terça-feira, 12 de novembro de 2024

A casa da mãe joana legislativa – mistérios da lei 9.514/1997

Mauro Antônio Rocha (*)




Para o desconforto do eminente Professor Flávio Tartuce, o desleixado legislador – ao incluir no texto legal o termo fiduciante – ‘lincou’ o artigo de lei do código civil de 1916 ao código civil vigente.







1. No final de 2023 publiquei artigo no boletim Migalhas¹ – com o título ‘O mistério dos arts. 23 e 24 da Lei 9.514/97 (ou a casa da mãe Joana legislativa)’ – apontando algumas óbvias incongruências nas transcrições da predita lei, especificamente quanto à redação vigente dos arts. 23 e 24, que suportaram revogação, inclusão e transformação de parágrafos originados na MP nº 1.162, depois convertida – com emendas e supressões – na Lei nº 14.620, ambas de 2023, publicadas nos portais do Governo Federal (planalto.gov.br/legislação) e da Câmara dos Deputados (camara.leg.br/legislação), repositórios comumente utilizados pelos operadores de direito para consulta e reprodução da legislação nacional. Desde então, o portal do Executivo corrigiu grande parte das impropriedades apontadas; o portal do Legislativo mantém na íntegra o texto contraditado.

2. Há alguns dias, em busca de elementos doutrinários de sustentação à tese que desenvolvia para um parecer sobre a contagem do prazo conferido ao credor fiduciário para a efetiva entrega ao fiduciante da importância sobejante à dívida, obtida em leilão público realizado nos termos da Lei nº 9.514/1997, compulsei o excelente e atualizado Manual de Direito Civil do professor Flávio Tartuce² e deparei-me com o seguinte parágrafo:

“Ainda quanto ao leilão, nos cinco dias que se seguirem à venda do imóvel nesse ato extrajudicial, o credor entregará ao devedor fiduciante a importância que sobejar ou sobrar, nela compreendido o valor da indenização de benfeitorias, depois de deduzidos os valores da dívida, das despesas e dos encargos, o que importar em recíproca quitação. Nessa atual redação do comando, o seu trecho final prevê que não se aplica o disposto na parte final do art. 516 do Código Civil (art. 27, § 4º, da Lei 9.514/1997, na redação da Lei 14.711/2023). Não incide, assim, a regra relativa à preempção ou prelação convencional, segundo a qual direito de preempção caducará, se a coisa for imóvel, não se exercendo nos sessenta dias subsequentes à data em que o comprador tiver notificado o vendedor. Causa estranheza a inclusão dessa previsão, uma vez que a preempção ou preferência convencional depende de previsão no instrumento negocial.”

Depois de alguns minutos de meditação, sem conseguir integrar o exercício da preempção e sua caducidade no assunto abordado, aventei a possibilidade de defeito na impressão do tratado (uma espécie de maldição do referido dispositivo legal que, na segunda edição do meu livro sobre a alienação fiduciária, recentemente lançada³, desapareceu por completo do texto final, sem qualquer explicação) e resolvi conferir a matéria em outra obra do nosso i. jurista – Direito Civil: Direito das Coisas 4 – e lá encontrei o mesmo parágrafo, pleno, inclusive quanto à ‘estranheza’ do autor da alentada obra.

Buscando socorro, então, no texto oficial e integral da Lei nº 14.711/2023, reli cuidadosamente o supramencionado parágrafo legal que compõe o art. 2º da lei, nos seguintes termos:
Art. 2º A Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997, passa a vigorar com as seguintes alterações:

[...] “Art. 27. Consolidada a propriedade em seu nome, o fiduciário promoverá leilão público para a alienação do imóvel, no prazo de 60 (sessenta) dias, contado da data do registro de que trata o § 7º do art. 26 desta Lei. [...] § 4º Nos 5 (cinco) dias que se seguirem à venda do imóvel no leilão, o credor entregará ao fiduciante a importância que sobejar, nela compreendido o valor da indenização de benfeitorias, depois de deduzidos os valores da dívida, das despesas e dos encargos de que trata o § 3º deste artigo, o que importará em recíproca quitação, hipótese em que não se aplica o disposto na parte final do art. 516 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).5


3. ‘Lux Venit’. Apreendi de imediato que, para desconforto do eminente professor Flávio Tartuce, o desleixado legislador – que deveria apenas e tão somente especificar que o destinatário do valor sobejado é o fiduciante e não o devedor, como erroneamente indicado na redação original – aproveitou a oportunidade para atualizar a redação ‘lincando’ o artigo de lei do código civil de 1916 ao código civil vigente.

O citado dispositivo vigeu, desde a promulgação da Lei nº 9.514/1997 – anteriormente ao atual código civil – com a seguinte redação:

[..] § 4º Nos cinco dias que se seguirem à venda do imóvel no leilão, o credor entregará ao devedor a importância que sobejar, considerando-se nela compreendido o valor da indenização de benfeitorias, depois de deduzidos os valores da dívida e das despesas e encargos de que tratam os §§ 2º e 3º, fato esse que importará em recíproca quitação, não se aplicando o disposto na parte final do art. 516 do Código Civil. 6

Após a intervenção do estulto legislador passou, inadvertidamente, a vigorar, desde 30 de outubro de 2023, da seguinte forma:

[...] § 4º Nos 5 (cinco) dias que se seguirem à venda do imóvel no leilão, o credor entregará ao fiduciante a importância que sobejar, nela compreendido o valor da indenização de benfeitorias, depois de deduzidos os valores da dívida, das despesas e dos encargos de que trata o § 3º deste artigo, o que importará em recíproca quitação, hipótese em que não se aplica o disposto na parte final do art. 516 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). (Redação dada pela Lei nº 14.711, de 2023) 7


O problema é que o citado artigo 516 do Código Civil revogado em 2002 corresponde ao artigo 1.219 do Código vigente; “o possuidor de boa-fé tem direito à indenização das benfeitorias necessárias e úteis, bem como, quanto às voluptuárias, se não lhe forem pagas, a levantá-las, quando o puder sem detrimento da coisa, e poderá exercer o direito de retenção pelo valor das benfeitorias necessárias e úteis.” 8

Assim, restaria compreensível, por conta da mútua quitação, a ressalva da não aplicabilidade do disposto na parte final do art. 516 do Código Civil de 1916 e repetida no art. 1.219 do Código Civil vigente, que permite ao possuidor de boa-fé exercer o direito de retenção pelo valor das benfeitorias necessárias e úteis.

Um mínimo de cuidados na elaboração e, principalmente, na revisão do texto legislativo final, já distanciada do mormaço dos interesses pessoais e políticos, seria suficiente para evitar erros grosseiros como o relatado, mas, bem diziam os germânicos que “quanto menos as pessoas souberem como são feitas as salsichas e as leis, melhor dormirão à noite”.

4. Pelo exposto, tomo a liberdade de repetir o que escrevi no artigo publicado em dezembro de 2023:

Os desacertos apontados podem parecer desimportantes, mas revelam a incúria e o descaso do legislador no tratamento da norma, resultantes, dentre outros fatores, do desnecessário aproveitamento da urgência das medidas provisórias e da avidez com que representantes das entidades e dos mercados financeiros avançam contra os direitos dos fiduciantes, o que restou claramente evidenciado na redação final da lei 14.711/23, fragilizando o instituto e proporcionando relevantes argumentos para a judicialização de seus procedimentos.

Está na hora da eclosão de um movimento de depuração da lei, para o efetivo aprimoramento do instituto da alienação fiduciária de bem imóvel e para a correção dos desvios e exclusão dos malfeitos na lei 9.514/97, tão importante para a garantia dos negócios jurídicos em geral.



(*) Mauro Antônio Rocha
Advogado graduado pela Faculdade de Direito da USP e pós-graduado em Direito Imobiliário e Direito Notarial e Registral. Presidente da AD NOTARE Academia Nacional de Direito Notarial e Registral para o biênio 2024/2025

NOTAS
1. Publicado originalmente no Boletim Migalhas nº 5.738, de 02 de dezembro de 2023.
2.Tartuce, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 14. ed. Rio de Janeiro: Método, 2024.
Op. cit. p. 1177/1178. 3. Rocha, Mauro Antônio. Alienação fiduciária de bem imóvel: da supergarantia do crédito imobiliário ao big mac dos negócios financeiros. 2. ed. Leme - SP: Mizuno, 2024. p. 715.
4. Tartuce, Flávio. Direito Civil: Direito das coisas. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024.
5. www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14711.htm. Texto vigente e acessado em 10/11/2024.
6. www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9514.htm. Texto acessado em 10/11/2024.
7. www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9514.htm. Texto vigente e acessado em 10/11/2024.
8. www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Texto vigente e acessado em 10/11/2024

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

BC pesquisa a opinião pública para regulamentar "novidades" do marco legal das garantias


Mauro Antônio Rocha [*]




O Banco Central do Brasil que sempre decidiu internamente os contornos de regulamentação da matéria tratada surpreende ao propor pesquisa de opinião pública para atualização da Resolução CMN 4.676/18.





1. Nos próximos dias a lei 14.711/23, que veio a lume com o "presunçoso, e mesmo enganoso"(1) epíteto de 'Marco Legal das Garantias', completará seu primeiro ano com suas principais matérias - a extensão ou recarregamento da garantia fiduciária e a alienação fiduciária de bem imóvel subsequente - ainda vagando como espectro em busca de regulamentação pelos corredores do Banco Central do Brasil, que não parece muito disposto a assumir a paternidade, nem a responsabilidade pelo feto malformado. Proposta de atualização da Resolução CMN 4.676/18 tramita, já por quase seis meses, "num indo e vindo infinito" e sem qualquer avanço visível entre as entidades representativas, as instituições financeiras e o BCB que agora propõe pesquisa de opinião com "a intenção de permitir a participação na elaboração de regras que irão afetar toda a sociedade".(2)

2. A referida resolução descende da Resolução 1.090, de 31/1/86, que - apenas para situar uma linha de tempo que interessa ao presente artigo - pode ser considerada o início de uma sequência de atos normativos divulgados para dispor, dentre outras questões, sobre exigibilidades de direcionamento de percentual dos recursos captados em depósitos de poupança para financiamento de produção e comercialização de imóveis, requisitos para a concessão de crédito imobiliário e garantias admitidas para as operações.

Do distante verão de 1986 até a enfumaçada primavera de 2024 o conteúdo da resolução originária foi alterado dezenas de vezes antes de sua revogação e substituição, em 30/4/83, pela Resolução CMN 1.980 que aprovou o regulamento disciplinar do direcionamento dos recursos captados pelas entidades integrantes do SBPE e as operações de financiamento efetuadas no âmbito do SFH e foi, também, alterada, revogada e substituída por outras normas administrativas, culminando na publicação, em 31/7/18, da referida Resolução CMN 4.676 que, tendo sofrido mais de uma dezena de alterações, resta ainda vigente.

O longo introito é utilizado para demonstrar que, sem prejuízo do procedimento legítimo, democrático e saudável de submissão prévia - para opinamento e revisão pelas entidades representativas e principais instituições financeiras - das propostas de modificação da norma administrativa, nos últimos quarenta anos o Banco Central do Brasil sempre decidiu internamente, em conformidade com as necessidades e objetivos pontuais da política monetária, os contornos de regulação da matéria tratada, razão pela qual é estranhamente surpreendente o apelo à pesquisa de opinião pública, conforme o Edital de Participação Social BCB 105, de 11/9/24, para a regulamentação da matéria e edição de resolução.

3. A pesquisa é composta de quatro propostas com as quais deverá o interessado concordar ou discordar, justificando a opinião, podendo optar pela abstenção.

3.1 A primeira proposta prevê que, na hipótese de um mesmo imóvel servir de garantia a mais de uma operação de crédito, a razão entre a soma dos saldos devedores das operações e o valor de avaliação do imóvel dado em garantia, na data da contratação da nova operação, não poderá ser superior ao limite de cota de financiamento aplicável à operação de crédito predominante (assim entendido como aquela que possui, na data da contratação da nova operação, o maior valor entre o valor nominal da nova operação e o saldo devedor de cada uma das operações já garantidas). Caso não haja limite estabelecido, a referida razão não poderá ser superior ao limite aplicável para a operação que tiver maior saldo, consideradas as operações que tenham limite estabelecido. (Art. 6º da Resolução 4.676, de 2018, com as alterações do § 2º e a inclusão dos §§ 3º e 4º propostos).

A resposta é parcialmente discordante. Em linhas gerais, a proposta repete as disposições contidas nos arts. 9º A e 9º B introduzidos na lei 13.476/17, exceto ao propor que "a razão entre a soma dos saldos devedores das operações e o valor de avaliação do imóvel dado em garantia, na data da contratação da nova operação, não poderá ser superior ao limite de cota de financiamento aplicável à operação", por contrariar frontalmente o § 4º do citado art. 9º B que dispõe expressamente que a extensão da alienação fiduciária não poderá exceder ao prazo final de pagamento e ao valor garantido constantes do título da garantia original.

Parece claro que o valor da garantia constante do título original, de que trata o texto legal, corresponde ao valor indicado no contrato de alienação fiduciária "para efeito de venda em leilão público" e aos "critérios para a respectiva revisão", conforme disposto no inciso VII, do art. 24 da lei 9.514/97.
Sabemos que:
- O texto destacado da lei foi criteriosamente adotado para - no contexto de simplificação da concessão de crédito - desobrigar a avaliação prévia do bem imóvel oferecido em garantia, assim como - e principalmente - isentar o bem de avaliação por ocasião da excussão e oferta para venda em leilão;

- O valor do imóvel indicado na grande massa de contratos de garantia fiduciária firmados, reflete o valor da própria transação, a consulta ao mercado ou a mera estimação de preço;

- Os critérios de revisão raramente são negociados entre as partes, adotando-se, em geral, a revisão por índices de variação monetária ou dos juros e encargos utilizados para a remuneração do valor mutuado.
Dessa forma, a apuração da razão de que trata a norma consultada deverá respeitar o(s) critério(s) indicado(s) originalmente para a revisão do valor do imóvel e a utilização do valor de avaliação, na data da nova operação, somente será admissível se - e quando - constar expressamente dos critérios arrolados.

3.2. A segunda proposta estabelece a obrigatoriedade, nas operações de empréstimos a pessoas naturais garantidos por imóveis residenciais, de contratação de cobertura securitária que preveja, no mínimo, cobertura aos riscos de morte e invalidez permanente do mutuário e de danos físicos ao imóvel. Deverão ser atendidas as condições de oferta, estipulação, contratação e substituição da cobertura previstas nas disposições legais e regulamentares (Resolução 3.811, de 19/11/09, editada pelo Conselho Monetário Nacional) que disciplinam esses aspectos para as operações de financiamento habitacional. (Inclusão do art. 5º-A na Resolução 4.676/18)

A resposta é concordante. Considerando que as coberturas securitárias de MIP e DFI já são obrigatórias, a proposta deve se referir às operações de empréstimos em geral, sem destinação específica, com garantia imobiliária (home equity, por exemplo) e se prestará para assegurar maior segurança jurídica aos contratos.

3.3 A terceira proposta contempla a inclusão de um conjunto de definições a serem utilizadas para fins da Resolução 4.676/18, de modo a propiciar mais precisão e clareza ao ato normativo. (Art. 1º- A proposto para inclusão na Resolução 4.676, de 2018). Os conceitos previstos são os seguintes:
* Operações de crédito imobiliário: As operações de financiamento imobiliário e as operações de crédito que tenham imóveis como a única garantia ou como a garantia de maior valor, exceto as operações que se qualifiquem como crédito rural; e

* Financiamento imobiliário: As operações de crédito destinadas à aquisição, à construção, à produção, à reforma e à ampliação de imóveis residenciais e não residenciais e as destinadas à aquisição de material para construção, ampliação e reforma de imóveis residenciais e não residenciais.
A resposta é concordante face à utilidade das definições para as aplicações práticas da norma.

3.4 A quarta proposta prevê que os sistemas de amortização das operações de crédito com cláusula de atualização do saldo devedor por índice de preços podem incluir componente adicional de amortização voltado a minimizar variações no valor nominal das prestações, não podendo esse componente ser superior ao valor médio do índice de preços utilizado, considerado período equivalente ao do contrato da operação de crédito. (Art. 5º da Resolução 4.676, de 2018, com as alterações do § 2º e a inclusão dos §§ 3º e 4º propostos).

A resposta é discordante em relação ao texto proposto por conta da ausência de transparência em relação aos objetivos buscados. O critério limitador adotado não se mostra suficiente para esclarecer sobre a necessidade, efeitos e abrangência do "componente adicional de amortização" autorizado.

4. Finalmente, é notável o silêncio - na minuta de atualização da resolução e no edital de participação social - acerca da alienação fiduciária de bem imóvel superveniente, denotando os melindres daquela autarquia em relação ao dispositivo legal que introduziu a nova modalidade de "garantia", especialmente quanto à ausência de limites para a contratação, forçando a aceitação de operações que, a rigor, estarão destituídas das garantias exigidas e expostas aos riscos do inadimplemento durante todo o período de suspensão do registro.

5. As considerações acima foram apresentadas em nome da AD NOTARE - Academia Nacional de Direito Notarial e Registral para atendimento ao supra referido edital de pesquisa pública, a título de colaboração para a consecução da atualização da importante e necessária regulamentação das matérias tratadas.

Mauro Antônio Rocha
Advogado especializado em Direito Imobiliário, Notarial, Registral, Crédito e Garantias Imobiliárias.
Presidente da AD NOTARE - Academia Nacional de Direito Notarial e Registral.


NOTAS
(1) Pinto da Silva. Flávio Rocha. As garantias reais no anteprojeto de reforma do Código Civil: lições do anteprojeto do grupo de estudos temático e do Marco Legal de Garantias", Boletim Migalhas, edição de 28/08/2024.
(2) BC lança pesquisa de opinião pública para revisão de norma que trata de hipoteca e alienação fiduciária. https://aprendervalor.bcb.gov.br/detalhenoticia/20310/nota. Acesso em 16/09/2024.

Publicado no Boletim MIGALHAS 5939, de 18/09/2024

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Lei nº 14.711/2023 - De marco legal da garantia a "texto encomendado e de escopo reduzido"


[*] Mauro Antônio Rocha

A partir de agora, além dos já tradicionais "pedante" e "pretensioso" o epíteto 'Marco Legal das Garantias" pode ser acrescido, também, dos adjetivos "presunçoso e enganoso".
E a Lei nº 14.711/2023 deixa de ser um "marco" para ser, apenas, "um texto encomendado, com escopo bastante reduzido".


Quando, em julho de 2022, publiquei no boletim Migalhas um artigo em que debochei do “pedante”_ e “pretensioso epíteto” de Marco Legal das Garantias, atribuído ao então PL 4.188/21 e da ausência de inovações relevantes que limitavam a proposta à reprodução de dispositivos que já integraram a lei 13.476/17 e de alterações legais “que replicam sugestões precedentes, requentadas e reiteradas de refinamento da alienação fiduciária de bem imóvel, provindas de diversas minutas tornadas públicas em meados do ano passado e urdidas nos corredores do Ministério da Economia e das entidades representativas do sistema financeiro”, passei a ser (ainda mais) criticado pelos especialistas patrocinados (alguns bons amigos, inclusive, deixaram de atender meus telefonemas e responder mensagens enviadas).

Um ano depois, o querido Dr. Flávio Rocha Pinto da Silva, nosso maior especialista em garantias da nova geração e um dos principais redatores do projeto de lei trouxe à luz importante artigo (As garantias reais no anteprojeto de reforma do Código Civil: lições do anteprojeto do grupo de estudos temático e do Marco Legal de Garantias”, Boletim Migalhas, de 28/08/2024) onde, em autocitação, afirma:

“Há algo de presunçoso, e mesmo enganoso, na sua denominação de “Marco Legal das Garantias”, apelido de origem política e não doutrinária. Um Marco Legal é algo que refunda um instituto ou uma área do direito, o que jamais foi a pretensão do projeto. Ao contrário, tratou-se de texto encomendado, cujo escopo era bastante reduzido.”

Nenhuma novidade ou surpresa. Causou-me espanto, entretanto, constatar que diversos respeitáveis juristas passaram esse tempo todo iludindo a mídia e conferindo valor em intermináveis entrevistas, palestras e artigos ao "texto encomendado e de escopo reduzido" aprovado, que permanece com suas principais matérias vagando como um espectro pelos corredores do Banco Central do Brasil, que não parece muito disposto a assumir a paternidade, nem a responsabilidade pelo feto malformado.

Acho que o mundo mudou.

Mauro Antônio Rocha
Advogado especializado em Direito Imobiliário, Notarial, Registral, Crédito e Garantia Imobiliárias.
Presidente da AD NOTARE – Academia Nacional de Direito Notarial e Registral.



domingo, 14 de julho de 2024

Notas sobre a 'intimação única' do fiduciante na alienação fiduciária de múltiplos imóveis


[*] Mauro Antônio Rocha
A falta de procedimentos mínimos de controle de informações entre o ofício da intimação e os demais registros torna vulneráveis e juridicamente inseguras as matrículas durante o período intimatório.


1. O incensado marco legal das garantias alterou o art. 26 da lei 9.514/97 com o objetivo de permitir que nos casos de multiplicidade de garantias imobiliárias e de circunscrições registrais, a intimação do devedor inadimplente ou do fiduciante para a purgação da mora seja realizada por qualquer dos ofícios de registro envolvidos, informando a totalidade da dívida e relacionando os imóveis passíveis de consolidação da propriedade, com a seguinte redação:

Art. 26.
[...]

§ 1º-A Na hipótese de haver imóveis localizados em mais de uma circunscrição imobiliária em garantia da mesma dívida, a intimação para purgação da mora poderá ser requerida a qualquer um dos registradores competentes e, uma vez realizada, importa em cumprimento do requisito de intimação em todos os procedimentos de excussão, desde que informe a totalidade da dívida e dos imóveis passíveis de consolidação de propriedade.


Inexplicavelmente, deixou o legislador de assegurar um detalhamento procedimental mínimo e comum destinado ao controle de informações e anotações entre o ofício de registro escolhido pelo credor fiduciário e os demais registros envolvidos, especialmente para assegurar a estrita observância do princípio da publicidade registral, o controle de títulos contraditórios e a advertência sobre a intimação pendente nas certidões de matrícula emitidas por qualquer deles, tornando as matrículas imobiliárias vulneráveis à averbação de penhoras, indisponibilidades, cessão de direitos reais, dentre outras, durante todo o período intimatório em situação de extremada insegurança jurídica das partes e de terceiros interessados.

Cumpre salientar que não foi por excesso de zelo, que a Corregedoria de Justiça do TJ/SP introduziu o item 240 nas Normas de Serviços do Cartório Extrajudicial dispondo que "o requerimento de intimação deverá ser lançado no controle geral de títulos contraditórios, a fim de que, em caso de expedição de certidão da matrícula, seja consignada a existência da prenotação do requerimento".

2. Em nada ajuda a Nota Técnica 2/24 do RIB - Registro de Imóveis do Brasil que "sugere" ao interessado (fiduciário) que, "para que a intimação tenha eficácia", apresente às demais serventias de registro de imóveis certidão conforme quesito expedida pelo ofício responsável pela notificação com as informações do conteúdo da intimação realizada e, ainda "se foi exitosa", nos seguintes termos:.

O interessado estará dispensado de protocolizar o pedido de intimação perante as outras serventias competentes se, em uma delas, formular um pedido de intimação informando a totalidade da dívida, encargos e todos os imóveis passíveis de consolidação.

Pela dinâmica da lei, é conveniente que o credor informe todos os imóveis garantidos na intimação, ainda que pretenda fazer a consolidação, inicialmente, em apenas um imóvel, pois, desta forma, conseguirá aproveitar a intimação prévia para as consolidações sucessivas.

A medida se justifica para evitar surpresas para o devedor, que, ao ser intimado por um documento dirigido a uma determinada serventia, poderia imaginar que a consequência da mora atingiria apenas o bem registrado naquele ofício e levando-o a crer que os demais estariam salvos da execução.

Para que esta intimação tenha eficácia perante as demais, o interessado deverá apresentar uma certidão conforme quesito expedida pela serventia responsável pela intimação. Ela deverá certificar que o requerimento do interessado abarcou a totalidade da dívida, encargos, quais imóveis constaram da intimação como sujeitos à consolidação fiduciária e, ainda, que a referida intimação foi exitosa.


Salvo melhor juízo, a expedição dessa certidão pelo ofício de registro eleito - contendo informação sobre o êxito da intimação realizada - conforme sugestão da nota técnica parcialmente transcrita somente será possível após a efetiva intimação e conclusão do procedimento,

Aliás, essa informação de que a "referida intimação foi exitosa" nos parece absolutamente desnecessária. O que importa para a consecução do procedimento nas demais serventias é a certificação do atendimento do quanto intimado com o pagamento da dívida para o cancelamento da prenotação ou do decurso do prazo legal 'in albis', inaugurando o prazo para a comprovação de pagamento dos tributos devidos pelo fiduciário e consolidação da propriedade.   

Evidentemente, considerado o grau de importância da intimação para a purgação da mora no procedimento extrajudicial de execução na alienação fiduciária de bem imóvel a incumbência de proceder a certificação da prenotação do requerimento de intimação envolvendo imóveis e direitos reais objeto de matrículas sob a responsabilidade de outras serventias deve ser imputada ao ofício de registro escolhido para a empreitada, que zelará pelo controle e manutenção da legalidade dos atos praticados.

Cumpre ressaltar - ainda que nem o legislador nem os técnicos da entidade representativa dos registradores de imóveis tenham mencionado - a situação bastante comum nas transações entre pessoas jurídicas de contratos com múltiplas garantias prestadas por múltiplos fiduciantes (acionistas, sócios, pessoas jurídicas vinculadas), que exigirão a intimação pessoal de cada um dos fiduciantes, sem afastar, entretanto, a possibilidade de abranger duas ou mais garantias prestadas individualmente.

3. Para afastar a apontada insegurança jurídica e a vulnerabilidade registral em relação aos direitos envolvidos - e sem a pretensão de 'ensinar o padre a rezar a missa' - tomo a liberdade de apresentar um rol de procedimentos para a intimação única de múltiplos imóveis com a exigência dos seguintes cuidados:

> o requerimento deve conter, além dos requisitos comuns, informação sobre o ofício de registro dos imóveis, o número da matrícula, o número e data do registro de cada um dos contratos de alienação fiduciária abrangidos pela intimação, cuidando o requerente de comprovar, quando se tratar de contrato específico de garantia, a vinculação da garantia ao contrato principal inadimplido, informações essas que serão transcritas para o instrumento padrão de intimação utilizado pelo ofício de registros;

> concomitantemente à expedição ou postagem da intimação, o Registro de Imóveis encaminhará certidão a cada uma das serventias imobiliárias, preferencialmente por meio eletrônico, diretamente ou através de entidade representativa dos registradores, sobre a instauração do procedimento intimatório, que será prenotado e lançado no controle geral de títulos contraditórios para que seja consignada sua existência no caso de emissão de certidão da matrícula imobiliária;

> na hipótese do recebimento do valor cobrado, o Registro de Imóveis enviará certidão informando sobre a purgação da mora e convalescimento dos contratos de alienação fiduciária, para que cada uma das serventias proceda ao cancelamento dos efeitos da prenotação;

> na outra hipótese - não recebimento do valor cobrado no prazo legal - noticiará o ocorrido a cada uma das serventias, por meio de certidão de transcurso do prazo para purgação da mora, possibilitando que, mediante comprovação do recolhimento dos tributos exigidos legalmente, possa o credor fiduciário requerer a consolidação da propriedade em seu nome;

> obviamente a cobrança dos emolumentos correspondentes devidos pelos interessados, deverão ser formalizados pelas corregedorias gerais dos Tribunais de Justiça dos Estados.

Finalmente, entendemos que os procedimentos acima expostos para conhecimento e apreciação poderão ser adotados mediante provimento da Corregedoria Geral de Justiça ou por simples nota técnica do RIB sem a necessidade de atividade legislativa ordinária.

Publicado no Boletim MIGALHAS 5892, de 13/07/2024

terça-feira, 18 de junho de 2024

Breve nota sobre a celebração do contrato por instrumento particular na alienação fiduciária


[*]Mauro Antônio Rocha


O CNJ tem competência constitucional para alterar a legislação vigente, vedar a celebração de contratos de alienação fiduciária por instrumento particular e o acesso de títulos ao registro imobiliário?




Depois de reconhecer a validade de norma administrativa do TJ/MJ que restringira o registro "dos atos e contratos relativos à alienação fiduciária de bens imóveis e negócios conexos" apenas aos firmados por escritura pública "ou instrumento particular, desde que, neste último caso, seja celebrado por entidade integrante do SFI - Sistema de Financiamento Imobiliário, por Cooperativas de Crédito ou por Administradora de Consórcio de Imóveis" o Conselho Nacional de Justiça decidiu, nos autos do Pedido de Providências 0008242-69.2023.2.00.0000, vedar "a celebração de ato particular, com os efeitos de escritura pública, por qualquer outro agente não integrante do SFI, pois os dispositivos legais acima transcritos, normas específicas e excepcionais não revogaram a regra geral do Direito Privado, consagrada no art. 108 do Código Civil, quanto à essencialidade da escritura pública para validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário-mínimo vigente no país."

Para conferir eficácia à decisão determinou a alteração do Provimento CNJ 149, de 30/8/23 e a adequação dos normativos das corregedorias gerais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, que passarão a vigorar, no prazo de trinta dias, acrescido do disposto no Capítulo VI, do Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ para o Foro Extrajudicial - da seguinte forma:
CAPÍTULO VI
Da alienação fiduciária em garantia sobre imóveis
Seção I do título

Art. 440 - AN. A permissão de que trata o art. 38 da 9.514/97 para a formalização, por instrumento particular, com efeitos de escritura pública, de alienação fiduciária em garantia sobre imóveis e de atos conexos, é restrita a entidades autorizadas a operar no âmbito do Sistema de Financiamento Imobiliário - SFI (art. 2º da lei 9.514/97, incluindo as cooperativas de crédito. Parágrafo único. O disposto neste artigo não exclui outras exceções legais à exigência de escritura pública previstas no art. 108 do Código Civil, como os atos envolvendo; Administradoras de Consórcio de Imóveis (art. 45 da lei 11.795, de 8/10/08); Entidades integrantes do Sistema Financeiro de Habitação (art. 61, § 5º, da lei 4.380, de 21/8/64".
Não se encontrará na decisão comentada razões efetivamente jurídicas que a justifiquem e o argumento nuclear acolhido (toda escritura pública confere segurança jurídica e todo instrumento particular insegurança jurídica) prefigura-se destituído de comprovação fática minimamente aceitável, além de resultar desestruturado pela própria decisão que transfere a "insegurança jurídica" do instrumento particular para a 'qualidade' das partes contratantes:
"A respeito da atribuição de efeitos de escritura pública a instrumento particular, não se pode olvidar a importância e imprescindibilidade da tutela pública em negócios privados para conferir-lhes juridicidade e autenticidade a qual se revela pela presença nesses atos jurídicos, de instituições financeiras integrantes do Sistema de Financiamento Imobiliário."

A verdade é que r. decisão afronta diretamente o espírito da lei e a intenção seguidamente reiterada pelo legislador de conferir aos negócios imobiliários celeridade, simplicidade, constituição descomplicada, custo reduzido e caráter satisfativo.

Nesse sentido, a redação original da lei 9.514/97 admitiu a utilização do instrumento particular nas operações celebradas com pessoa física, afastando - expressamente - a limitação prevista no art. 134, II do CC (art. 108, do código vigente):

Art. 38. Os contratos resultantes da aplicação desta lei, quando celebrados com pessoa física, beneficiária final da operação, poderão ser formalizados por instrumento particular, não se lhe aplicando a norma do art. 134, II, do CC.
Já em 2001, para contornar a interpretação enviesada de alguns autores e a resistência dos registradores de imóveis, a redação do art. 38 da lei foi alterada pela MP 2.223 de forma a arrolar os contratos abrangidos pela exceção legal, inclusive "aqueles constitutivos ou translativos de direitos reais sobre imóveis" e explicitar a não aplicação da regra geral do Código Civil, passando a viger com o seguinte texto:

Art. 38.  Os contratos de compra e venda com financiamento e alienação fiduciária, de mútuo com alienação fiduciária, de arrendamento mercantil, de cessão de crédito com garantia real e, bem assim, quaisquer outros atos e contratos resultantes da aplicação desta lei, mesmo aqueles constitutivos ou translativos de direitos reais sobre imóveis, poderão ser celebrados por instrumento particular, a eles se atribuindo o caráter de escritura pública, para todos os fins de direito, não se lhes aplicando a norma do art. 134, II, do Código Civil.
Os mesmos motivos exigiram duas alterações no referido artigo 38 durante o ano de 2004, para ajustes e atribuição textual aos atos e contratos resultantes da aplicação da lei 9.514 do caráter de escritura pública para todos os fins de direito. A primeira delas, pela lei 10.931, em 2/8/04 e a segunda, pela lei 11.076, de 30/12/04, advindo a redação ainda vigente:

Art. 38. Os atos e contratos referidos nesta Lei ou resultantes da sua aplicação, mesmo aqueles que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis, poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública. 
Se é verdade que a redação imperfeita do vigente do art. 38 suprimiu - de forma atécnica e indevida - a parte que atribuía aos contratos referidos o caráter de escritura pública para todos os fins de direito, não há na evolução da norma em questão, nem se depreende da leitura daqueles dispositivos, qualquer justificativa para o entendimento ou interpretação que permita pressupor que a forma plúrima elegida na origem tenha sido escamoteada pelo legislador ou limitada a instrumentos provindos do mercado financeiro.

É relevante destacar que o CNJ detém competência administrativa para fiscalizar e normatizar o Poder Judiciário e, por via de consequência, fiscalizar os serviços notariais e registrais, que por sua vez, estarão obrigados a cumprir as normas técnicas dali emanadas, de tal forma que. a decorrido o prazo estipulado no provimento minutado que integra a decisão referida, restará vedado o acesso ao registro imobiliário dos instrumentos públicos - ainda que expressamente admitidos pela lei de regência da alienação fiduciária de bem imóvel.

Da mesma forma, é pertinente frisar que falta ao CNJ competência constitucional para alterar a legislação vigente, que a decisão acima transcrita contraria o ainda vigente art. 38 da lei 9.514/97 e que, ao vedar o acesso do cidadão ao registro imobiliário, confronta diretamente direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição Federal.

Finalmente, a decisão merece reparos sendo pertinente ponderar que não cogitou o legislador do art. 38 da lei 9.514 de revogar a regra geral do Direito Privado (art. 108 do Código Civil) e, sim, de estabelecer a exceção prevista em lei e admitida pelo dispositivo legal. Ademais, conforme já aclarado, a norma administrativa provinda do CNJ pode vedar ao agente público que proceda ao registro dos títulos apresentados em desacordo com o decidido, mas não deveria - em respeito ao princípio constitucional da legalidade - obstar "a celebração de ato particular, com os efeitos de escritura pública, por qualquer outro agente não integrante do SFI".


Mauro Antônio Rocha
Advogado especializado em Direito Imobiliário, Notarial, Registral, Crédito e Garantias Imobiliárias.
Presidente da AD NOTARE - Academia Nacional de Direito Notarial e Registral.

Publicado no Boletim MIGALHAS 5873, de 18/06/2024

segunda-feira, 3 de junho de 2024

Da responsabilidade do fiduciário pela dívida condominial na alienação fiduciária de bem imóvel em garantia.


Mauro Antônio Rocha [*]


O STJ faz audiência pública para tentar definir a responsabilidade de fiduciário e fiduciante pelo pagamento de despesas condominiais devidas durante o prazo contratual da alienação fiduciária.


1. Na segunda-feira (03/06) será realizada a audiência pública convocada pelo Ministro Antonio Carlos Ferreira, Relator do Resp. nº 1.929.926/SP afetado pela Quarta Turma à Segunda Seção do STJ para pacificação do tema e “formar precedente, embora não qualificado como repetitivo, sobre a (im)possibilidade de penhora do imóvel objeto de alienação fiduciária em garantia no curso de execução de débitos condominiais”.

Cumpre ressaltar que o Ministro Antonio Carlos Ferreira, antes da magistratura, foi advogado e diretor jurídico da Caixa Econômica Federal, participou dos estudos e elaboração da Lei nº 9.514/1997, assim como da implantação da alienação fiduciária em garantia no mercado de crédito imobiliário e desponta como especialista na matéria, de forma que a audiência proposta denota a adoção de um interessante viés democrático na análise e enfrentamento da controvérsia jurídica.

O quadro de entidades habilitadas – siglas representativas dos diferentes setores envolvidos (AABIC, ABADI, ABMI, FEBRABAN, ANACON, SECOVI, ABECIP, ABRAINC, SIPCES e SECOVI) – e a destacada qualificação profissional dos nomeados para a representação confirmam a relevância econômica e social da questão controvertida.

Estranhamente, dentre inúmeras instituições acadêmicas dedicadas ao estudo, pesquisa e difusão do conhecimento nas áreas de direitos consentâneos ao condominial e imobiliário, somente a Academia Nacional de Direito Notarial e Registral – AD NOTARE está habilitada e será representada por seu Diretor Dr. Marcus Vinicius Kikunaga.

2. No mérito, o Tribunal pretende firmar entendimentos acerca da responsabilidade – temporal e patrimonial – do credor fiduciário e do fiduciante pelo pagamento das despesas condominiais e, consequentemente, das demais despesas de natureza propter rem, devidas no decurso do prazo contratual de financiamento, empréstimo ou parcelamento de preço.

Do ponto de vista temporal, está assentado que a obrigação de pagamento dessas despesas e encargos durante a vigência do contrato de alienação fiduciária é do fiduciante – assim o determina o § 8º do art. 27 da Lei nº 9.514/1997. De igual forma, indiscutível que a obrigação de pagamento dos encargos devidos até a data da contratação é, evidentemente, do fiduciário, assim como os valores incidentes a partir da data da imissão na posse direta do bem por efeito de realização da garantia, conforme dispõem o artigo 1336, I e o parágrafo único do art. 1.368-B do Código Civil vigente.

Não há dúvida, também, de que os valores relativos aos encargos do imóvel, assim considerados “os prêmios de seguro e os encargos legais, inclusive tributos e contribuições condominiais” que recaiam ou venham a recair sobre o imóvel, atribuídos ao fiduciante e não pagos, serão apurados para a composição do valor total da dívida garantida pela alienação fiduciária e para a determinação do valor mínimo de venda do imóvel em segundo leilão, de forma que serão – sempre – suportados direta ou indiretamente pelo fiduciante.

A controvérsia, portanto, reside – exclusivamente – na determinação da parte legitimada como réu das ações de cobrança e execução e da responsabilidade patrimonial dos contratantes.

3. O art. 23 da Lei nº 9.514/1997 dispõe que o registro do contrato serve de título para a constituição da propriedade fiduciária.

Do registro do contrato alienação fiduciária de bem imóvel “emergem direitos reais concorrentes, antagônicos e indissociáveis: a propriedade fiduciária – que se consubstancia na transmissão da propriedade resolúvel e da posse indireta ao credor fiduciário – e o direito real de aquisição que defere ao fiduciante, mantido na posse direta, o direito de reaver a propriedade do bem mediante pagamento da dívida contraída” .

Portanto, a alienação fiduciária em garantia torna o fiduciário titular da propriedade resolúvel e possuidor indireto da coisa e o fiduciante possuidor direto e titular do direito real de reaquisição do bem.

O Código Civil, ao tratar do condomínio edilício, dispõe no art. 1.345 que “o adquirente de unidade responde pelos débitos do alienante, em relação ao condomínio, inclusive multas e juros moratórios”, atribuindo a responsabilidade do pagamento de dívidas condominiais ao titular do direito real, isto é, ao proprietário do bem imóvel, independentemente de qualquer limitação legal ou contratual.

4. A redação original da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997 não trouxe dispositivos para determinar obrigações ou responsabilidades pelo pagamento de despesas condominiais, tributos e demais encargos incidentes sobre o imóvel objeto da garantia, ficando tais questões a cargo das cláusulas e condições contratuais.

No entanto, já no primórdio houve a inclusão do parágrafo 8º ao artigo 27 da lei (inicialmente pela Medida Provisória nº 2.223/2001, depois pela Lei nº 10.931/2004) para dispor sobre a responsabilidade – contratual – do fiduciante “pelo pagamento dos impostos, taxas, contribuições condominiais e quaisquer outros encargos que recaiam ou venham a recair sobre o imóvel, cuja posse tenha sido transferida para o fiduciário, nos termos deste artigo, até a data em que o fiduciário vier a ser imitido na posse”.

Recentemente, norma de idêntico teor foi incluída ao art. 24 da lei pela Medida Provisória nº 1.162/2023, convertida na Lei 14.620/2023 e derrogada pela Lei nº 14.711/2024 – denotando a preocupação das instituições de crédito imobiliário com a matéria, com a seguinte redação:

§ 2º Nos contratos firmados com cláusula de alienação fiduciária em garantia, caberá ao fiduciante a obrigação de arcar com o custo do pagamento do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana - IPTU incidente sobre o bem e das taxas condominiais existentes.

5. Posteriormente, por influência direta das entidades representativas do crédito imobiliário, a Lei nº 13.043/2014 incluiu ao Código Civil o art. 1368-B e seu parágrafo único dispondo sobre a responsabilidade dos contratantes de alienação fiduciária em relação às despesas consideradas propter rem e para determinar que o credor fiduciário “passa a responder pelo pagamento dos tributos sobre a propriedade e a posse, taxas, despesas condominiais e quaisquer outros encargos, tributários ou não, incidentes sobre o bem objeto da garantia, a partir da data em que vier a ser imitido na posse direta do bem.”

A redação propositalmente confusa da norma teve a pretensão de afastar a responsabilidade das instituições financeiras pela responsabilidade ou pagamento – principalmente – das quotas condominiais inadimplidas durante a constância do contrato de financiamento imobiliário, para que fossem exigidas pelos condomínios diretamente dos fiduciantes em ações de cobrança próprias.
6. Submetida a questão ao Judiciário emergiu a decisão relatada pela Ministra Nancy Andrighi, no Resp 2.036.289/RS, tornada paradigmática e fundada no seguinte entendimento:

“41. Desse modo, quando o art. 1.345 do CC/2002 atribui a responsabilidade pelo pagamento dos débitos condominiais ao titular de direito real, é evidente que a norma objetiva, na maioria das vezes, responsabilizar o proprietário, com o fim de que ao menos o imóvel possa servir para a satisfação do crédito, pois necessariamente integra o seu patrimônio.

42.Não obstante, é perfeitamente possível que o legislador atribua essa responsabilidade a outro sujeito que não o proprietário, com a finalidade de privilegiar outros interesses em detrimento do condomínio, como fez nos arts. 1.368-B, parágrafo púnico do CC/2002 e 27, § 8º, da Lei nº 9.514/1997, atribuindo-a ao devedor fiduciante enquanto na posse direta do imóvel alienado fiduciariamente, resguardando principalmente a garantia do credor fiduciário.

43. De fato, ao prever que o devedor fiduciante responde pelas despesas condominiais, a norma estabelece que seu patrimônio é que será usado para a satisfação do referido crédito, não incluindo, portanto, o imóvel alienado fiduciariamente, que integra o patrimônio do credor fiduciário.

44. Por essa razão, na espécie, aplica-se a tese de que “não se admite a penhora do bem alienado fiduciariamente em execução promovida por terceiros contra o devedor fiduciante, haja vista que o patrimônio pertence ao credor fiduciário, permitindo-se, contudo, a constrição dos direitos decorrentes do contrato de alienação fiduciária” (Resp 1.677.079/SP, 3ª Turma, DJe 1/10/2018).” (Grifo do autor)

Dessa forma, a confusa redação da norma cumpriu seu papel diversionista visto que não há no aludido dispositivo qualquer previsão de responsabilidade do fiduciante pelas despesas condominiais (o que não se confunde com a obrigação contratual de pagamento dessas despesas), assim como, a tese mencionada não admite a penhora do imóvel exclusivamente em execução promovida por terceiros contra o devedor fiduciante (o que também não se confunde com a penhora resultante de ação de cobrança de despesas condominiais, de natureza propter-rem).

7. Finalmente, no final do ano passado, em julgamento do Resp 2.059.278/SC a Quarta Turma retornou a questão aos seus trilhos certos ao decidir pela possibilidade de penhora do bem imóvel alienado fiduciariamente, tendo em vista a natureza da dívida condominial.

Com extrema clareza o voto vencedor que deu provimento ao recurso, proferido pelo Ministro Raul Araújo e acompanhado pelos Ministros João Otávio de Noronha, Maria Isabel Gallotti e Antonio Carlos Ferreira afastou a negativa de penhora decorrente das decisões anteriores, reconhecendo que a solução anterior não se ajusta quando o credor é o próprio condomínio:

“É que relativamente ao próprio condomínio-credor, dada a natureza propter rem das despesas condominiais, nos termos do art. 1.345 do Código Civil de 2002, haverá necessidade de se promover a citação, na ação de execução, também do credor fiduciário no aludido contrato para que venha integrar a lide, possibilitando ao titular do direito previsto no contrato de alienação fiduciária quitar o débito condominial existente e, em ação regressiva, tentar obter do devedor fiduciante o retorno desses valores.”

No mesmo sentido e com a mesma clareza dispõe a ementa oficial do acórdão:

“1. As normas dos arts. 27, § 8º, da Lei nº 9.514/1997 e 1.368-B, parágrafo único, do CC/2002, reguladoras do contrato de alienação fiduciária de coisa imóvel, apenas disciplinam as relações jurídicas ente os contratantes, sem alcançar relações jurídicas diversas daquelas, nem se sobrepor a direitos de terceiros não contratantes, como é o caso da relação jurídica entre condomínio edilício e condôminos e do direito do condomínio credor de dívida condominial, a qual mantém sua natureza jurídica propter rem.

2. A natureza propter rem se vincula diretamente ao direito de propriedade sobre a coisa. Por isso, se sobreleva ao direito de qualquer proprietário, inclusive do credor fiduciário, pois este, na condição de proprietário sujeito à uma condição resolutiva, não pode ser detentor de maiores direitos que o proprietário pleno.

3. Em execução por dívida condominial movida pelo condomínio edilício é possível a penhora do próprio imóvel que dá origem ao débito, ainda que esteja alienado fiduciariamente, tendo em vista a natureza da dívida condominial, nos termos do art. 1.345 do Código Civil de 2002.

4. Para tanto, o condomínio exequente deve promover também a citação do credor fiduciário, além do devedor fiduciante, a fim de vir aquele integrar a execução para que se possa encontrar a adequada solução para o resgate dos créditos, a qual depende do reconhecimento do dever do proprietário, perante o condomínio, de quitar o débito, sob pena de ter o imóvel penhorado e levado à praceamento. Ao optar pela quitação da dívida, o credor fiduciário se sub-roga nos direitos do exequente e tem regresso contra o condômino executado, o devedor fiduciante.

5. Recurso especial provido. “


* 8. Apesar da precisão, nos parece que a ementa merece alguns reparos quanto ao disposto no parágrafo final. Pelo que se depreende, ao contrário do que ali consta, o condomínio exequente deve promover a citação do credor fiduciário e proprietário do imóvel (condômino e réu) e, também, do fiduciante (litisconsorte necessário passivo). Na condição de proprietário e condômino o credor fiduciário deverá efetuar o pagamento da dívida, sub-rogando-se nos direitos do condomínio exequente, inclusive ao direito de regresso contra o fiduciante, sob pena de praceamento do imóvel, inexistindo a “opção pela quitação da dívida” ali tratada.

9. Pelo exposto, entendemos pela possibilidade de penhora em execução de dívida condominial de imóvel objeto da garantia fiduciária, devendo o proprietário fiduciário (credor) ser citado para a ação, juntamente com o fiduciante (litisconsorte necessário passivo).



Mauro Antônio Rocha
Advogado especializado em Direito Imobiliário, Notarial, Registral, Crédito e Garantia Imobiliárias.
Presidente da AD NOTARE – Academia Nacional de Direito Notarial e Registral.



Publicado no Boletim MIGALHAS 5863, de 03/06/2024

terça-feira, 12 de março de 2024

Escrow Account – instrumento de segurança jurídica máxima ao negócio imobiliário. (Parte I)


Eduardo Moreira Reis e Mauro Antônio Rocha


Considerações iniciais sobre o ‘escrow account’, instrumento jurídico-financeiro incluído na Lei 8.935/1994 pelo Marco Legal das Garantias para conferir máxima segurança jurídica ao adquirente de imóvel.

1. Introdução

A aquisição de propriedade imobiliária no Brasil pode ser considerado um negócio de risco que expõe pessoas nacionais e estrangeiras à insegurança jurídica e ao desgaste emocional e psicológico, por demandar do investidor, ou adquirente de imóvel para utilização própria, razoável conhecimento das inúmeras variáveis estruturais e conjunturais do sistema jurídico brasileiro, do qual decorre ser o registro do título finalizado em seu nome a melhor – mas não definitiva – garantia.

Entretanto, é da praxe do mercado que nos negócios de compra e venda de imóveis celebrados sem financiamento o pagamento integral do preço ao vendedor seja realizado até o momento da lavratura da escritura pública, transferência da posse e entrega das chaves – independentemente do efetivo registro do título – antes, portanto, da transferência da propriedade.

Por conta de tal necessidade de efetuar o pagamento do preço, a incerteza sobre o registro e efetiva aquisição da propriedade, esse período – entre a assinatura da escritura e o registro do título – será profundamente estressante para o comprador. Além disso, a demora na superação de eventuais óbices ao registro pode representar uma trava ao negócio imobiliário, impedindo a circulação de riquezas e o desenvolvimento econômico do país.

Outro fator inibidor de negócios imobiliários é a existência de dívidas do alienante, que podem colocar em risco a aquisição ou resultar em penhoras do imóvel, débitos que em muitos casos poderiam ser quitados ou renegociados de forma vantajosa com parte do próprio preço de venda.

A observação sistemática realizada pelos autores, em muitos anos de prática da advocacia imobiliária e acompanhamento de numerosos negócios que originaram litígios e distratos, não atingiram os objetivos visados pelo comprador, tiveram seus efeitos retardados no tempo ou não foram concluídos por vicissitudes dos sistema registral brasileiro e em decorrência da interpretação variável dos tribunais sobre questões atinentes à matéria, aponta para algumas questões, a seguir expostas de forma sintética:

• a maioria dos compradores de imóveis desconhece a matéria registral imobiliária e supõe que as obrigações do vendedor estarão findas com a assinatura da escritura de venda, deixando de reservar parcela do pagamento como precaução contra problemas comuns na fase de registro do título. Por outro lado, como a escritura é o título translativo, os vendedores exigem a quitação plena para sua outorga;

• potenciais compradores deixam de concluir bons negócios por recear as exigências registrais que impedem o registro imediato das escrituras de compra e venda celebradas, postergando a transmissão da propriedade por longo tempo, com custos e riscos consideráveis;

• a impossibilidade ou a demora no registro pode resultar em conflitos diversos, ações de desfazimento dos negócios, de indenização, procedimentos de usucapião como forma de se contornar os óbices registrais etc.;

• muitas são as razões que podem obstar ou dificultar o registro do título para o comprador que já efetuou o pagamento do preço: divergências cadastrais, descrição imprecisa do imóvel nos assentos registrais existentes, problemas fiscais, divergências de dados pessoais ou reais, necessidade de busca de dados de registros anteriores em outras comarcas, inconsistências em formais de partilha de divórcios e inventários ainda não registrados, loteamentos e incorporações com irregularidades, sobreposição de imóveis rurais, externalidades desconhecidas no momento da lavratura da escritura, como indisponibilidades de bens, penhoras ou arrestos ainda não registrados, uniões estáveis não publicizadas no Registro Civil do vendedor e outras mais.

Para enfrentar as dificuldades acima descritas a Lei 14.711/2023 trouxe para o mercado imobiliário um instrumento bastante conhecido e utilizado nas operações comerciais on line e que consiste resumidamente na possibilidade do investidor efetivar o pagamento ou consignação do valor, por meio de um terceiro – tabelião de notas – que efetuará o deposito em conta vinculada ao negócio em instituição financeira e providenciará o repasse do montante à parte devida, tão logo constatada a ocorrência das condições negociais aplicáveis.

Com a adoção do referido instrumento confere-se a necessária segurança jurídica à operação e supera-se, a princípio, dois riscos:

• O risco de o vendedor outorgar escritura antes do recebimento do preço e amargar o inadimplemento do comprador, que com o registro já terá transferido para si o bem – o que exigirá uma ação judicial do vendedor, para eventual desfazimento do negócio ou recebimento do preço;

• O risco de o comprador pagar a integralidade do preço no momento da outorga da escritura e depois não conseguir aperfeiçoar a aquisição, por problemas no registro – o que igualmente exigirá intervenção judicial para desfazimento do negócio e cobrança do valor pago.
2. Escrow account – Conceito, aplicação e utilidade ao negócio imobiliário

O escrow, originário do direito anglo-saxônico, é um contrato de depósito irregular, inominado e atípico, com função de garantia, em favor de sujeito alternativamente determinado. É modalidade não contemplada pelo artigo 632 do Código Civil Brasileiro, que trata do depósito no interesse de terceiro .

Comumente previsto como depósito em garantia em um contrato ou acordo comercial é mantido sob a responsabilidade de um terceiro, até que as cláusulas desse acordo sejam cumpridas por ambas as partes envolvidas no negócio. Normalmente se faz na forma de um depósito em dinheiro em uma conta criada especificamente para isso - uma escrow account, que em português poderia ser traduzida como “conta-caução” ou “conta de garantia” .

Daí é possível extrair-se que o escrow é um contrato necessariamente ligado a uma relação jurídica principal, baseado na fidúcia que as partes assentam em terceiro a quem se confiará o bem, cuja função consiste na garantia de cumprimento de obrigações, assegurando-se ao beneficiário do depósito que, demonstrado seu status de credor, poderá facilmente realizar seu crédito .

Dentre seus elementos essenciais, no que tange às partes, a doutrina portuguesa aponta o escrow como um contrato trilateral, subscrito por duas partes contratantes em negócio jurídico coligado, em razão do qual se realiza o depósito, e um ente fiduciário, o depositário escrow, que acompanhará a execução do contrato principal e a que se confia a guarda dos bens dados em sua garantia

O escrow é utilizado cotidianamente por milhões de brasileiros em plataformas digitais como PayPal, Mercado Pago, Mercado Livre, Shopee, entre outras, que recebem pagamentos dos consumidores em contas próprias, para repasse ao fornecedor após a entrega regular do produto. Mas a forma de escrow que nos parece mais próxima daquela aplicável aos negócios imobiliários é a do crédito documentário praticado no comércio exterior , agregado a elementos do negócio fiduciário , cuja tipologia mais comum no Brasil é a propriedade fiduciária.

O crédito documentário é um compromisso irrevogável do banco emitente que, atuando por instruções de um importador, fica obrigado a efetuar um pagamento - à vista ou a prazo - a um exportador ou à sua ordem, contra a apresentação de documentos em conformidade com os termos enunciados na carta de crédito. O crédito documentário entra no circuito bancário pela via do importador e constitui uma garantia de pagamento a favor do exportador, desde que observados todos os termos e condições previstos na carta de crédito. É um meio de pagamento/recebimento que oferece maior segurança às transações de comércio internacional, em especial no relacionamento com novos parceiros comerciais. Para o importador é garantido que o compromisso do banco emitente de pagar o montante da carta de crédito só se verificará se forem cumpridos por parte do exportador todos os requisitos a que obriga a carta de crédito. Para o exportador (beneficiário) há a garantia do pagamento da mercadoria expedida, contra entrega dos documentos e cumpridos os termos e condições expressos na carta de crédito.

Percebe-se, a partir de tal estrutura negocial, que um contrato de escrow atrelado à apresentação documental, como forma de cumprimento de obrigações, serve bem aos negócios imobiliários. Dada a abstração consubstanciada nos dados registrais e cadastrais, em especial nas certidões a eles pertinentes, o cumprimento da quase totalidade das obrigações normalmente pactuadas em negócios imobiliários pode ser aferido por documentos, o que reduz a discricionariedade do escrow holder (depositário), simplificando e tornando mais seguro o negócio. Pois embora seja pouco comum na prática comercial, é possível atribuir-se ao escrow holder poderes para aferir a verificação das contingências do contrato a que se sujeita a definição do credor do depósito - se o bem (ou dinheiro) será restituído ao depositante ou entregue ao beneficiário, caso em que desempenhará função análoga a de juiz ou árbitro .

Neste caso, emerge a questão da responsabilidade do depositário decorrente da deliberação sobre a verificação ou não da condição acordada, que pode ser contornada, segundo Antunes , com a previsão de cláusula que exonere o depositário de responsabilidades pela decisão assumida, desde que baseada no conteúdo do contrato, “como se estivéssemos perante uma decisão de um árbitro ou juiz a quem não se podem ser assacadas responsabilidades pelo mérito das suas decisões”.

3. O escrow account no Marco Legal das Garantias.

A Lei nº 14.711/2023, conhecida como Marco Legal das Garantias, reconfigurou o escrow como garantia dos negócios imobiliários, ao permitir sua utilização pelos tabeliães, com o apoio de uma instituição bancária, no papel de escrow holders e atribuir ao depósito bancário do valor o status de patrimônio de afetação. Tal reconfiguração se deu mediante a inclusão, na Lei 8.935/1994 (Lei dos Cartórios), dos seguintes dispositivos:

Art. 7º-A Aos tabeliães de notas também compete, sem exclusividade, entre outras atividades

I - certificar o implemento ou a frustração de condições e outros elementos negociais, respeitada a competência própria dos tabeliães de protesto; (...)

III - atuar como árbitro.

§ 1º O preço do negócio ou os valores conexos poderão ser recebidos ou consignados por meio do tabelião de notas, que repassará o montante à parte devida ao constatar a ocorrência ou a frustração das condições negociais aplicáveis, não podendo o depósito feito em conta vinculada ao negócio, nos termos de convênio firmado entre a entidade de classe de âmbito nacional e instituição financeira credenciada, que constituirá patrimônio segregado, ser constrito por autoridade judicial ou fiscal em razão de obrigação do depositante, de qualquer parte ou do tabelião de notas, por motivo estranho ao próprio negócio.

§ 2º O tabelião de notas lavrará, a pedido das partes, ata notarial para constatar a verificação da ocorrência ou da frustração das condições negociais aplicáveis e certificará o repasse dos valores devidos e a eficácia ou a rescisão do negócio celebrado, o que, quando aplicável, constituirá título para fins do art. 221 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), respeitada a competência própria dos tabeliães de protesto.

(...)
Observa-se que a nova lei atribuiu ao tabelião de notas a atribuição tanto para atuar como escrow holder, ou seja, ser o terceiro a quem é confiado o bem (no caso o numerário depositado em garantia) no contrato de escrow, quanto para atuar como árbitro, certificando o implemento ou a frustração de condições e outros elementos negociais, sob sua fé pública notarial. E como desdobramento desse papel conjunto de escrow holder e árbitro, para interpretar o cumprimento ou descumprimento de obrigações e o implemento ou não de condições e a partir das conclusões de tal interpretação, certificar o fato (e o fenômeno jurídico dele decorrente) e repassar o montante à parte devida, seja o depositante, seja o beneficiário do escrow.

Em paralelo, a nova lei atribuiu ao depósito na escrow account o caráter de patrimônio de afetação, a salvo de penhoras, bloqueios ou constrições, exceto as que derivem do próprio negócio principal, ao qual o escrow é acessório. Pois até então a penhora do depósito por dívida do depositante era um risco inerente ao negócio, como se verifica em várias decisões judiciais que reconhecem a plena penhorabilidade dos valores em escrow account .

Verifica-se, portanto, que aos tabeliães de notas foi atribuída uma certa carga de poder decisório, que não é mera aferição da ocorrência de fatos, certificáveis pela fé pública notarial, a serem consignados em ata notarial, mas sim a qualificação jurídica de tais fatos, em face das cláusulas contratuais pactuadas pelas partes.

Certificada a ocorrência de fatos e condições, haverá uma decisão notarial para determinar o beneficiário dos valores, que poderá inclusive ser ambas as partes, conforme a pactuação contratual preveja, por exemplo, uma devolução parcial para uma parte, com multa em favor da outra parte contratante. Em outros termos, ao optar pela atuação do tabelião como escrow holder os contratantes lhe atribuem, em maior ou menor parcela, conforme a complexidade do negócio, também o papel de árbitro.

No tocante ao patrimônio de afetação representado pelo dinheiro depositado em conta bancária, entendemos que, a partir da novel previsão legislativa, tal depósito pode perfeitamente se dar mediante transferência à instituição bancária em caráter fiduciário, como autêntico negócio fiduciário, estipulado pelas partes com interveniência e sob ordens do tabelionato. Pois transferindo-se a propriedade fiduciária do numerário ao banco, sob ordens do tabelionato, ter-se-á uma segregação patrimonial mais eficaz, em titularidade diferente das partes e a princípio não alcançável por ordens de bloqueio judicial em abstrato ou penhoras on line por débitos da parte depositante (evitando-se assim bloqueios e desbloqueios).

A propriedade fiduciária de bens fungíveis (como o dinheiro), embora não admitida pela redação do art. 1.361 do Código Civil, pode ser prevista em legislação especial. Veja-se:

Art. 1.361. Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor.

(...)

Art. 1.368-A. As demais espécies de propriedade fiduciária ou de titularidade fiduciária submetem-se à disciplina específica das respectivas leis especiais, somente se aplicando as disposições deste Código naquilo que não for incompatível com a legislação especial. (destacamos).

A Lei 10.931/2004 alterou a Lei 4.728/1965 (Lei do Mercado de Capitais) para autorizar a alienação fiduciária de coisas fungíveis no âmbito do mercado financeiro:

Art. 66-B. O contrato de alienação fiduciária celebrado no âmbito do mercado financeiro e de capitais, bem como em garantia de créditos fiscais e previdenciários, deverá conter, além dos requisitos definidos na Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, a taxa de juros, a cláusula penal, o índice de atualização monetária, se houver, e as demais comissões e encargos.

(...)

§ 3o É admitida a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, hipóteses em que, salvo disposição em contrário, a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é atribuída ao credor, que, em caso de inadimplemento ou mora da obrigação garantida, poderá vender a terceiros o bem objeto da propriedade fiduciária independente de leilão, hasta pública ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, devendo aplicar o preço da venda no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da realização da garantia, entregando ao devedor o saldo, se houver, acompanhado do demonstrativo da operação realizada.(Incluído pela Lei 10.931, de 2004 – negritos nossos)
Observa-se, portanto, que não há óbice, ao menos sob a égide da legislação federal, para que o escrow estipulado perante o tabelionato tenha o valor entregue à instituição financeira em caráter fiduciário, ficando sob a titularidade resolúvel desta, até que incidam os encargos, termos ou condições contratualmente previstos para o levantamento dos valores, no todo ou em partes.

A recente mudança legislativa, quando devidamente regulamentada, poderá dinamizar o mercado de bens imóveis, especialmente de imóveis com pendências regularização ou de registro de títulos com defeito a ser suprido, ou de casos em que há dívidas do vendedor a serem pagas com os recursos oriundos da venda, dentre outras várias hipóteses. E as partes, se o quiserem, podem perfeitamente reduzir o nível de discricionariedade do tabelião quanto à análise da ocorrência de condições ou cumprimento de obrigações, simplesmente elegendo claramente quais os documentos representativos de cada fato jurídico, para que com a sua mera apresentação, a tempo e modo, se demonstre o direito ao levantamento do numerário – tal qual já ocorre há muito no crédito documentário para importação e exportação.

Embora a princípio contratos particulares imobiliários possam se valer de escrow mediado pelos tabelionatos dentro da nova competência legal que lhes foi atribuída, certamente a grande maioria dos contratos acessórios será instrumentalizada nas escrituras públicas lavradas pelos próprios tabeliães como contratos principais, até mesmo pela possibilidade de se lavrar documentos definitivos, mesmo que com cláusulas resolutivas, com desembolso e salvaguarda dos recursos até o implemento de condições. Tal fato é benéfico ao mercado imobiliário e à segurança jurídica dos negócios, pois no sistema de notariado latino, vigente no Brasil, o tabelião de notas desempenha uma função de assessoria neutra às partes, traduzida na escolha e interpretação de sua vontade, no auxílio a essa formação, na sua adaptação ao ordenamento jurídico, na escolha e aconselhamento sobre os meios jurídicos mais adequados à realização dos fins pretendidos, na redação dos próprios documentos e na explicação às partes sobre o conteúdo e efeito dos atos . A par do trabalho desempenhado pelos tabeliães, a participação dos advogados das partes contratantes na elaboração das cláusulas protetivas de seus interesses é de grande importância, especialmente em se tratando de contratos complexos e que geralmente envolvem quantias significativas.


Eduardo Moreira Reis Advogado especializado em Direito Registral, Imobiliário e Urbanístico. Professor da pós-graduação da PUC/MG. Trabalha há cerca de 30 anos com questões jurídico-fundiárias. Membro da AD NOTARE – Academia Nacional de Direito Notarial, Registral, Crédito e Garantias Imobiliárias.

Mauro Antônio Rocha Advogado especializado em Direito Imobiliário, Notarial, Registral, Crédito e Garantias Imobiliárias. Presidente da AD NOTARE – Academia Nacional de Direito Notarial e Registral.

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NOTAS
1. MARQUES FILHO, Vicente de Paula e GIMENES, Amanda Goda, in A ação de depósito e o contrato de escrow nas operações de fusões e aquisições, p 14 - http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=4206e38996fae402, acesso em 4 de março de 2024.
1. https://www.dicionariofinanceiro.com/escrow/, acesso em 4 de março de 2024.
3. MARQUES FILHO e GIMENES, op cit, p. 8
4. ANTUNES, João Tiago Morais. Do contrato de depósito escrow. Coimbra: Almedina, 2007, p 165.
5. Os Créditos Documentários encontram-se sujeitos às Regras e Usos Uniformes Relativas aos Créditos Documentários da Câmara de Comércio Internacional.
6. In:https://ind.millenniumbcp.pt/pt/negocios/internacional/Pages/cred_doc_importexport.aspx. Crédito Documentário: Como Funciona?
7. In: https://www.economias.pt/credito-documentario-como-funciona/
8. Ver também: https://jus.com.br/artigos/39970/a-moderna-concepcao-do-credito-documentario-nas-relacoes-de-comercio-internacional
9. MARCOS BERNARDES DE MELLO define o negócio fiduciário como ‘’negócios jurídicos pelos quais se transmite a propriedade, a posse, o crédito ou o direito com outra finalidade que não, apenas, a específica de alienar’’ (Teoria do Fato Jurídico, Plano da Existência. 12. Ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 203).
10. MARQUES FILHO e GIMENES, op cit, p. 9
11. Op. cit, p. 167-168
12. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1904340 - SP (2021/0158860-8) EMENTA AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. ALEGAÇÃO DE IMPENHORABILIDADE DE VALORES EM CONTA DE NATUREZA "ESCROW". CONCLUSÃO DO ACÓRDÃO RECORRIDO PAUTADA EM PECULIARIDADES DO CASO. REVISÃO INVIÁVEL. SÚMULAS N. 5 E 7/STJ. AGRAVO CONHECIDO PARA NÃO CONHECER DO RECURSO ESPECIAL. DECISÃO (...) De todo modo, não há se falar em penhora de crédito em reserva exclusiva da agravante. Ainda que dos processos noticiados a fls. 318/322 pela vendedora no contrato firmado com a C., a agravante afirme que só há pendência de débito da executada no processo 1025875-93-93.2015.8.26.0562, com quem admite dividir o valor, fato é que a solução não passa por sua escolha. Já há, inclusive, credores de outro processo com incidente de habilitação em apenso aos autos principais (Proc.1017691-17.2016), onde já manifestaram a pretensão de integrarem o concurso de preferência de credores. Da leitura do acórdão recorrido, verifica-se que a conclusão adotada pelo Tribunal de origem derivou de ampla cognição sobre as premissas fáticas dos autos, sobretudo em relação ao contrato existente entre a recorrente e terceiro (empresa C.), entendendo pela possibilidade de penhora de valor mantido em conta de natureza "escrow" diante das peculiaridades do caso. O acolhimento da pretensão recursal, a fim de reconhecer a impenhorabilidade do montante, demandaria revolvimento do conjunto fático-probatório, bem como interpretação de cláusula contratual, o que encontra óbice nas Súmulas n. 5 e 7/STJ. Ante o exposto, conheço do agravo para não conhecer do recurso especial. Fiquem as partes cientificadas de que a insistência injustificada no prosseguimento do feito, caracterizada pela apresentação de recursos manifestamente inadmissíveis ou protelatórios a esta decisão, ensejará a imposição, conforme o caso, das multas previstas nos arts. 1.021, § 4º, e 1.026, § 2º, do CPC/2015. Publique-se. Brasília, 14 de junho de 2022. MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Relator - (STJ - AREsp: 1904340 SP 2021/0158860-8, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Publicação: DJ 01/07/2022)
EMBARGOS DE TERCEIRO. CONSTRIÇÃO DE CONTA "ESCROW". Sentença de improcedência do pedido de liberação de constrição de conta "escrow" que não comporta reparo. Cerceamento de defesa não verificado. Regular observância ao art. 370, parágrafo único, do CPC/2015. É lícita a penhora incidente sobre conta na modalidade "escrow", não se admitindo a alegação de impossibilidade da constrição em razão da destinação exclusiva dos valores por acordo entre as partes, por não haver previsão da alegada impenhorabilidade no art. 833 do CPC/2015. Precedentes. Honorários recursais. Majoração. RECURSO NÃO PROVIDO. (TJ-SP - AC: 10164982720188260002 SP 1016498-27.2018.8.26.0002, Relator: Alfredo Attié, Data de Julgamento: 23/03/2021, 27ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 25/03/2021)
AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE EXECUÇÃO POR QUANTIA CERTA CONTRA DEVEDOR SOLVENTE - IMPUGNAÇÃO À PENHORA - PENHORA EM CONTA "ESCROW ACCOUNT" – POSSIBILIDADE – BEM NÃO INSERIDO NO ROL DO ARTIGO 833 DO CPC – AUSÊNCIA DE PROVA DE SE TRATAR DE BEM DE TERCEIRO. Ocorre que a conta "escrow account" é, pela natureza jurídica, conta de depósito em garantia, portanto, não alcançada pela impenhorabilidade. ART. 252, DO REGIMENTO INTERNO DO E. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO. Em consonância com o princípio constitucional da razoável duração do processo, previsto no art. 5º, inc. LXXVIII, da Carta da República, é de rigor a ratificação dos fundamentos da sentença recorrida. Precedentes deste Tribunal de Justiça e do Superior Tribunal de Justiça. – DECISÃO MANTIDA – RECURSO IMPROVIDO. (TJ-SP - AI: 20276967920208260000 SP 2027696-79.2020.8.26.0000, Relator: Eduardo Siqueira, Data de Julgamento: 29/04/2020, 38ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 29/04/2020)
13. RODRIGUES, Marcelo Guimarães, Tratado de registros públicos e direito notarial, São Paulo, Atlas, 2014, p. 222.

Publicado originalmente no Boletim Migalhas nº 5.805, de 11/03/2024