, da transmutação da propriedade fiduciária em plena (ainda que condicionada), que produz efeitos jurídicos imediatos entre as partes e se perfaz com sua averbação de ofício, independentemente de requerimento ou petição do fiduciário, na matrícula imobiliária correspondente, para a pública exteriorização e ciência daqueles efeitos por terceiros.

Ora, se a consolidação da propriedade em nome do credor decorre – apenas – do transcurso do prazo sem a purgação da mora e essa passagem temporal regularmente certificada pelo oficial competente enseja, reflexamente, a extinção do direito real de aquisição antagônico e a resolução definitiva do contrato principal, ainda que a averbação possa ser obstada ou sobrestada até a efetiva apresentação da prova do pagamento dos tributos incidentes – por se tratar de exigência legal – evidentemente o descumprimento da obrigação fiscal não terá a aptidão de desconstituir as consequências jurídicas dela decorrentes e acima descritas.

Por último, a comprovação do recolhimento dos tributos incidentes não é uma mera exigência de natureza registral para a “finalização do procedimento”, sendo certo que a certificação do decurso de prazo – por si – reconhece e constitui o fato gerador que dá origem à obrigação tributária cujo cumprimento é exigido pela legislação específica, de forma que a ausência de pagamento até a data aprazada (dez ou quinze dias, conforme a interpretação adotada), acarretará a imposição de multas, encargos moratórios e atualização monetária, não sendo da competência da Corregedoria da Justiça, também aqui, dispensar ou postergar o recolhimento desses tributos.

6. Os resultados nocivos dessa indevida prorrogação concedida ao credor fiduciário pela norma administrativa vão muito além da evidente violação do direito do fiduciante à imediata realização do leilão público para a venda do bem, liquidação da dívida e mediato reembolso do valor sobejante nos termos do art. 27 'caput' e § 4º da Lei 9.514/1997, produzindo uma sequencia de danos e prejuízos materiais e morais ao fiduciante cuja relação de causalidade com o elastecimento do prazo de consolidação da propriedade pode ser facilmente estabelecida.

Sucede que o saldo devedor da dívida será, para fins de determinação do valor de venda, atualizado na data do leilão, incorporando ao débito o valor das parcelas decursadas no período de 120 dias da dilação concedida, com os juros convencionais, penalidades e demais encargos contratuais (§ 3º do art. 27 da lei), vale dizer, independentemente da manutenção da posse do imóvel, o fiduciante responderá, pelas prestações vencidas no decorrer da procrastinação do credor fiduciário e, por absurdo, também pelas multas moratórias e contratuais do não desejado pagamento. Para além disso, serão acumuladas ao total da dívida todas as despesas, prêmios de seguro, encargos legais, tributos e contribuições condominiais também pagas ou incorridas desde a data da certificação do decurso da mora até a data do leilão.

Nada obstante, embora a consolidação – de fato – da propriedade em nome do credor resulte da simples certificação do decurso da mora, com o efeito de resolver – de direito – o contrato principal e extinguir a dívida, o devedor ou fiduciante permanecerá injustamente negativado nos cadastros das entidades de proteção ao crédito por todo esse período, com todo o inconveniente e severos prejuízos de ordem moral resultantes, impossibilitado, por exemplo, a contratação da locação de outro imóvel para sua moradia.

7. Por todo o exposto, parece-nos claro e razoável concluir que:

(a) de acordo com as leis de regência e dos registros públicos vigentes o prazo para a comprovação de recolhimento dos tributos incidentes na consolidação da propriedade deve ser de 20 (vinte dias) contados da prenotação do requerimento de intimação, que será sobrestado a partir da data de expedição da intimação até a data de ciência, por certidão, do decurso de prazo para purgação da mora pelo devedor e fiduciante, sendo então retomado para o cumprimento da exigência legal (comprovação de pagamento dos tributos) até o termo final;

(b) o lapso de 120 (cento e vinte) dias de que trata o item 205 das normas de serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo não elastece os prazos peremptórios e próprios do fiduciário, devendo ser observado pelos oficiais de registro de imóveis, quando for o caso, para encerramento do protocolo e arquivamento dos autos abandonados;

(c) nada obsta, a nosso juízo, que o oficial de registro proceda ao arquivamento dos autos, por abandono logo após o decurso do prazo de validade da prenotação;

(d) a consolidação da propriedade, assim como a venda do bem em leilão público, são obrigações legais do fiduciário, podendo o devedor e fiduciante exigir sua efetivação, inclusive com antecipação de tutela e fixação de multa para o descumprimento, além da imposição de perdas e danos;

(e) o fiduciante deve exigir que sejam excluídos do montante da dívida as multas e encargos decorrentes do não pagamento dos tributos no prazo legal, assim como das parcelas de dívidas vencidas no período de negligência do fiduciário, dos encargos tributários e condominiais, não sendo lícita, a nosso juízo, a exigência de taxa de ocupação relativa ao mesmo período.
São essas as considerações que entrego com vistas ao debate e aprimoramento do instituto da alienação fiduciária e da garantia fiduciária.


[*] Mauro Antônio Rocha é advogado graduado pela Faculdade de Direito da USP, com pós-graduação em Direito Imobiliário e em Direito Notarial e Registral, com diversos cursos de extensão e aperfeiçoamento em Direito Imobiliário, Urbanístico, Notarial, Tributário, do Consumidor, entre outros. Vice-Presidente da Comissão de Direito Notarial e Registros Públicos da OAB/SP na gestão 2017/2018. Membro Fundador da Academia Brasileira de Direito Registral Imobiliário – ABDRI e Vice-Presidente da Academia de Direito Notarial e Registral - AD NOTARE. Palestrante e instrutor e professor. Coordenador de Contencioso Jurídico da Caixa Econômica Federal - CEF. Autor do livro "Alienação Fiduciária de Bem Imóvel - da supergarantia do crédito imobiliário ao big mac dos negócios financeiros".


NOTAS:
1 Provimento CGJSP nº 37/2013
2 Conforme exposto no XLIV Encontro do Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, Curitiba, 2017. https://irib.org.br/files/palestra/xliv-tema-03-maria-carmo1.pdf/
3 Art. 30 do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942
4 Alvim Neto. José Manuel de Arruda [et al]. Lei dos Registros Públicos: comentada. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 1084.
5 Refere-se o autor ao art. 205 da Lei nº 6015/1973 - LRP
6 Silva, Ulisses da. Direito Imobiliário: O registro de imóveis e suas atribuições: a nova caminhada. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2013, p. 151
7 "45. Cessarão automaticamente os efeitos da prenotação, salvo prorrogação por previsão legal ou normativa, se, decorridos 30 (trinta) dias do seu lançamento no livro protocolo, o título não tiver sido registrado por omissão do interessado em atender as exigências legais." (Prov. CGJSP 58/89, cap. XX)
8 Brandelli. Leonardo. Operações Imobiliárias Estruturação e tributação. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 95
9 https://www.migalhas.com.br/depeso/381596/a-inconstitucionalidade-do-itbi-na-consolidacao-
10 Arts. 536, § 4º e 815 do Código de Processo Civil.


Publicado originalmente em MIGALHAS Ed. 5.563

sábado, 4 de março de 2023

Alienação fiduciária de bem imóvel em garantia. A equivocada tese do enriquecimento sem causa do credor fiduciário na ‘adjudicação’ do bem após os leilões negativos.


Decisões do TJ/SP que aplicam equivocada tese de enriquecimento sem causa transferem ao fiduciário ônus e consequências do descumprimento contratual pelo devedor e condenam o credor a 'aquisição' do imóvel constituído em garantia.
Mauro Antônio Rocha [*]



1. A abstrata possibilidade de enriquecimento imotivado do fiduciário intimida o instituto da alienação fiduciária de bem imóvel em garantia desde a promulgação da lei 9.514/97 mormente quando - depois do inadimplemento contratual absoluto pelo fiduciante e frustrada a venda do imóvel nos públicos leilões - ocorre a transmissão definitiva da propriedade para o credor.

Esse constrangimento, que no passado era enfrentado especificamente por devedores e fiduciantes, recentemente passou a ser experimentado também pelos credores fiduciários na esteira de uma sequência de decisões emanadas da 29ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (1) determinando ao credor, nesses casos, que efetue em favor do fiduciante o pagamento de "quantia relativa à diferença entre o valor da avaliação e o valor atualizado da dívida (com todos os encargos contratuais) somado ao das despesas devidamente comprovadas, apurado no momento da adjudicação do imóvel (data do segundo leilão negativo), corrigido monetariamente a partir de então e acrescido de juros de mora desde a citação", além do ônus sucumbencial.

Visivelmente desacertadas aquelas decisões condenam o fiduciário à 'adquirir' o imóvel por valor superior ao da oferta pública e universal de venda no segundo leilão ao, por absurdo, impor o pagamento do valor 'relativo à diferença entre o valor de avaliação e o valor atualizado da dívida', independentemente do valor do bem alcançável no mercado e transferem do devedor para o credor, de forma enviesada, os ônus e responsabilidades do descumprimento contratual pelo devedor.

Peço vênia para articular algumas considerações sobre o assunto.


2. De início, cabe reconhecer que, com a extensão de uso da alienação fiduciária de bem imóvel para a garantia de transações comerciais e financeiras diversas do típico e originário financiamento imobiliário, desfez-se a singela e convencional correlação de forças imaginada pelo legislador, notadamente no ajustamento do instituto às operações comerciais, de prestação de serviços, e de empréstimos bancários sem destinação específica, pela desproporção entre o valor de avaliação do bem oferecido em garantia e o montante dos recursos fornecidos pelo credor.

Essa disparidade entre o valor da garantia e o valor garantido, em geral muito menor, apontada desde os primórdios da lei e considerada a principal fragilidade da alienação fiduciária, cria um gap patrimonial apto a desiquilibrar as relações contratuais e  granjeou maior relevância nos últimos anos pelos reflexos potencialmente danosos ao fiduciante quando adotada a solução derradeira (2) determinada pela lei 9.514/97 com a transmissão definitiva do imóvel para o patrimônio do credor fiduciário.

Urge, portanto, realinhar a norma legal, mediante atividade legislativa, para obstar que o credor opere indevidamente os procedimentos da execução extrajudicial, com o fito de angariar benefícios que caracterizem, ao final, o aviltante "enriquecimento sem causa".

Isso não significa, no entanto, assentir cabalmente com a equivocada tese de enriquecimento do credor fiduciário tão-só pela assunção da propriedade plena do imóvel após as infrutíferas tentativas de venda por meio dos leilões públicos.


3. O enriquecimento sem causa, em sua melhor definição, decorre do acréscimo de bens que, em detrimento de outrem, se verificou no patrimônio de alguém, sem que para isso tenha havido fundamento jurídico. Requer a ausência de justa causa, o locupletamento ilegal e o nexo causal entre o enriquecimento  e o empobrecimento, é dizer, o acréscimo patrimonial de uma parte deve coincidir com o decréscimo patrimonial da outra, sem justificativa jurídica plausível.

No entanto, a venda do imóvel objeto da garantia para terceiros em leilão, assim como a transmissão plena e definitiva da propriedade ao credor fiduciário após o público, efetivo e frustrado leilão, estão notoriamente fundadas no parágrafo 5º do art. 27 da supradita lei 9.514/97, não se amoldando, nesse aspecto, à definição indicada.

Também não se encontrará nas modalidades tratadas acréscimo ou decréscimo patrimonial das partes que se possa correlacionar de forma imediata ou mediata.

Na arrematação do bem em leilão, o licitante pagará em moeda contada - exclusivamente - o montante correspondente ao da oferta pública de venda, que será utilizado para a liquidação da dívida, reembolsando-se ao fiduciante o que sobejar.

Na transmissão da propriedade plena, definitiva e incondicionada do bem ao fiduciário, haverá a conversão de ativo financeiro (créditos de titularidade do credor não adimplidos espontaneamente pelo devedor) em ativo imobiliário (transferência plena e definitiva da propriedade do imóvel ao credor, mediante quitação total ou parcial da dívida, conforme o caso), enquanto ao devedor restará elidido o passivo financeiro (dívida e encargos).

Tanto a conversão quanto a elisão se darão por grandeza correspondente ao valor de mercado do bem, representado pela quantia exigida para a venda pública, regularmente proposta.

Avaliação e mercado são valores comumente não convergentes. O valor de avaliação é apurado através de perícia ou outro meio técnico-profissional aceitável e servirá de indicador para o lance mínimo de venda. O valor de mercado, por sua vez, espelhará o lance máximo considerado atrativo pelos licitantes e interessados na aquisição do bem.
Assim, nos exatos contornos do procedimento definido pela lei 9.514/97, demonstrada a ausência de interesses que descarte o valor de avaliação, parece lógico que o bem seja oferecido pelo seu valor de mercado, neste caso representado, por força de determinação legal, pelo valor total da dívida. Quando, ainda assim, não se apresentarem lances vencedores, manda a lei que a propriedade seja transferida definitivamente ao credor pelo valor da dívida, porque coincidente com o valor de mercado utilizado para a decisiva oferta pública de venda, de maneira que, à princípio, não se poderá comprovar enriquecimento ilícito ou imotivado.

Para afastar possível desvio ou ilegalidade a lei processual vigente (3) veda a aceitação de preço vil pela oferta, assim considerado o preço inferior ao mínimo estipulado pelo juiz ou a cinquenta por cento do valor de avaliação, que, dessa forma, passarão a configurar o valor de mercado do imóvel para todos os fins.


4. Ainda assim, é inegável que em certas transações entre pessoas naturais ou jurídicas não financeiras a solução proposta no § 5º do art. 27 da lei 9.514/97 revele a perspectiva de demasiado benefício ao credor, porém, não se configurará facilmente a ilicitude do locupletamento, face à já aludida autorização legal.

No caso específico das instituições financeiras, entretanto, a expectativa da colheita de lucros não operacionais pela especulação imobiliária e, portanto, da própria caracterização de qualquer benefício ilícito ou de enriquecimento não justificado, pode ser considerada inexistente, uma vez que esses imóveis recebidos como "bens não de uso" deverão ser compulsoriamente vendidos nos prazos estipulados pelo Banco Central do Brasil (4), sob pena de aplicação das cominações legais cabíveis, que incluem restrições ao limite de operações de empréstimos com liquidez. Para além disso, a recepção e retenção desses bens requer vultoso dispêndio de recursos para o pagamento das despesas de administração, manutenção, segurança, tributárias, condominiais etc. a reclamar a imediata realização de campanha de venda direta pela melhor oferta.

Concluindo o raciocínio, se o bem é oferecido à venda, com a estrita observância da lei, por valor correspondente à metade do valor de avaliação, este é o valor de mercado a que estará sujeito qualquer interessado, inclusive o credor no exercício de seu direito de aquisição da propriedade. Ora, se qualquer terceiro poderia adquirir o bem pelo valor da oferta, não se justifica a imposição do julgado que o obrigue a pagamento maior pela adoção do valor da avaliação.

E, no caso julgado, ainda que se considere que a transmissão da propriedade se deu por preço vil - inferior a cinquenta por cento do valor de avaliação do imóvel - uma justa condenação estaria limitada ao pagamento complementar igual à diferença entre o valor de mercado, definido na forma acima referida. e o valor atualizado da dívida.


5. Contudo, as decisões do TJ/SP acima referidas, para além do equívoco apontado, inauguraram um novo e, no mínimo, insólito argumento ao pretexto de que a hipótese dos autos não se amoldaria aos dispositivos legais citados porque, no caso, não houve lance a ser considerado pela ausência de licitantes interessados.

Obviamente, em certame de lanços com estipulação prévia de oferta mínima é inesperado que alguém faça, de boa-fé, proposta de valor inferior ao lance inicial e, da mesma forma, é impensável que dessa oferta o leiloeiro faça o registro.

Se o edital foi regularmente publicado - e não há nenhuma informação em contrário - e o leilão efetiva e comprovadamente realizado - o que está confirmado nos relatórios - a ausência de lance coincide ao não ofertamento de proposta de valor igual ou superior ao montante da dívida, não havendo na lei de regência, nem mesmo no código processual, dispositivo que condicione a existência de lance para a validade da praça.

Com relação a esse argumento, cumpre perquirir: (a) se a existência de registro de oferta descartada pelo leiloeiro, por valor inferior ao lance mínimo alteraria, de alguma forma, a decisão prolatada?; (b) se a inexistência de lance que descaracteriza o certame, como decidido naqueles julgados, não invalidaria, por consequência, o leilão, tornando-o nulo de pleno direito?; e (c) se o leilão pode ser nulo de pleno direito a transmissão da propriedade ao fiduciário, não seria, igualmente, nula de forma, a exigir a retomada do procedimento desde aquele ponto, o que faria nulo também o julgado condenatório?

Finalmente, a alienação fiduciária de bem imóvel é o maior, o melhor e o mais importante instrumento de garantia vigente, permite a concessão facilitada e abundante de crédito com taxas de juros reduzidas e deve ser preservado para o atendimento dos milhões de brasileiros que sonham com a conquista da moradia própria e para o bem do crédito imobiliário, da construção civil e da própria estabilidade econômica do país.


[*] Mauro Antônio Rocha é advogado graduado pela Faculdade de Direito da USP, com pós-graduação em Direito Imobiliário e em Direito Notarial e Registral, com diversos cursos de extensão e aperfeiçoamento em Direito Imobiliário, Urbanístico, Notarial, Tributário, do Consumidor, entre outros. Vice-Presidente da Comissão de Direito Notarial e Registros Públicos da OAB/SP na gestão 2017/2018. Membro Fundador da Academia Brasileira de Direito Registral Imobiliário – ABDRI e Vice-Presidente da Academia de Direito Notarial e Registral - AD NOTARE. Palestrante e instrutor e professor. Coordenador de Contencioso Jurídico da Caixa Econômica Federal - CEF. Autor do livro "Alienação Fiduciária de Bem Imóvel - da supergarantia do crédito imobiliário ao big mac dos negócios financeiros".


NOTAS

1 Ap. Cível 100368597.2020.8.26.0292; Rel. José Augusto Genofre Martins; 29ª Câmara de Direito Privado; Julg.28/06/2022; Ap. Cível 1002455-19.2017.8.26.0100; Rel. Fabio Tabosa; 29ª Câmara de Direito Privado; Julg. 25/02/2022; Ap. Cível007621-29.2018.8.26.0704; Rel. Mário Daccache;  29ª Câmara de Direito Privado; Julg. 16/02/2022.
2 Lei nº 9.514, de 20/09/1997, art. 27, § 5º.
3 Código de Processo Civil, art. 891 e § único. Epa! Vimos que você copiou o texto. Sem problemas, desde que cite o link: https://www.migalhas.com.br/depeso/382383/alienacao-fiduciaria-de-bem-imovel-em-garantia
4 Lei 13.506/2017, art. 3º, § 2º, II e Circular BCB 909, de 11/01/1985.


Publicado originalmente no MIGALHAS

quarta-feira, 1 de março de 2023

Alienação fiduciária de bem imóvel. A inconstitucionalidade do ITBI na consolidação da propriedade.


Uma incompreensível exigência de prova do pagamento do ITBI inserida na Lei 9514/97 atrelou ao procedimento de consolidação da propriedade em nome do credor a inconstitucional imposição de pagamento do imposto.

Mauro Antônio Rocha [*]


1. Como é sabido, a alienação fiduciária regulada pela Lei nº 9.514/1997 é o negócio jurídico que transfere ao fiduciário a propriedade resolúvel de coisa imóvel, com o escopo de garantia¹ de outro negócio jurídico, simultâneo ou precedente, de qualquer ordem. A propriedade fiduciária que emana da inscrição do título no competente Registro de Imóveis² não se equipara, para quaisquer efeitos, à propriedade plena³, remanescendo na titularidade do fiduciante o direito real de aquisição do bem4 e, por sua natureza jurídica de direito real de garantia, está exceptuada da incidência do imposto de transmissão de bem imóvel – ITBI.

A não incidência do mencionado tributo advém de expresso aparte estabelecido no inciso II do artigo 156 da Constituição Federal5, replicado no inciso II do artigo 35 do Código Tributário Nacional6, da condição resolutiva contida na transmissão fiduciária e, principalmente, da vontade política de não sobrepesar o custo operacional das transações no mercado de créditos.

Ocorrem, no entanto, situações em que a resolução da propriedade fiduciária decorre do inadimplemento de obrigação contratual pelo fiduciante, circunstância prevista e regida no art. 26 da Lei nº 9.514/1997, através da dação em pagamento ou da consolidação da propriedade em nome do fiduciário com a consequente e compulsória venda do imóvel em leilão público

1.1 Dação em pagamento

A dação em pagamento regulada nos arts, 356 a 359 do Código Civil é o acordo ajustado entre os contratantes pelo qual o credor consente em receber prestação diversa da que lhe é devida à título de pagamento, com determinação do preço e relações entre as partes pautadas pelas normas do contrato de compra e venda. A dação prevista no parágrafo 8º do art. 26 da lei de regência permite ao fiduciante dar, com a anuência do fiduciário, seu direito eventual ao imóvel em pagamento da dívida7, dispensando a alienação obrigatória do bem em leilão.

A dação em pagamento concilia a resolução da propriedade fiduciária, operando a revogação da cláusula resolutiva e o cancelamento da garantia findando a relação de confiança, com a transmissão definitiva da propriedade plena do bem imóvel ao fiduciário – sem abrigo na salvaguarda constitucional de não incidência, constituindo, dessa forma, o fato gerador do ITBI.

1.2 Alienação do imóvel em público leilão

O inadimplemento de obrigação contratual coloca o fiduciante em mora e, observados os procedimentos legais, dá causa à consolidação da propriedade, com o cancelamento da garantia fiduciária e confirmação da propriedade plena ao fiduciário, condicionada, entretanto, à compulsória oferta de venda em leilão público do imóvel cuja propriedade foi consolidada em virtude do decurso do prazo de purgação da mora.

A alienação do bem em público leilão, com a obediência aos dispositivos legais e contratuais aplicáveis, busca converter o ativo nos recursos monetários necessários para a satisfação do crédito e a transmissão da propriedade dela resultante constituirá o fato gerador do imposto de transmissão intervivos.

1.3 Leilões negativos e extinção da dívida

O resultado negativo da oferta para venda do imóvel em leilão acarretará a extinção do crédito e o fiduciário tornar-se-á senhor do bem – pelo valor da dívida – com a transmissão plena e definitiva da propriedade, sem a necessidade, em nenhum tempo, de prestar contas ao fiduciante da destinação ou de eventual excesso que resultar da venda do imóvel.

A transmissão plena e definitiva da propriedade ao fiduciário resultará da averbação requerida pelo interessado dos documentos, assinados pelo leiloeiro, que comprovem o insucesso dos leilões promovidos, postada no campo de incidência do tributo, torna exigível o recolhimento e comprovação de pagamento do ITBI.


2. Inconstitucionalidade da exigência do pagamento do ITBI na consolidação da propriedade

Da mesma forma, consideradas as razões jurídicas de não incidência tributária quando da constituição da garantia, não se apresenta lícita a exigência do pagamento do ITBI na consolidação da propriedade por conta de inadimplemento contratual, visto que a propriedade em nome do fiduciário será estabelecida ainda em caráter assecuratório, condicionada8, limitada e cerceada, despida do direito de livre disposição e com os direitos de uso e fruição tolhidos ou, no mínimo, circunscritos, além de vedada qualquer pretensão de apropriação do bem pelo agora proprietário. Ademais, como já visto, por força de dispositivos legais expressos e obrigatoriamente transcritos para o contrato de alienação fiduciária o bem imóvel será obrigatoriamente ofertado e vendido em público leilão, propiciando sua conversão em numerário para a satisfação da dívida e restituição do eventual excedente ao fiduciante.

No caput e nos oito parágrafos do referido artigo 26 estão minudenciados de forma satisfatória os procedimentos prescritos para a consolidação da propriedade, da intimação do fiduciante para pagamento do valor da dívida ou das parcelas e encargos vencidos ao detalhamento da consequência do não atendimento ao chamado para a purgação da mora no prazo concedido.

Contudo, inusitada e incompreensível exigência de vista da prova do pagamento do imposto de transmissão intervivos, acoimada ao parágrafo 7º do mencionado art. 26 da Lei nº 9.514/1997, como condição para a promoção da averbação9 da consolidação da propriedade pelos oficiais de registro de imóveis atrelou ao procedimento impertinente imposição de recolhimento do tributo, expressamente vedado na carta constitucional vigente.

A utilização do adjetivo impertinente se justifica por conta de equivocados entendimentos a que a referida exigência dá causa por sugerir a incidência tributária, contrariando a disposição expressa contida no próprio art. 26 e seus parágrafos. Dessume-se da norma legal em comento que a consolidação ali referida resulta – exclusivamente – da mora, da intimação válida do fiduciante e decurso do prazo deferido para a purgação certificado pelo registrador que procederá, de ofício, sua averbação com a resultância de suprimir o direito real de aquisição e estabelecer propriedade condicionada em favor do fiduciário.

A incômoda redação do referido § 7º do art. 26 parece ter atordoado os operadores do direito de tal forma que, apesar de decorridos quase trinta anos da promulgação da lei, poucas ações foram propostas com o objetivo de afastar a exigência de recolhimento do imposto, da comprovação do pagamento ao oficial de registro ou para apontar a inconstitucionalidade dessas exigências.

Em artigo publicado no boletim Migalhas10 o ilustre advogado André Abelha, examinou algumas decisões judiciais favoráveis à não incidência do imposto, arrolou os principais argumentos invocados pelos magistrados e buscou o xeque-mate ao asseverar que nenhum deles resistiria a uma análise crítica e concluir que “não há razão jurídica que fundamente, com solidez, a inexigibilidade do ITBI por ocasião da consolidação da propriedade em nome do credor”.

Ao primeiro argumento atribuído aos magistrados – o imposto teria sido recolhido por ocasião da instituição da garantia não havendo razão para fazê-lo novamente – o autor rebateu com precisão, esclarecendo a reiterada confusão entre a incidência e pagamento do ITBI na compra e venda do imóvel pelo fiduciante e não incidência na constituição da propriedade fiduciária em garantia do empréstimo ou financiamento contratado para a aquisição, e que, podendo ser o contrato principal de qualquer natureza, nem sempre haverá anterior transmissão de propriedade geradora da obrigação de pagamento do imposto.

Outro argumento pautado foi também afastado de plano pelo autor – a lei ordinária não pode definir fato gerado do ITBI sem violação da reserva da lei complementar – por ser irretorquível que a Lei nº 9.514/1997 não define fato gerador do ITBI, limitando-se a estabelecer o dever de fiscalização para o registrador de imóveis.

Com acerto, o autor busca desqualificar o derradeiro argumento – a propriedade já era do credor e, por isso, inexistindo transmissão não há fato gerador.

Considera, inicialmente, a possibilidade de a propriedade ficar com o credor no caso de dois leilões negativos, o que é, de fato, uma permissão legal e, então, a não incidência do imposto respaldaria evidente contradição do sistema. Não obstante, já vimos anteriormente que, ao contrário do aventado, essa transferência onerosa e definitiva da propriedade plena ao credor em pagamento da dívida após o insucesso na oferta pública configura o fato gerador do imposto definido no inciso I do art. 156 da Constituição e se encontra fora do campo da não incidência, consequentemente é devido o pagamento do ITBI.

Prosseguindo, sustenta ser o “escopo de garantia” a única e exclusiva razão para a não incidência do ITBI na contratação para concluir que, ‘a constituição da alienação fiduciária cria apenas um patrimônio separado, afetado a garantir o pagamento da dívida, e o credor passa a ser fiduciário, e não pleno proprietário. É a consolidação que põe fim a tal escopo, tornando efetiva a transferência da propriedade, não mais fiduciária. O que antes era um direito real de garantia, com a consolidação deixa de sê-lo. Daí a incidência do tributo’.Peço vênia para, com o devido respeito, discordar de algumas considerações trazidas pelo i. advogado, inclusive do juízo conclusivo sobre não haver razão jurídica que fundamente a inexigibilidade da incidência do ITBI na hipótese tratada e apresentar a matéria sob outra perspectiva.

Apesar da premissa lógica, parece evidente que o escopo de garantia se finda com a liquidação da dívida assegurada e não com a consolidação da propriedade que, na estrutura criada para a garantia fiduciária, conforma um procedimento destinado a possibilitar a realização do ativo e a liquidação da dívida, estabelecendo – vale repetir – um domínio limitado e cerceado, mas ainda em caráter assecuratório, com os direitos inerentes à propriedade tolhidos e circunscritos, de modo que o aludido patrimônio separado, a garantir o pagamento da dívida ainda vigerá após a consolidação – mantendo intacto o desígnio de direito real de garantia para a garantia do crédito financeiro – não se embaralhando com o patrimônio imobiliário do credor proprietário.

Resta límpido que a consolidação da propriedade exprime o exercício do direito real de garantia, portanto, ainda sob a proteção da norma constitucional de imunidade e que não desfaz a vocação assecuratória da propriedade fiduciária que permanecerá íntegra até a conversão do bem em recursos de maior liquidez, apropriados ao pagamento da dívida garantida.

Finalmente, para amparar a incidência tributária, o autor aventa a possibilidade de estímulo a fraude, mediante simulação da alienação fiduciária para que, em conluio, possam os contratantes furtar-se ao recolhimento do imposto. Cumpre salientar que a possibilidade de fraude ou simulação não é razão que justifique a cobrança de impostos. Ademais trata-se, a nosso ver, de fraude impossível na alienação fiduciária. Como já visto, na resolução contratual pelo pagamento haverá o cancelamento da propriedade fiduciária, sem a incidência do imposto de transmissão. Na resolução contratual pela inadimplência, após a consolidação o bem será levado a leilão e vendido pela melhor oferta ou no caso de ausência ou insuficiência das ofertas, a propriedade plena do imóvel será transferida definitivamente ao credor e, em qualquer dessas hipóteses, com a incidência e correspondente recolhimento do ITBI.

A violação da imunidade conferida pelo inciso II do art. 156 da Constituição Federal faz inconstitucional a exigência de pagamento do imposto na consolidação da propriedade e transforma em letra morta a exigência legal de comprovação do recolhimento como requisito para sua averbação pelo registro de imóveis.

A passividade com que o “contribuinte” enfrenta a imposição ilegal dessas exigências se explica pela imediata agregação das despesas e encargos à dívida originária para compor o valor mínimo de venda do imóvel em leilão público, proporcionando o ressarcimento integral ao fiduciário do valor recolhido, assim como, na correspondente redução do quantum a ser restituído ao fiduciante quando apurado excedente na venda.

Para tanto dispõe a lei que, frustrado o primeiro leilão seja realizado o segundo para a venda do imóvel por, no mínimo, valor igual ao da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais11. O mesmo critério é repetido no § 2º-B do art. 27 que acresce expressamente ao preço do imóvel para o exercício do direito de preferência pelo fiduciante "os valores correspondentes ao imposto sobre transmissão inter vivos e ao laudêmio, se for o caso, pagos para efeito da consolidação da propriedade fiduciária no patrimônio do credor fiduciário..."12br>
Convém registrar, neste ponto, que respeitados os procedimentos registrais da consolidação da propriedade da forma como estão estabelecidos, observada a inconstitucional exigência de comprovação de pagamento do imposto de transmissão expressa no parágrafo 7º do artigo 26, haverá ilegal e despropositada bitributação onerando indevidamente o fiduciante.

3. Do acima exposto é possível extrair e oferecer ao debate as seguintes conclusões:

(a) A não incidência inicial do imposto sobre a transmissão de bem imóvel na alienação fiduciária em garantia, deriva da imunidade expressa no art. 156, II da Constituição Federal e repetida no art. 35, II do Código Tributário Nacional;

(b) Não haverá incidência do imposto quando da resolução da propriedade fiduciária pelo pagamento integral da dívida e consequente cancelamento do registro do direito real de garantia que se fará com a apresentação do termo de quitação fornecido pelo fiduciário ao oficial do Registro de Imóveis;

(c) Não haverá incidência do imposto de transmissão da propriedade na consolidação da propriedade pelo inadimplemento contratual, nos termos do art. 26 da lei de regência, visto que a transmissão do domínio é condicionada e limitada, ainda em caráter de garantia, estando vedada a apropriação do bem pelo credor que estará obrigado a alienar o imóvel em leilão público e a entregar ao fiduciante o valor que sobejar ao crédito, configurando mero instrumento de facilitação da prestação assecuratória;

(d) A consolidação da propriedade em nome do credor exprime o exercício do direito real de garantia estando portanto, ainda sob a proteção da norma constitucional de imunidade.

(e) É inconstitucional a exigência de apresentação de comprovante de pagamento do imposto de transmissão da propriedade na consolidação da propriedade realizada como meio para a alienação do imóvel e satisfação da dívida garantida e viola a imunidade conferida pelo incido II do art. 156 da Constituição Federal;

(e) Configurará hipótese de incidência do imposto e fato gerador da obrigação tributária a ocorrência de qualquer uma das situações explicitamente previstas na Lei nº 9.514/1997, das quais decorram a transmissão efetiva da propriedade, (i) na dação em pagamento; (ii) na transmissão da propriedade ao arrematante do imóvel em leilão; (iii) na efetiva transmissão da propriedade ao fiduciário desobrigada da alienação forçada, quando ratificado o insucesso da venda em leilão.


[*] Mauro Antônio Rocha é advogado graduado pela Faculdade de Direito da USP, com pós-graduação em Direito Imobiliário e em Direito Notarial e Registral, com diversos cursos de extensão e aperfeiçoamento em Direito Imobiliário, Urbanístico, Notarial, Tributário, do Consumidor, entre outros. Vice-Presidente da Comissão de Direito Notarial e Registros Públicos da OAB/SP na gestão 2017/2018. Membro Fundador da Academia Brasileira de Direito Registral Imobiliário – ABDRI e Vice-Presidente da Academia de Direito Notarial e Registral - AD NOTARE. Palestrante e instrutor e professor. Coordenador de Contencioso Jurídico da Caixa Econômica Federal - CEF. Autor do livro "Alienação Fiduciária de Bem Imóvel - da supergarantia do crédito imobiliário ao big mac dos negócios financeiros".


Notas

1 Lei nº 9.514/1997. Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel.
2 Lei nº 9.514/1997. Art. 23. Constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título.
3 Código Civil. Art. 1367. A propriedade fiduciária em garantia de bens móveis ou imóveis sujeita-se às disposições do Capítulo I do Título X do Livro III da Parte Especial deste Código e, no que for específico, à legislação especial pertinente, não se equiparando, para quaisquer efeitos, à propriedade plena de que trata o art. 1.231.
4 Código Civil. Art. 1368-B. A alienação fiduciária em garantia de bem móvel ou imóvel confere direito real de aquisição ao fiduciante, seu cessionário ou sucessor.
5 Constituição Federal. Art.156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: [...] II - transmissão "intervivos", a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;
6 Código Tributário Nacional, Art. 35. O imposto, de competência dos Estados, sobre a transmissão de bens imóveis e de direitos a eles relativos tem como fato gerador: [...] II - a transmissão, a qualquer título, de direitos reais sobre imóveis, exceto os direitos reais de garantia;
7 Lei nº 9.514/1997. Art. 28. [...] § 8o O fiduciante pode, com a anuência do fiduciário, dar seu direito eventual ao imóvel em pagamento da dívida, dispensados os procedimentos previstos no art. 27.
8 Lei nº 9.514/1997. Art. 27. Uma vez consolidada a propriedade em seu nome, o fiduciário, no prazo de trinta dias, contados da data do registro de que trata o § 7º do artigo anterior, promoverá público leilão para a alienação do imóvel
9 Lei nº 9.514/1997. Art. 25. Com o pagamento da dívida e seus encargos, resolve-se, nos termos deste artigo, a propriedade fiduciária do imóvel. 10 Abelha, André. Alienação Fiduciária e ITBI: a volta de quem não foi.
https://www.migalhas.com.br/depeso/289373/alienacao-fiduciaria-e-itbi--a-volta-de-quem- nao-foi.
11 Lei nº 9.514/1997. Art. 27, § 2º No segundo leilão, será aceito o maior lance oferecido, desde que igual ou superior ao valor da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais
12 Lei nº 9.514/1997. Art. 27, § 2o-B. Após a averbação da consolidação da propriedade fiduciária no patrimônio do credor fiduciário e até a data da realização do segundo leilão, é assegurado ao devedor fiduciante o direito de preferência para adquirir o imóvel por preço correspondente ao valor da dívida, somado aos encargos e despesas de que trata o § 2o deste artigo, aos valores correspondentes ao imposto sobre transmissão inter vivos e ao laudêmio, se for o caso, pagos para efeito de consolidação da propriedade fiduciária no patrimônio do credor fiduciário, e às despesas inerentes ao procedimento de cobrança e leilão, incumbindo, também, ao devedor fiduciante o pagamento dos encargos tributários e despesas exigíveis para a nova aquisição do imóvel, de que trata este parágrafo, inclusive custas e emolumentos.

Publicado originalmente em 15/02/2023 no MIgalhas