segunda-feira, 25 de junho de 2007

Direito urbanístico. Breves considerações. (I)

SOBRE A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E DA CIDADE

O principal aspecto de política urbana na Constituição Federal de 1988 é a quebra do paradigma civilista de defesa da propriedade como direito individual inatingível, que retirou da propriedade privada seu caráter absoluto, vigente desde sempre e amparado pelo Código Civil de 1916.
A introdução dos institutos da função social da propriedade e da cidade alterou esse tratamento civilista, garantindo o direito à propriedade privada, passível, porém, da intervenção do Poder Público sempre que esse direito afrontar as finalidades de interesse geral às quais precisa se conformar.
Decorrem dessa alteração paradigmática os demais aspectos introduzidos pela Constituição, entre outros direitos coletivos, tais como o Direito à Regularização Fundiária, o Direito ao Planejamento Urbano e o Direito à Gestão Democrática da Cidade.
Os aspectos relativos ao pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade e da cidade, bem como os de garantia do bem-estar dos cidadãos, que decorre do planejamento e da gestão democrática da cidade, podem ser encontrados no artigo 182 e seus parágrafos da Carta.
Para a garantia e o atendimento desses direitos coletivos, exige o texto constitucional a aprovação de Plano Diretor para as cidades com mais de vinte mil habitantes e estabelece instrumentos de imposição para o cumprimento das funções sociais, tais como as desapropriações com prévia e justa indenização em dinheiro ou, ainda, com pagamento mediante títulos da dívida pública e prazo de resgate de até dez anos, e a exigência de adequado aproveitamento do solo urbano pelo proprietário, sob pena de parcelamento ou edificação compulsórios ou de aplicação de imposto predial e territorial progressivo.
O fundamento do Direito à Regularização Fundiária é encontrado no artigo 183 e parágrafos, que reconhece a o direito à aquisição do domínio de área urbana, nas condições estipuladas, por aquele que a detenha por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, para sua moradia ou de sua família.
A Constituição do Estado de São Paulo recepcionou os institutos acima ressaltados, estabelecendo - nos artigos 180 a 183 - Capítulo II - Do Desenvolvimento Urbano – que as diretrizes e normas estaduais e municipais relativas ao desenvolvimento urbano assegurarão o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantia do bem-estar de seus habitantes, bem como a participação das respectivas entidades comunitárias no estudo, encaminhamento e solução dos problemas, planos, programas e projetos que lhes sejam concernentes; a preservação, proteção e recuperação do meio ambiente urbano e cultural e a observância das normas urbanísticas, de segurança, higiene e qualidade de vida, entre outros.
Na Cidade de São Paulo a política urbana está regulada pelo capítulo I (Da Política Urbana - artigos 148 a 159) da Lei Orgânica do Município, que dispõe sobre o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, propiciar a realização da função social da propriedade e garantir o bem-estar de seus habitantes, procurando assegurar o uso socialmente justo e ecologicamente equilibrado de seu território; o acesso de todos os seus cidadãos às condições adequadas de moradia, transporte público, saneamento básico, infra-estrutura viária, saúde, educação, cultura, esporte e lazer e às oportunidades econômicas existentes no Município; a segurança e a proteção do patrimônio paisagístico, arquitetônico, cultural e histórico; a preservação, a proteção e a recuperação do meio ambiente; a qualidade estética e referencial da paisagem natural e agregada pela ação humana.
Além da Lei Orgânica, a política urbana é regulada também pelo Plano Diretor (aprovado por lei específica), com 308 artigos, que no seu Titulo III especificamente do Plano Urbanístico Ambiental, dividido em três capítulos: dos elementos estruturados e integradores, do uso e ocupação do solo e dos instrumentos de gestão urbana e ambiental, que é o “instrumento global e estratégico da política de desenvolvimento urbano e de orientação de todos os agentes públicos e privados que atuam na cidade”, abrange a totalidade do território e define as diretrizes para o uso do solo e para os sistemas de circulação, condicionados às potencialidades do meio físico e ao interesse social, cultural e ambiental.

DO DIREITO À REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA

Até a promulgação da Constituição Federal de 1988 não se vislumbrava um direito, individual ou coletivo à regularização fundiária dos assentamentos informais formados através de ocupação ou invasão.
Naquele período vigoraram orientações urbanísticas que privilegiavam, para a regularização urbanística e social das áreas ocupadas, a remoção das comunidades para outros locais, em geral inadequados ou em condições urbanísticas ainda mais precárias que as existentes.
Com o advento da Constituição atual a doutrina urbanística passou a desenvolver as bases do direito à regularização fundiária, fundado no artigo 183 do texto constitucional. O Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257, promulgada em 2.001, forneceu as bases para o desenvolvimento desse direito a partir, principalmente, da aplicação dos institutos da usucapião especial de imóvel urbano e da concessão de uso especial para fins de moradia, entre outros, diretamente relacionados com a regulamentação daquele artigo da Constituição Federal.
Complementa essa evolução legislativa a Medida Provisória nº 2.220/2001 que regulou normativamente o instituto da concessão de uso especial para fins de moradia, cujo capítulo havia sido vetado pelo Presidente da República sob a alegação de imprecisões do texto legal, com riscos à aplicação e contrariando interesse público.
Atualmente, as orientações urbanísticas para a regularização fundiária dessas áreas pregam o respeito e reconhecimento formal dos direitos subjetivos dos assentados, constituídos durante o tempo de assentamento, especialmente, do direito coletivo à regularização, garantido pelos citados institutos de Direito Urbanísticos, se dá não só através da regularização jurídica do título dominial, mas, também, através de intervenções urbanísticas e sociais nesses assentamentos, sem a remoção dos assentados e respeitadas as características da ocupação original.
Os Ofícios de Registro de Imóveis tem papel fundamental no processo de regularização jurídica dos assentamentos informais. Hoje, reconhecem os registradores, o registro extrapola sua função de determinação jurídica da propriedade para cumprir com a mesma importância, funções econômicas e sociais e, para o cumprimento destas últimas, cumpre facilitar os procedimentos jurídicos e burocráticos para o atingimento do objetivo final de atendimento dos das comunidades assentadas.
Na Capital de São Paulo a efetividade da aplicação da lei para a solução dos problemas fundiários esbarra em graves limitações territoriais e financeiras, uma vez que, além dos assentamentos informais propriamente ditos, favelas, invasões e ocupações de áreas de manancial, o município enfrenta, também, um grande número de loteamentos irregulares de áreas privadas, cujas obras de saneamento básico foram sonegadas pelos loteadores e que requerem urgente intervenção pública para a regularização jurídica, social e urbanística.

DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO AMBIENTAL

A regularização dos assentamentos consolidados e localizados em área de preservação ambiental deve ser encarada como o reconhecimento de que a ocupação decorre do exercício legítimo do direito à moradia e do respeito aos direitos constitucionais assegurados pelos artigos 6º e 183 da Constituição Federal de 1988.
Com efeito, o art. 6º da Constituição, com a redação da Emenda Constitucional nº 26 de 2000, destaca, entre os direitos sociais, o direito à moradia, que, de forma indireta, já se encontrava garantido pelo inciso IV do art. 7º, ao determinar que o salário-mínimo deve atender às necessidades básicas do trabalhador, dentre elas a necessidade de moradia.
Atualmente, o direito urbanístico não admite a solução simples da remoção dos assentados, ainda que essa remoção possa ser justificada pela possibilidade de preservação ou recuperação da área degradada e que se complete com o reassentamento dos ocupantes em outras áreas, pugnando pela regularização jurídica, social, urbanística e ambiental da área ocupada, mediante a intervenção e investimento direto do Poder Público, respeitadas as características originais da ocupação.
Evidentemente, a invasão ou ocupação de área definida como de preservação ambiental, recente e ainda não consolidada, poderá ser tratada de forma diversa, justificando-se aí a remoção dos ocupantes e a recuperação da degradação provocada, sempre que necessário para a defesa e preservação ambiental.
Nesse sentido, Augusto Lio Horta, em ‘Duas ou três palavras sobre Constituição’, informa que, do ponto de vista da aplicação do direito ao meio ambiente “o interprete e aplicador da norma terão que considerar primordialmente todos os direitos fundamentais assegurados ao longo da história. Assim, ainda que o meio ambiente seja a condição de existência da vida neste planeta, a liberdade, a igualdade, a propriedade, o pleno emprego, o próprio desenvolvimento econômico, entre outros, não se submetem à priori à defesa ambiental.” E, sendo a moradia um direito social assegurado constitucionalmente e integrante dos direitos fundamentais à propriedade e ao desenvolvimento social e econômico da pessoa, este não se submete automaticamente ao direito ao meio ambiente e, portanto, não se justifica a resistência de setores ambientalistas à noção de que os moradores de assentamentos informais devam ter sua situação regularizada nas próprias áreas ocupadas, inclusive com a outorga dos títulos de propriedade correspondentes. inclusive ocupantes.