domingo, 3 de dezembro de 2017

A ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL E SUAS EXTRAVAGÂNCIAS

Mauro Antônio Rocha[1]

O instituto da alienação fiduciária de bem imóvel em garantia chega ao final do ano da graça de 2018 retalhado e desfigurado pelas alterações introduzidas na Lei nº 9.514/1997 que, no geral, além de ressaltar os defeitos conhecidos e descortinar alguns outros que ainda não haviam sido inferidos, deixaram lacunas suficientes para desorientar os especialistas, minar a segurança jurídica e turbinar a exposição da garantia ao crivo e às interpretações judiciais.

Não bastasse isso, procedimentos anômalos de contratação e execução da garantia fiduciária foram inseridos em leis extravagantes, especialmente pela Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017, que introduziu dispositivos específicos na Lei nº 11.977, de 07 de julho de 2009, com o intuito de adequar o instituto às operações imobiliárias no âmbito do Programa Minha Casa, Minha Vida realizadas com recursos do Fundo de Arrendamento Residencial – FAR e pela Lei nº 13.476, de 28 de agosto de 2017, que, ao tratar das garantias constituídas em contrato de abertura de limite de crédito e operações dele derivadas, alterou radicalmente os contornos originais da garantia fiduciária imóvel.

Vencimento antecipado da dívida

No primeiro caso, o artigo 66 da Lei nº 13.465/ 2017 – resultante da conversão da Medida Provisória nº 759/2016 – acrescentou os artigos 7º A, B e C à Lei nº 11.977/2009 para o fim de:

(I) acarretar o vencimento antecipado da dívida decorrente de compra e venda com cláusula de alienação fiduciária em garantia firmado, no âmbito do PMCMV, com recursos do Fundo de Arrendamento Residencial – FAR, na hipótese de atraso superior a noventa dias no pagamento dos encargos contratuais e legais, inclusive tributos e contribuições condominiais que recaírem sobre o imóvel;

(II) vencida antecipadamente a dívida, intimar o devedor – por intermédio do oficial de registro de imóveis competente – para satisfazer no prazo de 15 dias previsto no § 1o do art. 26 da Lei no 9.514/97, a integralidade da dívida, compreendendo a devolução da subvenção recebida, devidamente corrigida, com a resolução automática e de pleno direito do contrato e averbação da consolidação da propriedade em nome do FAR após o decurso do prazo acima sem o pagamento da dívida.

Os procedimentos acima expostos são específicos, divergentes do rito adotado pela lei e, a rigor, excluem a possibilidade de o devedor purgar a mora para o fim de convalescer o contrato, revogando – ao menos para a operação tratada – o disposto nos parágrafos primeiro e quinto do artigo 26 da Lei nº 9.514/1977, que preveem a intimação do devedor para “satisfazer, no prazo de quinze dias, a prestação vencida e as que se vencerem até a data do pagamento[...]”, após o que “convalescerá o contrato de alienação fiduciária”.

Condomínios, loteamentos - intimação ficta prescinde a pessoal?

Para além disso, a redação do § 6º do artigo 7º C contém uma particularidade que distorce e inova a lei processual vigente, ao autorizar que “nos condomínios edilícios ou outras espécies de conjuntos imobiliários com controle de acesso” a intimação ao devedor fiduciante para o pagamento da dívida seja feita diretamente ao “funcionário da portaria responsável pelo recebimento da correspondência” sugerindo, numa interpretação sistemática do artigo em questão, que a intimação ficta prescinde da tentativa prévia de intimação pessoal ou da suspeita de ocultação do devedor.

Sem a pretensão de discutir o mérito das alterações aludidas, é notável que a permissão legal de intimação do funcionário da portaria responsável pelo recebimento da correspondência nos condomínios ou loteamentos de acesso controlado requer – nos termos do artigo 252 e seu parágrafo, do Código de Processo Civil – ao menos duas tentativas de intimação pessoal e a suspeita razoável e motivada de ocultação do devedor e se perfaz com a intimação de que “voltará a fim de efetuar a citação, na hora que designar”. No mesmo sentido, o § 3o B do art. 26 da Lei 9.514/2017, adota o procedimento da lei processual para admitir que, naquelas mesmas condições, o agente notificador intime o funcionário da portaria de que “no dia útil imediato, retornará ao imóvel, a fim de efetuar a intimação, na hora que designar [...]”, conforme previsto no § 3o A anterior.

Crédito rotativo e a garantia “guarda-chuva”

No segundo caso – operação de abertura de crédito rotativo – dispõe o artigo 7º da Lei nº 13.476/2017 que, no caso de alienação fiduciária de bem imóvel, serão inaplicáveis, naquilo que nos interessa, os incisos I, II e III do caput do art. 24 da Lei nº 9.514/1997, significando que nos contratos relativos às operações tratadas não se informará o valor do principal da dívida, bem como o prazo, as condições de reposição, taxa de juros e encargos incidentes – requisitos obrigatórios para os demais contratos que adotem a garantia fiduciária.

De outro lado, a lei requer a inclusão de cláusula contratual de “previsão de que o inadimplemento de qualquer uma das operações faculta ao credor, independentemente de aviso ou interpelação judicial, considerar vencida antecipadamente as demais operações derivadas, tornando-se exigível a totalidade da dívida para todos os efeitos legais”, excluindo, também aqui, a possibilidade de purgação da mora para o fim de convalescer o contrato, desautorizando o disposto nos parágrafos primeiro e quinto do artigo 26 da Lei nº 9.514/1977.

Finalmente, o artigo 9º da referida Lei nº 13.476/2017 dispõe que são inaplicáveis os parágrafos 5º e 6º do artigo 27 da Lei nº 9.514/1997, que regem a extinção da dívida e a prestação de contas decorrentes da realização do bem objeto da garantia.

De acordo com os dispositivos expressamente inaplicáveis, nos contratos de alienação fiduciária de bem imóvel, após a consolidação da propriedade por inadimplemento de obrigação, o bem objeto da garantia é levado a leilão e quando, no segundo leilão, não se apurar lanço igual ou superior ao montante do débito, “considerar-se-á extinta a dívida e exonerado o credor da obrigação de que trata o § 4º ”, isto é, exonerado da obrigação de prestar contas e entregar ao devedor a importância obtida na venda forçada do bem que sobejar ao valor da dívida, dando quitação ao devedor.

Dessa forma, dispõe o referido artigo 9º, “se, após a excussão das garantias constituídas no instrumento de abertura de limite de crédito, o produto resultante não bastar para quitação da dívida decorrente das operações financeiras derivadas, acrescida das despesas de cobrança, judicial e extrajudicial, o tomador e os prestadores de garantia pessoal continuarão obrigados pelo saldo devedor remanescente”.

Mal elaborado, o texto legal denota ao menos dois problemas praticamente insolúveis para a aplicação da norma: (a) de um lado, não informa em que situação poderá despontar tal hipótese uma vez que, na conformidade dos procedimentos vigentes, especialmente do § 2o do art. 27 da Lei nº 9.514/1997 – não alterado pela lei – o bem imóvel somente será arrematado por lanço não inferior ao montante total e ajustado da dívida ou, não havendo oferta que alcance o valor mínimo legalmente estipulado o credor assumirá a propriedade plena e restará exonerado de prestar contas de uma eventual e futura alienação do bem, não havendo critérios jurídicos conhecidos para a imputação de valor ao bem incorporado ao patrimônio do credor; e (b) a inaplicabilidade do § 5º do artigo 27 da lei de regência implica, por consequência, não só na manutenção da dívida e obrigação do devedor pelo pagamento do saldo remanescente mas, também, na conservação da obrigação do credor de prestar contas e entregar ao devedor o que sobejar – que remanescerá até a venda do bem objeto da garantia – evento para o qual a lei não estabelece prazo, nem condições, inviabilizando a extinção do contrato.

Ao que parece, 2019 marcará o início de um longo período de embates entre credores fiduciários e devedores fiduciantes e estas questões – entre outras muitas que emergirão da aplicação efetiva dessas mutações legais – serão submetidas ao Poder Judiciário, com consequências imprevisíveis para o instituto da alienação fiduciária de bem imóvel em garantia e para a manutenção dos negócios financeiros.

Agora é aguardar para ver.

[1] O autor é advogado graduado pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduado em Direito Imobiliário e Direito Registral e Notarial. Professor, palestrante e Coordenador Jurídico de Contratos Imobiliários da Caixa Econômica Federal – CEF.

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

VINTE ANOS DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL.



Da supergarantia do crédito imobiliário ao Big Mac do mercado financeiro Mauro Antônio Rocha[1]
Dois hambúrgueres, alface, queijo e molho especial, cebola, picles, no pão com gergelim. É o Big Mac.[2]
[ I ] Quando se instalou no Brasil, a maior rede internacional de restaurantes fast food concedia benefícios e descontos ao consumidor que, ao efetuar o pedido, cantasse ou declamasse a relação de ingredientes de seu principal atrativo, o Big Mac. A estratégia da marca buscava habituar seus novos clientes à imutável receita adotada para a montagem do sanduíche, com vistas a (1) impedir a desfiguração do produto desestimulando pedidos de exclusão ou inclusão de ingredientes; (2) preservar seu cultuado sistema de produção em larga escala e replicar a propalada capacidade de finalizar qualquer demanda em menos de um minuto; e (3) provocar no consumidor uma sensação psicológica de novidade suficiente para fixar uma marca – Big Mac – capaz de distinguir o seu hambúrguer de outros hambúrgueres em tudo semelhantes e vendidos em qualquer lanchonete de esquina. A muito bem-sucedida artimanha publicitária, fez do Big Mac o sanduíche mais vendido no país e garantiu a integridade do seu processo original de produção e montagem. Aos poucos, no entanto, o restaurante em questão abriu mão dos escrúpulos e resistências para admitir que seus comensais optassem por não enfrentar o detestável pepino em conserva, dispensar a cebola, e, no limite, deglutir apenas o depenado “especial carne e queijo”, versão fashion do tradicional e popular “x (cheese) - burger”. Porém, ainda que tivesse consentido com as exclusões, o todo poderoso McDonald’s impediu definitivamente a inclusão de qualquer outro componente capaz de subverter a forma ou o conteúdo internacionalmente reconhecido do sanduíche e aos descontentes ofereceu outros produtos com marcas e receitas próprias. O case da introdução do Big Mac no mercado nacional me vem à mente no âmbito do exame crítico das recentes alterações nos procedimentos de contratação e execução da garantia fiduciária, inseridas na lei original por meio de medidas provisórias de legalidade discutível, com textos mal urdidos e elaborados de afogadilho, tanto quanto das insólitas manifestações de júbilo perpetradas por advogados especializados e entidades representativas setoriais. [ II ]
É a alienação fiduciária o negócio jurídico pelo qual o devedor transfere ao credor, com o escopo de garantia, a propriedade resolúvel de coisa imóvel até o pagamento da dívida. Vencida a dívida e não paga, consolidar-se-á a propriedade em nome do credor e será o imóvel alienado em leilão público.
A alienação fiduciária de bem imóvel foi introduzida pela Lei nº 9.514/1997 – sob o legítimo patrocínio das entidades representativas das instituições de crédito imobiliário – para garantir o retorno de investimentos previstos para o Sistema de Financiamento Imobiliário – SFI, instrumento concebido com a intenção de propiciar a retomada dos negócios pela indústria da construção civil e mercado de crédito imobiliário, notadamente negócios de incorporação de empreendimentos residenciais e comerciais que se encontravam paralisados por conta – principalmente – da insegurança jurídica decorrente do declínio e descrédito da hipoteca. Sua receita – depurada em meses de estudos, exaustivas rodadas de debates e sistemático aprimoramento – articulava uma supergarantia[3] – assim definida por permitir ao credor assumir a propriedade da coisa para assegurar-se do pagamento da dívida, com características de garantia ideal[4] – por ser de constituição simples e custo reduzido e de caráter satisfativo, é dizer, garantia pronta e suficiente para proporcionar o retorno do crédito concedido, ainda em caso de inadimplemento contratual do devedor, pela instauração de execução extrajudicial, célere e simplificada que se completa com a venda do objeto da garantia em leilão público, alocando-se o valor apurado ao pagamento da dívida e o montante que sobejar, se houver, ao devedor. Para além disso, o produto foi sublimado com a autonomia plena atribuída ao credor para examinar e avaliar previamente o bem oferecido em garantia e para estabelecer, unilateralmente com base na capacidade financeira do tomador – sem guardar correlação com o valor de avaliação do bem – o limite de crédito conferido.

terça-feira, 28 de novembro de 2017

3º ENCONTRO TÉCNICO DA ADVOCEF, EM SÃO PAULO



Participação na mesa de debates, juntamente com os Drs. Álvaro Sérgio Weiler Júnior (Presidente da ADVOCEF) e Sebastião Barza, com excelente palestra do Dr. Melhim Namem Chalhub sobre "Temas Controversos em Alienação Fiduciária", no 3º Encontro Técnico da ADVOCEF no Renaissance São Paulo Hotel, em 28 de novembro de 2017.