sexta-feira, 3 de novembro de 2023

SEMINÁRIO DESVENDANDO O MARCO LEGAL DAS GARANTIAS. IMPERDÍVEL



MIGALHAS e AD NOTARE promoverão o seminário DESVENDANDO O MARCO LEGAL DAS GARANTIAS, com a participação de grandes especialistas nas áreas do Direito Imobiliário, Crédito Imobiliário, Direito Civil e Direito Notarial e REgistral, sob a Coordenação do Dr. Mauro Antônio Rocha.
Informações sobre os participantes, programação e inscrições podem ser obtidas em MIGALHAS EVENTOS

terça-feira, 24 de outubro de 2023

Mauro Antônio Rocha (☆)


É uma grande honra ver nosso artigo "Alienação Fiduciária de bem imóvel. Do direito real de aquisição como objeto de garantia e de penhora em execução de interesse de terceiros" ser escolhido para ocupar as páginas 667 a 684 do volume III da coleção DOUTRINAS ESSENCIAIS - DIREITO IMOBILIÁRIO, que está sendo lançada pela Editora Revista dos Tribunais, sob coordenação do Dr. Marcus Vinicius Motter Borges.

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

O marco legal das garantias e a ressurreição da proscrita hipoteca

Mauro Antônio Rocha (☆)

A tão aguardada ressurreição da hipoteca pode advir ainda este ano com a final aprovação do pretencioso 'marco legal das garantias' e poderá compor com a alienação fiduciária de bem imóvel um conjunto de garantias reais efetivas e suficientes para o atendimento das transações financeiras e comerciais que requerem garantia específica para sua consecução.
Não se pode olvidar, no entanto, que apesar de 25 anos passados de sua promulgação a Alienação Fiduciária ainda expõe dificuldades e deficiências não sanadas em seu procedimento de execução extrajudicial que foram, no PL 4.188/2021, integralmente adotadas e transpostas para a execução extrajudicial da hipoteca.
É esperar para ver que soluções os grupos de especialistas patrocinados pelos mercados terão para os problemas que advirão.



No início deste século, o mais importante e utilizado instituto jurídico para a garantia no financiamento de bens imóveis, empréstimos financeiros e negócios  comerciais em geral - a hipoteca - perdeu o pouco prestígio que ainda detinha, deixando de oferecer a segurança desejada por conta de reiteradas decisões que firmaram jurisprudência favorável à admissão de embargos fundados na posse derivada de compromisso de compra e venda ainda que não registrado, numa dinâmica que culminou com a edição, no início de 2005, da súmula STJ 308(1), que dela retirou os atributos da sequela e preferência, nas transações ali tratadas.

A partir de então, "num contexto de grande desenvolvimento em que as garantias reais existentes não se mostravam adequadas para dar vazão à produção de bens de consumo em série e ao capital acumulado para financiar a aquisição desses bens pela população, bem como para garantir o retorno dos valores investidos"(2), o milenar instituto restou praticamente proscrito no Brasil e substituído pela, naquele momento recém-criada, alienação fiduciária de bem imóvel.

Sobreviveu quase que exclusivamente na operação de incorporação imobiliária como garantia de pagamento de empréstimos financeiros destinados à consecução das obras e, na permuta física e financeira, do efetivo recebimento da parcela do empreendimento ajustada pelo proprietário de terreno. Subsistiu, ainda, na memória afetiva de agentes do mercado imobiliário, e financeiro pelo largo tempo de convivência e, também, por suas utilidades, suficiências e conveniências práticas não repetidas em outras garantias, que aspiravam sua reabilitação.

A tão aguardada ressurreição da hipoteca pode advir ainda este ano caso confirmada o final assentimento e promulgação do PL 4.188 de 2021, distinguido com o pretencioso epíteto de 'marco legal das garantias'(3) que, provindo do Poder Executivo e aprovado pela Câmara Federal, trouxe em seu artigo 13, proposição de inserção de um capítulo específico na lei 9.514/97, para o tratamento da "execução extrajudicial dos créditos garantidos por hipoteca".

O objetivo primário da partição formada por um único artigo enriquecido com quinze parágrafos coincide com a intenção comum a todas as matérias do projeto de lei - que exala do texto original elaborado nas entranhas do Ministério da Fazenda, ainda no governo anterior, com a participação do grupo integrante da IMK - Iniciativas do Mercado de Capitais(4) - de propiciar aos mercados financeiro e de capitais meios de, pelo recrudescimento dos procedimentos de execução de débitos, facilitar, simplificar, automatizar para, ao fim e ao cabo, irresponsabilizar, pela força da garantia, a descuidada concessão dos créditos.

É reconhecida a importância do crédito para o funcionamento dos setores produtivos, das empresas e das famílias e não pretendemos aqui demonizar o robustecimento dos meios de recuperação dos recursos investidos e o imperioso cumprimento das obrigações assumidas, nem defender o afrouxamento da responsabilidade patrimonial dos devedores. O que não parece razoável é o abrandamento - aparentemente coordenado e progressivo - dos critérios de pontuação de 'score' e da apuração de idoneidade e capacidade financeira dos tomadores em contraponto para a excessiva oneração patrimonial do devedor e do consequente desperdício de garantia quando cumprida a obrigação ou, no caso de descumprimento, para a excessiva penalização do devedor pela excussão forçada, com a venda do bem imóvel por valores incompatíveis com a grandeza patrimonial ali representada, obrigando o devedor a retirar-se de forma imediata e incontinenti de sua casa; é dizer, desertar de sua habitação, assentamento, 'enraicinement' humano, desestruturando a persona, a família e o patrimônio.

Conforme citado por DIP(5), "Dostoievski, na mais importante de suas todas sempre notáveis obras, Os demônios, põe sob o escrito de uma de suas personagens, Nikolai Stavroguin, a referência de que perder alguém o vínculo com sua terra, faz-lhe 'perder os deuses', ou seja, perder seus próprios fins".

1. Execução extrajudicial do crédito hipotecário

Para proporcionar a execução extrajudicial do crédito hipotecário o legislador apostou no aproveitamento dos procedimentos conhecidos e já experimentados da execução extrajudicial da garantia fiduciária, com as adaptações requeridas por se tratar, a hipoteca, de direito real de garantia sobre coisa alheia.

O texto revisado e aprovado pelo plenário do Senado tratou - acertadamente - de suprimir a proposta de inserção do referido capítulo na lei de regência da alienação fiduciária de bem imóvel em garantia, para que, 'com as adaptações redacionais necessárias e associadas aos ajustes provenientes de outras emendas', seja transformado em capítulo, agora autônomo e 'para inclusão onde couber', com as emendas que serão a seguir comentadas.

Dispõe o 'caput' (do originalmente artigo 33-G da lei 9.514/97) que os créditos garantidos por hipoteca poderão ser executados extrajudicialmente "independentemente de previsão contratual". No parágrafo décimo-terceiro do artigo em comento fica estabelecida a exceção com relação "às operações de financiamento da atividade agropecuária."

A independência contratual aqui tratada é, a nosso ver, resquício da redação inaugural não expurgada que poderá ser refinada pela Câmara sem caracterizar alteração do texto bicameral aprovado.

De toda forma, encontramos no parágrafo décimo-quinto, acrescido ao texto pela emenda SF 17, disposição que torna explícita, como requisito de validade do negócio jurídico, previsão expressa no título constitutivo da hipoteca, "do procedimento previsto neste artigo, com menção ao teor dos §§ 1º a 10".

Demais disso, a aplicação do procedimento executivo principiado deve ser, evidentemente, restrita aos contratos celebrados sob a vigência da lei, não afligindo contratos firmados antes de sua aprovação, em respeito ao direito intertemporal.

2. Procedimento de excussão extrajudicial do crédito hipotecário           

Os parágrafos 1º, 2º e 3º prescrevem que a intimação pessoal do devedor (e se for o caso, do terceiro hipotecante ou seus representantes legais ou procuradores regularmente constituídos) que não paga a dívida hipotecária no vencimento aprazado seja realizada pelo oficial de registro de imóveis da situação do imóvel hipotecado, com a observância do disposto no art. 26 da lei 9.514/97, conferindo o prazo de quinze dias para a purgação da mora e regularização do débito.

O pagamento no prazo legal da dívida extinguirá a hipoteca e o das parcelas vencidas até a data da purgação implicará no convalescimento do contrato.

A não purgação no prazo concedido será averbada, a requerimento do credor, na matrícula do imóvel nos quinze seguintes ao decurso do prazo para o efetivo pagamento - o que corresponde na alienação fiduciária à consolidação da propriedade - ficando o credor autorizado a iniciar a "excussão extrajudicial da garantia hipotecária por meio de leilão público".

Neste ponto, cumpre ressaltar os cuidados normalmente evocados quanto à validade da intimação realizada e a responsabilidade do registrador e do credor pela utilização da intimação ficta (intimação por hora certa e pela publicação de edital), bem assim pelo respeito aos prazos que, apesar de não expressamente peremptórios, podem ensejar prejuízos morais e materiais aos devedores e exigidos judicialmente.

3. Remissão da hipoteca

Dispõe o parágrafo sétimo que, antes de o bem ser alienado em leilão, o devedor ou prestador da garantia hipotecária poderá remir a execução mediante o pagamento da totalidade da dívida, acrescido das despesas incorridas. Como ocorre na consolidação da propriedade fiduciária, após o averbamento do decurso do prazo de purgação da mora, a remissão será efetuada mediante o pagamento integral da dívida, despesas e encargos.

4. Leilão público para venda do imóvel hipotecado


O leilão público do imóvel hipotecado (parágrafos 5º a 9º) será realizado, inclusive por meio eletrônico, no prazo de sessenta dias contados da averbação do decurso do prazo de purgação, sendo obrigatória a comunicação das datas, horários e locais ao devedor ("e se for o caso, o terceiro hipotecante ou seus representantes legais ou procuradores regularmente constituídos") por meio de correspondência dirigida aos endereços, inclusive eletrônicos, conhecidos.

Tal como na lei 9.514/97 o legislador nada informa sobre as formas de notificação admitidas e, principalmente, acerca da confirmação de envio e do recebimento dessa comunicação pelo destinatário, provavelmente aplicando o entendimento jurisprudencial majoritário do dever de manutenção dos endereços cadastrais atualizados e de ser bastante a comprovação do encaminhamento ao último endereço fornecido, inclusive eletrônico.

O imóvel hipotecado deverá ser oferecido em leilão para venda por valor igual ou superior ao valor estabelecido no contrato para fins de excussão ou ao valor de avaliação (sic) realizada para cálculo do ITBI, o que for maior.

Na ausência de lance vencedor, será realizado um segundo leilão nos quinze dias seguintes e "aceito o maior lance oferecido, desde que seja igual ou superior ao valor da dívida garantida pela hipoteca, das despesas, inclusive emolumentos cartorários, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais, podendo, caso não haja lance que alcance o referido valor, ser aceito pelo credor hipotecário, a seu exclusivo critério, lance que corresponda a, pelo menos, metade do valor de avaliação do bem".

Ao atribuir ao credor o "exclusivo critério" para aceitação de lance inferior ao valor da dívida (que corresponda, a pelo menos, metade do valor de avaliação do bem), a redação opaca da norma nos permite entender que o exercício do consentimento legal desonera o devedor e impede o credor de prosseguir na execução de qualquer saldo devedor, porém, se assim for, não tem o menor sentido a limitação também imposta.

Caso a arrematação alcance valor superior à dívida acrescida dos encargos e despesas, o excedente será entregue ao hipotecante no prazo de quinze dias "contado da data da efetivação do pagamento do preço da arrematação".

É inexplicável, quando transferências bancárias são realizadas de forma automática e instantânea, que o legislador confira o prazo de quinze dias para entrega do excedente ao devedor, sem a incidência de juros e atualização monetária sobre o montante retido em evidente prejuízo do excutido.

Não havendo lance vencedor o credor poderá (i) apropriar-se do imóvel em pagamento da dívida, a qualquer tempo, pelo valor correspondente ao referencial mínimo devidamente atualizado, mediante requerimento ao oficial do registro de imóveis competente, que registrará os autos dos leilões negativos com a anotação da transmissão dominial em ato registral único, dispensada a ata notarial de especialização; ou (ii) no prazo de até 180 (cento e oitenta) dias contado do último leilão, realizar a venda direta do imóvel a terceiro, por valor não inferior ao referencial mínimo, dispensado novo leilão, hipótese em que o credor hipotecário ficará investido, por força desta Lei, de mandato irrevogável para representar o garantidor hipotecário, com poderes para transmitir domínio, direito, posse e ação, manifestar a responsabilidade do alienante pela evicção e imitir o adquirente na posse.

O parágrafo nono - com as disposições acima - ganha especial destaque pela redação desastrada que assim inicia: "na hipótese de o lance oferecido no segundo leilão não ser igual ou superior ao referencial mínimo estabelecido no § 6º para arrematação, o credor terá a faculdade de..."

Voltemos ao parágrafo sexto:

No segundo leilão, será aceito o maior lance oferecido, desde que seja igual ou superior ao valor integral da dívida garantida pela hipoteca, das despesas, inclusive emolumentos cartorários, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais, podendo, caso não haja lance que alcance referido valor, ser aceito pelo credor hipotecário, a seu exclusivo critério, lance que corresponda a, pelo menos, metade do valor de avaliação do bem.

Parece evidente que o 'referencial mínimo estabelecido' a que se refere o § 9º é o valor integral da dívida, mais encargos e despesas, uma vez que a venda por valor correspondente a metade do valor de avaliação constitui exceção cuja adoção, 'a exclusivo critério do credor', não poderá representar prejuízo financeiro ou violação de direitos do devedor ou hipotecante.

Ademais, será tão desgastante ao credor a busca por algum sentido para a segunda alternativa, quanto pela opção por uma delas.

Na primeira alternativa, o parágrafo 9° outorga ao credor a apropriação do imóvel pelo 'referencial mínimo', transmitindo-lhe a propriedade plena que permite a venda direta a qualquer tempo, por qualquer preço, dispensada qualquer espécie de prestação de contas a quem quer que seja, com poderes para transmitir domínio e imitir o adquirente na posse.

Na segunda alternativa, ao credor é oferecido o prazo de 180 dias para realizar a venda direta do imóvel, por valor limitado ao 'referencial mínimo', - com mandato para representar o devedor hipotecário e poderes para transmitir domínio e imitir o adquirente na posse, mantida, naturalmente, a obrigação de prestação de contas no caso de venda por valor superior ao da dívida integral.

Com os critérios utilizados para a alienação fiduciária, dispõe no parágrafo décimo, que somente nas operações de financiamento para a aquisição ou construção de imóvel residencial do devedor - excetuadas as operações realizadas com administradoras de consórcios - na arrematação por valor insuficiente ao pagamento da dívida acrescida dos encargos e despesas o devedor ficará exonerado da responsabilidade pelo saldo remanescente, não se aplicando o disposto no art. 1.430 do Código Civil.

Finalmente, o parágrafo 9º dispõe que na opção pela apropriação do imóvel pelo credor o oficial de registro de imóveis "registrará os autos dos leilões negativos com a anotação da transmissão dominial em ato registral único", dispensando a ata notarial de especialização.

Não consta do rol do art. 221 da lei 6.015 que "autos dos leilões negativos" constituam títulos admitidos a registro e, a rigor, não se encontrará na doutrina registral posicionamento favorável à transmissão automática da propriedade do bem ao credor tão-só pela ausência de lance vencedor em leilão.

5. Transmissão da propriedade ao arrematante ou comprador

Aceito o lance vencedor, diz o parágrafo onze que os autos do leilão e o processo de execução extrajudicial da hipoteca serão distribuídos a tabelião de notas com circunscrição delegada que abranja o local do imóvel para lavratura da ata notarial de arrematação, com os dados da intimação do devedor e do garantidor e dos autos de leilão e constituirá título hábil de transmissão da propriedade ao arrematante a ser registrada na matrícula do imóvel.

Cabe ressaltar que não há serviço de distribuição, nem vinculação geográfica para os cartórios de notas, o que prejudica o entendimento do dispositivo acima referido.
Em qualquer das hipóteses (arrematação, venda privada ou adjudicação) deverá ser previamente apresentado ao registro imobiliário o comprovante de pagamento do imposto sobre transmissão e, se for o caso, o laudêmio.

A expressão previamente, inserida no parágrafo décimo-quarta se mostra inadequada, devendo os comprovantes tributários serem apresentados ao registro imobiliário por ocasião do requerimento de registro.

6. Desocupação do imóvel e imissão na posse

A desocupação do imóvel excutido, mesmo quando houver locação, e a apuração da taxa de ocupação e despesas vinculadas ao imóvel obedecerá aos procedimentos estabelecidos para a alienação fiduciária de bem imóvel e se fará de conforme os §§ 7º e 8º do art. 27 e os art. 30 e 37-A da lei 9.514/97, equiparando a norma, "a data de consolidação da propriedade na alienação fiduciária à data da expedição da ata notarial de arrematação ou, se for o caso, do registro da apropriação definitiva do bem pelo credor hipotecário".


A hipoteca juntamente com a alienação fiduciária de bem imóvel poderão compor um conjunto de garantias reais efetivas e suficientes para o atendimento das transações financeiras e comerciais que requerem proteção específica para sua consecução, mas não podemos olvidar que, apesar de 25 anos passados de sua promulgação, a alienação fiduciária ainda expõe dificuldades e deficiências não sanadas em seu procedimento de execução extrajudicial que foram, no Projeto de Lei nº 4.188/2021, integralmente adotadas e transpostas para a execução extrajudicial da hipoteca.

É esperar para ver que soluções os grupos de especialistas patrocinados pelos mercados terão para os problemas que advirão.

(☆)Mauro Antônio Rocha
Advogado graduado pela Faculdade de Direito da USP e pós-graduado em Direito Imobiliário e Direito Notarial e Registral.
Vice Presidente da AD NOTARE Academia Nacional de Direito Notarial e Registral


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Notas:

(1) Súmula 308. A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel. Disponível em:  https://www.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-sumulas-2011_24_capSumula308.pdf
(2) Rocha. Mauro Antônio. Alienação fiduciária de bem imóvel: da super garantia do crédito imobiliário ao big mac dos negócios financeiros. São Paulo. Editorial Lepanto, 2021.
(3) Rocha. Mauro Antônio. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/369562/criticas-sobre-o-pl-4188-21-que-institui-o-marco-legal-das-garantias
(4) "A Iniciativa de Mercado de Capitais (IMK) é uma ação estratégica do governo federal voltado para o desenvolvimento do mercado de capitais brasileiro. A informação foi dada pelo presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, no lançamento da IMK na última segunda-feira (3), em São Paulo. A ação tem o objetivo de avaliar e propor medidas de aperfeiçoamento regulatório para reduzir o custo de capital no Brasil; estimular o crescimento da poupança de longo prazo e da eficiência da intermediação financeira e do investimento privado; e desenvolver os mercados de capitais, de seguros e de previdência complementar."Disponível em: https://www.bcb.gov.br/detalhenoticia/351/noticia.
(5) Dip. Ricardo. Registro de Imóveis: bem de família: hipoteca. Tomo V. São Paulo, Editorial Lepanto, 2021.

Publicado originalmente no Boletim Migalhas n°5691 edição de 21/09/2023

quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Sobre a judicialização da cobrança de dívida garantida por alienação fiduciária de imóvel.

Mauro Antônio Rocha (☆)


A cobrança de dívida garantida por alienação fiduciária de bem imóvel deve ser extrajudicial na forma da Lei 9.514/97, exceto se houver intransponível impedimento jurídico-legal para execução na forma da lei.

1. Ainda na metade do ano – já cansado por acompanhar as novidades que são incorporadas ao direito imobiliário tão-só para turbinar comissões do mercado financeiro e o vaivém do transformado marco das garantias com suas inusitadas e mal redigidas emendas – fui atentado por alunos e colegas para o interessante artigo publicado no boletim Migalhas(1) pelo eminente jurista e professor Carlos Eduardo Elias de Oliveira sobre a cobrança judicial de dívida com garantia fiduciária e instado a – quiçá – reconsiderar posição contrária a essa possibilidade.

Naquilo que efetivamente nos afasta, o autor entende factível a opção – ao talante do credor – entre a via judicial ou extrajudicial para a execução de dívida garantida por alienação fiduciária de imóvel, bem como, no processo judicial e “com o mesmo resultado prático”, requerer “a consolidação da propriedade fiduciária” ou “a penhora e a adjudicação do direito real de aquisição do devedor fiduciante na forma da lei processual, caso em que haverá automática consolidação da propriedade”.

2. Ponderando que a simplicidade e a celeridade do procedimento extrajudicial de execução da garantia fiduciária foram os principais benefícios almejados e sempre destacados pela unanimidade dos especialistas no cotejo com o processo judicial, cabe indagar quais outros interesses afloram e estão a impelir esses credores ao apelo judiciário.

O ilustre professor nos adverte sobre ações de execução intentadas por credores “para cobrar dívidas garantidas por alienação fiduciária no lugar de valer-se da execução extrajudicial da Lei nº 9.514/97” para “asfixiar o devedor” com a penhora de bens e créditos diversos, deixando “de molho” o imóvel onerado e já constrito. Outros credores, aclara, percorrem o caminho judicial ao pressentir que o crédito sobeja o valor do bem constituído em garantia e temer a extinção “do saldo devedor remanescente após a execução do imóvel nos termos do § 5º do art. 27 da Lei nº 9.514/97”.

De plano, o modus operandi apontado na primeira hipótese, além de incompreensível, é obviamente inadmissível em uma operação regular de crédito com garantia fiduciária e externa características extorsivas, expondo o devedor a danos materiais e morais indenizáveis por quem os tenha causado.

Com relação à segunda hipótese não é raro o apelo ao judiciário pelo credor que sabe ser a garantia insuficiente para a liquidação do crédito e tem a pretensão de prosseguir na execução com vistas ao recebimento da diferença entre o valor total da dívida apurada conforme disposto no § 3º do art. 27 da Lei nº 9.514/1997 que supere o valor de avaliação do imóvel incorporado ao patrimônio por força do disposto no § 5º do mesmo artigo, assim como, para a apreciação de situações específicas que envolvam fraudes, desiquilíbrio contratual etc.

Neste ponto, importa ressaltar que, salvo a ocorrência de sinistro que destrua, inutilize ou reduza o valor da garantia sob a responsabilidade do devedor (casos em que o vencimento antecipado da dívida autoriza o credor a optar pelo processo judicial de execução) a eventual insuficiência de garantia escancara a incompetência do credor na formulação de um negócio jurídico em que a lei a ele permite (i) vistoriar para aceitar ou não a garantia oferecida; (ii) definir o valor de mercado do bem; (iii) limitar o crédito à capacidade de pagamento do devedor, desvinculado do valor do imóvel; (iv) apropriar-se plena e definitivamente do bem no caso de ausência de arrematantes em leilão público.

3. De início, cumpre destacar que o contrato de alienação fiduciária de bem imóvel de que trata a Lei nº 9.514/1997 é acessório e pressupõe a existência de um contrato principal, geralmente – mas não necessariamente – de mútuo em dinheiro.

Pela alienação fiduciária o devedor, ou terceiro garantidor, transfere a propriedade fiduciária do bem imóvel ao credor, sob condição resolutiva vinculada ao pagamento integral da dívida e seus encargos.

É contrato típico, para o qual a lei de regência fornece um conteúdo mínimo, com destaque especial para a obrigatoriedade de cláusula dispondo sobre os procedimentos de intimação válida do fiduciante – nos casos de inadimplemento – da consolidação da propriedade, de venda do imóvel em leilão público para o pagamento do débito e acerto de contas com o fiduciante.

Evidentemente, ao contratar a garantia fiduciária, as partes se obrigam a respeitar os princípios basilares das relações contratuais (probidade e boa-fé), assim como a observar, na hipótese de inadimplemento do contrato principal, o procedimento extrajudicial detalhadamente descrito na lei e transcrito para o contrato acessório, que obriga o credor a oferecer o bem à venda em leilão público e o devedor a aceitar a transmissão plena, incondicionada e definitiva do imóvel ao credor caso negativo o certame, com quitação mútua onde a lei não inova e sem qualquer permissão ou motivação jurídica que justifique, em situação de normalidade, a execução do contrato de garantia fiduciária na via judicial.

A nosso ver, não há que se cogitar da ausência de vedação legal expressa e tampouco se aproveitará o art. 19 da Lei nº 9.514/1997 (2) que – para além de regular exclusivamente relações jurídicas decorrentes de cessão fiduciária em garantia, limitação que assoma claramente de simples leitura e interpretação literal ou teleológica de seu texto – é norma extravagante e não integrante do capítulo II da lei onde estão estabelecidos os procedimentos de constituição, resolução e execução extrajudicial da alienação fiduciária de bem imóvel.

4. Dos questionamentos enfrentados no citado artigo subsumem, pelo menos, três diferentes situações:

4.1 A primeira diz respeito à pretensão de processar a execução da dívida na via judicial, porém com a utilização dos procedimentos descritos no capítulo II da Lei nº 9.514/1997, mantida a garantia fiduciária.

A nosso juízo, a resposta deve ser negativa – exceto na hipótese de comprovado e intransponível impedimento jurídico-legal para a excussão na forma da lei – uma vez que os procedimentos de intimação, consolidação da propriedade e venda do imóvel em público leilão ali descritos compõem um microssistema criado e destinado exclusivamente à execução extrajudicial, dispondo a via judicial de rito próprio para a execução em geral.

4.2 A segunda abarca a intenção de execução da dívida (contrato principal) na via judicial concomitantemente com o procedimento extrajudicial de consolidação da propriedade fiduciária (contrato acessório) adotado pela Lei nº 9.514/97.

Também aqui a resposta deve ser negativa, dado não haver sentido na dúplice execução proposta para a satisfação de crédito único.

Ademais, ainda que, por absurdo, admitisse as execuções simultâneas – também se afigura equivocada a afirmação de que o credor chegará “ao mesmo resultado prático” se pedir na via judicial a consolidação da propriedade fiduciária ou “a penhora e a adjudicação do direito real de aquisição do devedor fiduciante na forma da lei processual, caso em que haverá automática consolidação da propriedade”.

Parece claro que, nos termos do caput e parágrafos do art. 27, a consolidação da propriedade em nome do credor precede a realização de oferta de venda do imóvel em público leilão pelo valor mínimo correspondente ao montante total da dívida. O sucesso na venda implicará na liquidação e consequente quitação da dívida. O revés na transmissão da propriedade plena e incondicionada do imóvel para o patrimônio do credor, com quitação mútua e sem qualquer inversão de recursos financeiros, salvo as despesas inerentes.

A adjudicação do direito real de aquisição do fiduciante requer, nos termos do art. 876 do CPC (3), oferta de preço não inferior ao da avaliação que, no caso, corresponderá à diferença entre o valor total da dívida e o valor de avaliação do imóvel. A parcela do preço que exceder a dívida será depositado em favor do executado ou quando inferior será amortizado para prosseguimento da execução pelo saldo remanescente (4). Haverá, nesta hipótese, inversão efetiva de recursos equivalentes à oferta ou equivalente redução incidente sobre o montante da execução.

No entanto, a “automática consolidação da propriedade”, resultante da confusão (5), não desobriga a realização de público leilão, que se fará com as regras comuns da Lei nº 9.514/1997 (essa é a proposta) e consequente oferta de venda pelo valor da dívida reduzido pela amortização parcial com alto risco de arrematação por terceiro em prejuízo do credor arrematante.

4.3 Na terceira situação é proposta a possibilidade de renúncia do credor à garantia fiduciária constituída para a execução judicial da dívida.

Somente aqui a resposta será positiva, nada obstando que o credor renuncie formalmente à garantia fiduciária constituída para utilizar-se da via judicial na execução do contrato principal (dívida), desde que previamente notificada ao devedor e ao fiduciante, se for o caso, além de requerido o cancelamento da propriedade fiduciária ao Oficial de Registro competente.

Dessa forma, poderá o credor requerer a penhora de bens do patrimônio do devedor – inclusive do imóvel anteriormente ofertado em garantia – que se apresentem suficientes para o pagamento da dívida.

5. Concluindo, resta mantido nosso entendimento de que a execução do contrato de alienação fiduciária de bem imóvel em garantia, pela inadimplência, deve ser realizada extrajudicialmente na forma dos arts. 26, 26-A e 27 da Lei nº 9.514/1997, admitida a via judicial quando comprovado o intransponível impedimento jurídico-legal para a consecução da execução na forma da lei.

As demais exceções citadas neste texto se referem, em verdade, a situações exteriores ao âmbito da alienação fiduciária, tal como a renúncia à garantia fiduciária ou a execução judicial de parcela ou percentual de dívida não abrangida pela garantia.

As presentes considerações foram elaboradas para expor o entendimento do autor, em coerência com parte da doutrina especializada e jurisprudência de nossos Tribunais, como mais um instrumento para o debate e fortalecimento do estudo do instituto da alienação fiduciária e da garantia fiduciária.


(*) Mauro Antônio Rocha Advogado especializado em Direito Imobiliário, Notarial e Registral, Crédito e garantias imobiliárias. Vice-Presidente da AD NOTARE – Academia Nacional de Direito Notarial e Registral.
________________________
1.https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/392244/cobranca-judicial-de-divida-por-alienacao-fiduciaria-de-imovel
2.Lei 9514/97. Art. 19. Ao credor fiduciário compete o direito de: I - conservar e recuperar a posse dos títulos representativos dos créditos cedidos, contra qualquer detentor, inclusive o próprio cedente; II - promover a intimação dos devedores que não paguem ao cedente, enquanto durar a cessão fiduciária; III - usar das ações, recursos e execuções, judiciais e extrajudiciais, para receber os créditos cedidos e exercer os demais direitos conferidos ao cedente no contrato de alienação do imóvel; IV - receber diretamente dos devedores os créditos cedidos fiduciariamente.
3.CPC. Art. 876. É lícito ao exequente, oferecendo preço não inferior ao da avaliação, requerer que lhe sejam adjudicados os bens penhorados.
4.CPC. Art.876 [...] § 4º Se o valor do crédito for: I - inferior ao dos bens, o requerente da adjudicação depositará de imediato a diferença, que ficará à disposição do executado; II - superior ao dos bens, a execução prosseguirá pelo saldo remanescente.
5.CC. Art. 381. Extingue-se a obrigação, desde que na mesma pessoa se confundam as qualidades de credor e devedor.

Publicado originalmente no Boletim Migalhas n°5677 edição de 31/08/2023

quinta-feira, 13 de julho de 2023

Alienação fiduciária subsequente ou caução de direito real de aquisição?

Mauro Antônio Rocha (*)


O direito real de aquisição pode constituir garantia tão útil e eficaz quanto a alienação fiduciária subsequente na outorga, por exemplo, de crédito com prazo menor ao da garantia fiduciária vigente.

1. Para explicitar a possibilidade do registro da alienação fiduciária 'subsequente' e da constituição de bem imóvel 'superveniente' em garantia, bem como detalhar alguns poucos procedimentos a serem observados na contratação, os legisladores responsáveis pelo Projeto de lei 4.188/21 incluíram nove parágrafos ao texto vigente do art. 22 da lei 9.514/97.

Em rápido resumo cuida a alteração legal proposta de permitir que o fiduciante titular de direitos reais de aquisição decorrente de negócio jurídico de alienação fiduciária de bem imóvel possa contratar a constituição de novas garantias sobre o mesmo imóvel, com o mesmo credor fiduciário ou com terceiros, ficando suspensa a eficácia das alienações fiduciárias 'subsequentes' até o cancelamento da precedente e 'superveniência' da propriedade plena.

A alienação fiduciária 'subsequente' de bem imóvel em garantia que se pretende inserir na lei 9.514/97 em nada difere da alienação fiduciária já tratada no citado art. 22, exceto pelo fato de não haver - no momento da contratação - imóvel a ser alienado e, consequentemente, inexistir garantia ou fidúcia a serem efetivamente constituídas.

Parece complexo, mas é tão simples quanto aquiescer o credor com o pagamento ou garantia de pagamento de dívida lastreado em cheque pré-datado para provisão futura de fundos.

Aliás, a redação original do PL 4.188/21 foi muito criticada e considerada propensa a desentendimentos. Confesso que, quase dois anos passados, atento à confusão que legisladores e articulistas especializados experimentam com os adjetivos "subsequente" (o contrato de alienação fiduciária) e "superveniente" (a propriedade adquirida) mudei de opinião e sonho atualmente com o retorno da expressão inicial "alienação fiduciária de imóvel já alienado fiduciariamente".
           

2. Na verdade, não há qualquer novidade na matéria.

De fato, nunca houve impedimento legal à contratação da alienação fiduciária de bem imóvel 'superveniente', nem ao seu registro, podendo as partes, "atuando no campo da autonomia da vontade e da liberdade de contratar, convencionarem mútuos ou outros negócios financeiros ou comerciais que se completem com garantia fiduciária cujo registro - imediato - terá efeito meramente assecuratório, condicionada a efetiva constituição ao cancelamento futuro de garantia anteriormente registrada."1

No mesmo sentido, o insigne advogado Dr. Melhim Chalhub leciona, há pelo menos uma década "ser legalmente possível a constituição de nova propriedade fiduciária ou hipoteca sobre a propriedade superveniente, que o fiduciante vier a adquirir," bem como, que o contrato "é objeto de registro no Registro de Imóveis, na matrícula do imóvel em questão, por força do art. 167, I, 29, da lei 6.015/73, segundo o qual devem ser registradas a venda pura e a venda condicionada" 2

De igual forma, já em 2011, veio a lume - no enunciado nº 506, aprovado na V Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal, a possibilidade de "estando em curso contrato de alienação fiduciária, é possível a constituição concomitante de nova garantia fiduciária sobre o mesmo bem imóvel, que, entretanto, incidirá sobre a respectiva propriedade superveniente que o fiduciante vier a readquirir, quando do implemento da condição a que estiver subordinada a primeira garantia fiduciária; a nova garantia poderá ser registrada na data em que convencionada e será eficaz desde a data do registro, produzindo efeito ex tunc."

Apesar da inexistência de impedimento legal e da concordância doutrinária e jurisprudencial, a alienação fiduciária 'subsequente' não contou com o entusiasmo dos registradores de imóveis e das instâncias administrativas do Poder Judiciário, notadamente no Estado de São Paulo, que entenderam imprescindível o cancelamento da garantia anterior, enquanto inexistente previsão legal específica para o pretendido registro.

Essa destoante rejeição e a crise econômica e financeira que assolou o país a partir de 2015 foram suficientes para o arquivamento do projeto que agora retorna, inserido ao texto original do inebriante "Marco Legal das Garantias", trazendo a "previsão legal específica para o pretendido registro", para a tranquilidade dos registradores imobiliários e da Corregedoria de Justiça do Tribunal paulista.


3. Sobre a redação original do projeto de lei apresentado pela Câmara Federal em meados do ano passado dissemos, há um ano, que:

"Malgrado a redação claudicante e propensa a desentendimentos, os parágrafos 3º a 10 incluídos ao art. 22 da lei 9.514/97 se prestam razoavelmente a evidenciar a possibilidade e as condições de alienação fiduciária do bem imóvel superveniente ou subsequente, registrável na matrícula imobiliária desde a data da celebração do contrato e eficácia mantida suspensa e condicionada à aquisição da propriedade pelo pagamento e ao cancelamento do registro da propriedade fiduciária anterior, e se mostram suficientes para mitigar o risco de um novo negócio jurídico e cumprir as condições de proteção ao crédito impostas pela legislação financeira."3

O texto foi agora retomado, revisado e aprovado no Senado Federal que alterou substancialmente seus dispositivos originais no parecer final divulgado no dia 05 de julho passado, para, seguindo a tradição daquela casa, torná-los ainda mais obscuros.

Assim, os parágrafos 3º e 4º introduzidos originalmente ao art. 22 da lei, admitiam o registro imobiliário de contrato de "alienação fiduciária de imóvel já alienado fiduciariamente" desde a data de sua celebração, com eficácia 'ex nunc', desde o seu registro", condicionada à efetiva aquisição do imóvel pelo fiduciante.

No entanto, a redação final do referido parágrafo 3º mantém a admissão do registro desde a data da celebração do contrato, para tornar-se eficaz, em transcrição literal, "a partir do cancelamento da propriedade fiduciária anteriormente constituída", expressão que reaviva antigas divergências doutrinárias e embute os genes da insegurança jurídica e da judiciarização.

A redação original do já então desnecessário parágrafo 5º reiterava o disposto no art. 31 da lei para facultar ao credor beneficiário da garantia 'superveniente' a subrogação na propriedade fiduciária, mediante o pagamento da dívida e foi alterada para continuar igualmente prescindível.

Os parágrafos 6º, 7º, 8º e 9º do projeto de lei, que tratam do vencimento antecipado das demais obrigações contratadas no caso de "inadimplemento de quaisquer das obrigações garantidas pela propriedade fiduciária", foram revistos e alterados para tornar dependente de "pacto expresso na alienação fiduciária mais antiga ainda vigente" a declaração do vencimento antecipado dos créditos do mesmo titular. Considerando que o passado "é folha morta" nos parece muito mais plausível e eficaz exigir que as partes pactuem sobre isso nas contratações 'subsequentes'.

Finalmente, o parágrafo 10º da redação original foi aparentemente suprimido ou substituído pelo 11º do parecer final e ambos dispõem sobre a proteção e subrogação dos credores 'subsequentes' no direito à percepção da importância que restar do produto de eventual venda do imóvel em leilão público, inclusive nos casos de recuperação judicial do fiduciante.


4. Dada a matéria aqui tratada, tomo a liberdade de resgatar tese desenvolvida e exposta no XLIV Encontro de Oficiais de Registro de Imóveis promovida pelo Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB, em Curitiba, no ano de 2017, para cotejar as simetrias entre as características da alienação fiduciária 'subsequente' que ressurge no PL 4.188/21 e as do caucionamento do direito real de aquisição atribuído aos fiduciantes na garantia fiduciária, com vistas a proporcionar melhor aproveitamento das garantias e conferir maior segurança jurídica ao credor fiduciário, nas seguintes condições:

(a) o valor do direito real de garantia (DRA) de que trata o art. 1.368-B do Código Civil, aqui cuidado, corresponde exatamente à diferença entre o valor de avaliação ou mercado do imóvel objeto da garantia e o montante do saldo devedor contratado e garantido pela alienação fiduciária;

(b) por ser direito disponível e ter caráter patrimonial, o DRA pode ser cedido, utilizado como garantia de negócios em geral e objeto de constrição judicial, incluído no rol de bens penhoráveis disposto no art. 835 do Código de Processo Civil;

(c) assim como a alienação fiduciária 'subsequente' (no pressuposto de que o texto atual venha a ser sancionado) pode ser contratada e a propriedade fiduciária 'superveniente' registrada com eficácia suspensa para a garantia de novas operações de crédito, o DRA pode ser caucionado para garantia de novas operações, nos termos dos arts. 17, III e 21 da lei 9.514/77 e averbado na matrícula do imóvel objeto da garantia, conforme admite o inciso 8, item II, do art. 167 da lei 6.015/73, com os efeitos erga omnes e ex tunc dela decorrentes para constituir garantia suficiente aos negócios jurídicos contratados após a constituição da alienação fiduciária originária, conferindo ao credor fiduciário ou a qualquer terceiro segurança tão eficaz quanto a alienação fiduciária 'subsequente', por exemplo, na concessão de crédito com prazo inferior ao da alienação fiduciária precedente`;

(d) embora não conste expressamente do projeto de lei em comento, as instituições financeiras haverão de estabelecer exatamente o valor atribuído ao direito real de aquisição e suscetível de caucionamento como limite de crédito, na contratação de alienação fiduciária 'subsequente', em respeito às normas financeiras, aos critérios de concessão de créditos e constituição de garantias geralmente aceitos e às políticas de risco que norteiam as operações bancárias;

(e) o registro da alienação fiduciária 'subsequente' não implica na oneração do direito real de aquisição que permanecerá passível de cessão, caucionamento etc., em situação que precisará ser administrada com extremo rigor pelo credor que optar pela alienação fiduciária 'subsequente';

(f) da mesma forma, a existência de averbação do DRA caucionado não impedirá o registro de alienação fiduciária 'subsequente', porém impedirá sua excussão pelo credor fiduciário 'subsequente', inclusive quanto ao valor que sobejar à dívida do fiduciário anterior no caso de venda do imóvel em leilão público;  

(g) da constituição de uma alienação fiduciária 'subsequente' emergirá simultaneamente um novo direito real de aquisição, também em caráter suspensivo, que subsistirá exposto e sujeito aos interesses de terceiros credores por todo o período contratual, vulnerando a garantia;

(h) na hipótese de descumprimento contratual a caução poderá ser executada a qualquer momento com a excussão dos direitos caucionados e possibilidade de adjudicação pelo credor, independentemente de oferta pública, proporcionando a recomposição do crédito;

(i) na mesma hipótese, eventual execução forçada da alienação fiduciária 'subsequente' só poderá ser exercida em tempo futuro e determinado (liquidação do contrato original ou mais antigo ou naquilo que sobejar no leilão público) por constituir direito pessoal com potência de direito real;

(j) finalmente, a própria e desejável situação de regular adimplência contratual na alienação fiduciária precedente potencializa o risco do credor fiduciário 'subsequente', na medida em que as amortizações da dívida garantida acrescem valor ao DRA em benefício dos interesses do devedor e de terceiros detentores de direitos caucionados ou, ainda, de terceiros credores eventualmente interessados que poderão valer-se dos meios legais e judiciais de constrição para alcançá-lo.


5. Apesar dos tropeços legislativos, a alienação fiduciária 'subsequente' configura uma chance esperada há muitos anos pelo mercado de crédito imobiliário de performar uma garantia complementar que permita o aproveitamento do dead capital - parcela existente nas garantias fiduciárias que corresponde ao desnível entre o saldo devedor da operação principal garantida e o valor de avaliação do imóvel sobre o qual foi constituída a propriedade fiduciária, que perduraria inexplorado e crescente por todo o período contratual, desperdiçando oportunidades de crédito e garantia.


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1 ROCHA, Mauro Antônio. Alienação Fiduciária de bem imóvel - Da supergarantia do crédito imobiliário ao big mac dos negócios financeiros. São Paulo: Editorial Lepanto, 2022. P. 115.
2 CHALHUB, Melhim Namem. Parecer jurídico sem data, elaborado para a Caixa Econômica Federal, em 2017.
3 ROCHA, Mauro Antônio. Considerações críticas sobre o PL 4.188/21 que institui o Marco Legal das Garantia, publicado no boletim Migalhas, edição de 12/7/02.
Publicado originalmente no Boletim Boletim Migalhas nº 5641 edição de 13/07/2023.


(*)Mauro Antônio Rocha Advogado graduado pela Faculdade de Direito da USP. Pós-Graduação em Direito Imobiliário e Direito Notarial e Registral. Vice Presidente da AD NOTARE Academia Nacional de Direito Notarial e Registral

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Breve história da formação territorial, propriedade privada e registro público do Brasil.



Mauro Antônio Rocha*

A história¹ da propriedade imobiliária no Brasil tem início em 1493 com a doação pelo Papa Alexandre VI à Coroa Portuguesa de parte do território do Novo Mundo que seria descoberto por Cabral em 1500.

1. A divisão do Novo Mundo – Muito mar e pouca terra.

Em 1493, pela Bula ‘Inter Coetera’, datada de 4 de maio, o Papa Alexandre VI determinou a divisão do “Novo Mundo” – a partir de um meridiano traçado 100 léguas (mais ou menos 500 quilômetros) a oeste do arquipélago de Cabo Verde – mediante a “doação, concessão e dotação perpétua” de terras e ilhas a leste ao Rei de Portugal e a oeste aos reis de Castela e Leão (Espanha), nos seguintes termos:

“Esta bula origina-se de termos feito doação, concessão e dotação perpétua, tanto a vós (reis), como a vossos herdeiros e sucessores (reis de Castela e Leão), de todas e cada uma das terras firmes e ilhas afastadas e desconhecidas, situadas em direção do ocidente, descobertas hoje ou por descobrir no futuro, seja descoberto por vós, seja por vossos emissários para este fim destinados.”
De acordo com as disposições da bula papal, a propriedade da coroa portuguesa a leste do meridiano traçado adentrava o território continental a partir do Oceano Atlântico num ponto próximo ao atual estado do Ceará para desembocar no mesmo oceano nas proximidades do local onde hoje está a cidade de Salvador, no estado da Bahia.

A divisão proposta obedecia aos registros das expedições espanholas – principalmente as descobertas da esquadra de Cristóvão Colombo em 1492 – e das expedições portuguesas que já haviam alcançado as costas brasileiras.

Demorou pouco para que os portugueses percebessem que pela divisão adotada receberam muito mar e pouca terra.

2. O Tratado de Tordesilhas – Muita terra e muito mar.

Insatisfeitos, os portugueses negociaram com o Reis de Espanha o deslocamento do meridiano traçado para um ponto distante 370 léguas² a oeste do arquipélago de Cabo Verde, redefinindo os limites entre aqueles reinos, com o consequente alargamento territorial do domínio português.

“A descoberta da América, por Cristóvão Colombo, em 1492, a serviço da Espanha, agravou as contendas entre os Reis de Castela e Aragão, Fernando e Isabel e o de Portugal, D. João II, objeto de bulas do Papa Alexandre VI, em 1493, tentando dividir o mundo ocidental entre os dois reinos ibéricos. O tratado de Tordesilhas, de 07 de junho de 1494, tentou pôr fim às divergências com a ‘Capitulação da partição do mar oceano’, e o estabelecimento de uma linha reta de polo a polo, à distância de 370 léguas a oeste das ilhas de cabo Verde. As terras de leste, inclusive ilhas, descobertas ou por descobrir, pertenceriam a Portugal; as de oeste ficariam para a Espanha. O Novo Mundo fora dividido mesmo antes de ser totalmente conhecido e assim prosseguiram as navegações, culminando, as portuguesas, com a descoberta do Brasil a 22 de abril de 1500”.³
A rigor, não houvesse o afastamento do meridiano proposto pela bula papal em direção oeste, a esquadra de Pedro Alvares Cabral teria aportado em terras espanholas, distando Porto Seguro aproximadamente 400 quilômetros para o sul da capital baiana em linha reta.

Assim, o território inicial do Brasil a ser considerado – por conta da “doação, concessão e dotação perpétua” – deve ser aquele determinado no tratado de Tordesilhas que nos mapas atuais adentra o território brasileiro pelo Estado do Maranhão e retorna ao Oceano Atlântico entre os Estados do Espírito Santo e Rio de Janeiro, representativo das terras descobertas pela esquadra portuguesa e objeto de apossamento em nome da coroa Portuguesa.

3. O descobrimento do Brasil – Terra à vista.

Como se viu, a gênese dos títulos imobiliários é anterior à “descoberta” de Pedro Álvares Cabral e, no momento do apossamento, aquelas terras já haviam sido partilhadas e existiam, pelo menos, dois instrumentos que conferiam e definiam os limites da propriedade portuguesa no ‘novo mundo’.

No entanto, a história oficial da propriedade imobiliária no Brasil tem início na tarde do dia 22 de abril de 1500 quando foi avistado o cume do Monte Pascal e na manhã seguinte quando houve o desembarque e apossamento das terras descobertas, em nome da coroa Portuguesa.

O registro histórico do descobrimento foi lavrado pelo escrivão da esquadra Pero Vaz de Caminha.

“Experiente, o escrivão nascido na cidade do Porto, Portugal, em 1450 era filho de Vasco Fernandes de Caminha, cavaleiro do Duque de Bragança, de quem herdou o cargo de mestre da balança da Casa da Moeda, com a função de tesoureiro e escrivão, casado com Dona Catarina e pai de uma filha, Isabel. Considerado culto e letrado, redigiu os capítulos da Câmara Municipal do Porto em 1497 e foi nomeado escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral em 1500.”
Na carta, datada de 1º de maio de 1.500, endereçada ao Rei de Portugal – considerada a certidão de nascimento do Brasil e a primeira escritura pública de aquisição de bens imóveis e constituição de direitos reais lavrado no País – as terras apossadas foram identificadas e especializadas pelo Oficial Público da seguinte forma:

“Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos até à outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa. Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é toda praia palma, muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa." (4)
Em decorrência do descobrimento e ratificando os tratados anteriormente firmados, a coroa Portuguesa tornou-se titular de todo o território descoberto, nos limites da partilha antes configurada.

Aquisição originária ou derivada?

De acordo com os critérios doutrinários assentes a propriedade pode ser adquirida de forma originária, quando o bem ‘não tem dono’, configurada a res nullius – coisa de ninguém – ou res derelicta – coisa abandonada, inexistindo, portanto, qualquer transmissão de domínio ou derivada, quando a aquisição da propriedade do bem resulta da transmissão de direitos de um titular a outro.

Bens territoriais são adquiridos de forma originária pela ocupação, quando as terras não pertencem a nenhum outro estado; pela acessão, acréscimo territorial decorrente de fato natural ou humano; ou pela adjudicação, quando um território passa à soberania de outro Estado por decisão de uma organização política internacional, ou na forma derivada – geralmente pela transferência territorial de um Estado a outro, a título gratuito ou oneroso, da soberania exercida; ou pela conquista – ato bélico que resulta na posse e anexação total ou parcial do território pertencente a outro Estado.

Apesar da quase unanimidade entre os doutrinadores sobre o caráter originário da aquisição do território brasileiro pela coroa Portuguesa, cabe ressaltar que o desembarque dos tripulantes da esquadra de Cabral foi acompanhado por milhares de indígenas, representantes dos dois ou três milhões de nativos que ocupavam e habitavam – há muitos séculos – o território descoberto.

“Dos baixios lamacentos do que é o atual Estado do Maranhão às longas extensões arenosas da costa sul do Brasil, praticamente todo o litoral brasileiro estava ocupado por tribos do grupo Tupi-Guarani quando, em 1500, Pedro Álvares Cabral desembarcou nas praias de areia faiscantes de Porto Seguro. Havia cerca de 500 anos, Tupinambá e Tupiniquim tinham assegurado a posse dessa longa e recortada costa, expulsando, para os rigores do agreste, as tribos ‘bárbaras’, que eles chamavam de ‘Tapuí’.” (5)
Dessa forma, ainda que a primeira abordagem tenha se efetivado sem qualquer confronto bélico imediato e conhecido, os nativos indígenas, habitantes originais que detinham a posse do território encontrado foram mortos, expulsos ou escravizados e praticamente exterminados após a descoberta, vitimados pelas armas e doenças trazidas pelos europeus, pela submissão ao trabalho escravo, pelo avanço civilizatório e pelas guerras intertribais estimuladas pelos colonizadores, sendo lícito considerar que a aquisição do território brasileiro pela coroa Portuguesa foi derivada e decorrente de atos de conquista.

“O Brasil não foi, dessa forma, descoberto e ocupado. Foi conquistado em uma luta na qual pereceram milhares de pessoas, entre índios e europeus, portugueses e franceses. Nela sacrificaram-se velhos, mulheres, crianças e religiosos”. (6)
4. Os negócios imobiliários no Brasil Colônia – “Aluga-se”.

O primeiro negócio imobiliário realizado no território brasileiro foi o arrendamento das terras portuguesas ao espanhol Fernão de Noronha, para a exploração do pau-brasil e do litoral e defesa da terra, mediante o pagamento de um quinto dos lucros auferidos, assim descrito pelo historiador Eduardo Bueno:

“Durante dez anos o Brasil teve um dono. Ao fechar um contrato de exclusividade para a exploração do pau-brasil, em 1502, o cristão-novo Fernão de Noronha arrendou a colônia por três anos, à frente de um consórcio de judeus conversos. O acordo teria sido renovado em três ocasiões. As obrigações do cartel eram: explorar o pau-brasil, defender a terra contra a cobiça, já viva, de espanhóis e franceses, estabelecer uma feitoria, explorar 900 léguas (5,9 mil quilômetros) de litoral e pagar um quinto dos lucros à Coroa.

Em 1503, Noronha armou sua primeira expedição, descobriu a ilha que hoje tem seu nome e iniciou a exploração do ‘pau de tinta’. Noronha ou Loronha, agente dos judeus alemães Fugger, era um armador nascido nas Astúrias, na Espanha, que enviava frotas à Índia e possuía uma rede de negócios, com sede em Londres.” (7)
No mesmo sentido, Thales Guaracy registra o arrendamento territorial da colônia da seguinte forma:

“Quem começou a aproveitar as possibilidades de exploração da madeira foi a iniciativa privada. Em 1503, Fernão de Loronha recebeu da corte portuguesa autorização de partir com seis navios para iniciar a troca com os indígenas de utensílios e outros objetos de pau-brasil, como também faziam os franceses. Nascido nas Astúrias, ele era já um rico comerciante, que fizera negócios com o rei da Inglaterra. Financiado pelo banqueiro Jakob Fugger, e associado a comerciantes cristãos-novos, Loronha fechou um contrato inicial de arrendamento das terras brasileiras para explorar o comércio de pau-brasil por três anos.” (8)
Outros historiadores, como Hélio Viana e Bastos Meira registram que já em 1504 Fernão de Noronha teria sido agraciado com a doação da primeira Capitania Hereditária do Brasil, denominada Ilha de São João ou Ilha da Quaresma – hoje Arquipélago de Fernando de Noronha.

A partilha do território em capitanias e sesmarias – “Dá-se terra”.

Com a missão de promover a colonização, além de defender e explorar a costa, Martim Afonso de Souza chegou à colônia, em 1530, com autorização expressa do Rei de Portugal para distribuir terras e conceder sesmarias que julgasse passíveis de aproveitamento, nomear tabeliães e demais oficiais de Justiça.

Em 1532, D. João III decidiu apressar a colonização e povoação do Brasil, mediante a aplicação do mesmo sistema de divisão territorial – em capitanias – que fora bem-sucedido nos Açores e na Ilha da Madeira.

Destarte, entre 1534 e 1536 D. João III repartiu o território em 14 capitanias, cada uma com 50 léguas de largura aproximadamente, da costa até o limite estabelecido pelo tratado de Tordesilhas, que foram distribuídas a 12 donatários, mediante a outorga de Carta de Doação – que representava o valor vitalício e hereditário da capitania e transmitia ao donatário a posse da terra, que podia transmiti-la também aos seus descendentes – e Carta Foral – que tratava dos tributos devidos pelos colonos, da divisão dos bens entre a Coroa e o donatário e permitia a doação de sesmarias aos cristãos dispostos a tornarem-se colonos.

Ao final, a falta de recursos e de investimentos para administrar e defender os extensos territórios das capitanias decretou o fracasso desse sistema de parcelamento territorial, que foi extinto em 1759, com o retorno das terras ao domínio pleno da coroa, passando a ser administradas pelo Governo Geral.

5. O tratado de Madri e outros tratados – Redesenhando limites.

Ainda antes do fim das capitanias, as coroas espanhola e portuguesa assinaram o Tratado de Madri, em 13 de janeiro de 1750, redefinindo os limites instituídos pelo tratado de Tordesilhas no final do século XV que, de fato, restavam desconsiderados e desrespeitados principalmente pelo avanço das expedições bandeirantes, pelas missões jesuíticas de catequização e pela exploração econômica das terras.

De acordo com o Tratado de Madri, os limites coloniais lusitanos e hispânicos seriam definidos por meio do princípio de ‘uti possidetis’, ou seja, concorreria a propriedade àquele que tenha ocupado primeiramente a região.

A aplicação desse princípio ensejou a necessidade de permutar áreas com ocupação diversa da colonização predominante, resultando na revisão do tratado para que, entre outras, a posse da Amazônia, assim como a região de Sete Povos das Missões passassem ao domínio português e a Colônia do Sacramento ao domínio espanhol.

Posteriormente, pelo Tratado de Santo Ildefonso, assinado em 1º de outubro de 1777 – o primeiro de três tratados homônimos firmados por Portugal e Espanha, com o objetivo de dar fim à disputa pela posse da Colônia de Sacramento entre as duas nações – ficou definido que a Colônia, assim como a ilha de São Gabriel e a região de Sete Povos de Missões, ficariam para a Espanha e, em contrapartida, a margem esquerda do rio da Prata e a ilha de Santa Catarina, ocupada pelos espanhóis, ficariam para Portugal.

Ademais, foram restabelecidas algumas linhas gerais do Tratado de Madrid, de forma que o território de São Pedro do Rio Grande foi cortado ao meio, no sentido longitudinal, próximo a cidade atual de Santa Maria, no Rio Grande do Sul.

A chegada da Corte ao Brasil e a explosão demográfica.

Entre 1808 e 1821 D. João VI e sua corte – composta por 10.000 nobres e representantes do clero chegaram ao Brasil, fugidos de Napoleão Bonaparte e o Rio de Janeiro foi elevado à condição de capital do Reino de Portugal, tendo ascendido, em 1915, o Brasil à condição de integrante do Reino de Portugal e Algarve – em manobra do rei para adiar a volta a Lisboa.

Quando, em 1808, a corte chegou ao Rio de Janeiro, a colônia tinha acabado de passar por uma explosão populacional. Em pouco mais de cem anos, o número de habitantes aumentara dez vezes. O motivo fora a descoberta de ouro e diamante no final do século XVII. A corrida para novas áreas de mineração, que incluíam Vila Rica (atual Ouro Preto) e Tijuco, em Minas Gerais, e Cuiabá, no Mato Grosso, produziu a primeira grande onda migratória da Europa para o interior brasileiro. Só de Portugal, entre meio milhão e 800.000 pessoas mudaram-se para o Brasil de 1700 a 1800. Ao mesmo tempo, o tráfico de escravos se acelerou. Quase 2 milhões de negros cativos foram importados para trabalhar nas minas e lavouras do Brasil durante o século XVIII. Foi uma das maiores movimentações forçadas de pessoas em toda a história da humanidade. Como resultado, a população da colônia, estimada em 300.000 habitantes na última década do século XVII, saltou para mais de 3 milhões por volta de 1800. (9)

Nesse período, entre 1808 e 1821, tropas portuguesas tomaram a Guiana Francesa, em 1809 e a Banda Oriental do Uruguai, em 1817. O território da Guiana seria devolvido à França em 1817 e o Uruguai seria incorporado ao território brasileiro em 1821, com o nome de Província Cisplatina.

A desincorporação do Uruguai

Somente em 1828, doze anos após o término da guerra Cisplatina e seis anos após a Independência, o Brasil assinou tratado com a Argentina, desistindo da Província Cisplatina e reconhecendo o Uruguai como país independente.

A desincorporação do Uruguai daria fim a séculos de conflitos na região, iniciados pela imprecisão do traçado de Tordesilhas, agravado com a fundação de Colônia do Sacramento pelos portugueses em 1680 e que resultou na guerra Cisplatina, iniciada em 1811 e terminada em 1816.

6. A Independência do Brasil – O Brasil se tornou bem público.

Com a Proclamação da Independência, em 7 de setembro de 1822, o Brasil começou a existir como Estado e Nação, adquirindo personalidade jurídica de direito público e, como consequência jurídica, o território brasileiro – até então propriedade particular da coroa Portuguesa – passou a pertencer ao Estado – Império do Brasil – e a constituir bem público.

A ocupação desordenada do território

Entre 1822 e 1850, as terras públicas foram ocupadas sem títulos e se encontravam distribuídas da seguinte forma, segundo Paulo Garcia, citado por Nikolai: (9)

(a) Terras particulares – as que estavam incorporadas ao domínio de um particular, em virtude de título legítimo; (b) Terras públicas pertencentes à Nação, às Províncias ou aos Municípios; (c) Aplicadas a algum uso público (nacional, provincial ou municipal); (d) Sujeitas a posse de particulares em virtude de concessões incursas em comisso; (e) Sujeitas a posse de particulares, sem qualquer título, a não ser a ocupação; (f) Sob domínio útil de um particular; (g) Desocupadas, ou que não estavam em posse de ninguém.
“Em 1822, o Brasil tinha cerca de 4,5 milhões de habitantes – menos de 3% de sua população atual – divididos em 800.000 índios, um milhão de brancos, 1,2 milhão de escravos (africanos ou seus descendentes) e 1,5 milhão de mulatos, pardos, caboclos e mestiços. Resultado de três séculos de miscigenação racial entre portugueses, negros e índios, esta última parcela da população compunha um grupo semi-livre, que se espalhava pelas zonas interiores e vivia submisso às leis e vontades dos coronéis locais.”
Evidentemente, todas essas pessoas ocupavam terras para moradia, produção agrícola, criação de animais, comércio etc., de forma que a posse e exploração dessas terras passam a agregar valor patrimonial e negocial, dando ensejo à necessidade de controle administrativo dos títulos possessórios, bem como aos ainda incipientes negócios envolvendo direitos sobre terras e empréstimos com garantia imobiliária.

A mancha do povoamento ainda se encontrava na faixa litorânea entre a cidade gaúcha do Rio Grande e a baia de Marajó, no estuário do Rio Amazonas, mas o mapa do Brasil já tinha mais ou menos os seus contornos atuais, com duas exceções: a província Cisplatina, que ganharia sua independência como o Uruguai em 1828, e o estado do Acre, que na época fazia parte da Bolívia e seria comprado pelo barão do Rio Branco e incorporado ao território brasileiro no começo do século 20.

7. A regularização territorial – A lei de terras e as terras devolutas

A Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, foi o primeiro estatuto da terra pública, promulgado para definir as terras devolutas, punir as invasões de terras públicas e particulares e legitimar posses mansas e pacíficas, com a seguinte ementa, na escrita original:

“Dispoem sobre as terras devolutas no Imperio, e ácerca das que são possuidas por titulo de sesmaria sem preenchimento das condições legaes, bem como por simples titulo de posse mansa e pacifica: e determina que, medidas e demarcadas as primeiras, sejão ellas cedidas a titulo oneroso assim para emprezas particulares, como para o estabelecimento de Colonias de nacionaes, e de estrangeiros, autorisado o Governo a promover a colonisação estrangeira na fórma que se declara.”
Foram proibidas as aquisições de terras devolutas por outro título que não seja o de compra, exceto em uma zona de 10 léguas da fronteira, que seriam concedidas gratuitamente, o que equivale à extinção do poder de se conceder sesmarias, e estabelecida a pena de dois a seis meses de prisão e multa de 100$, além da satisfação do dano causado, aos que se apossarem de terras devolutas ou alheias, e nelas derrubarem matos ou lhes puserem fogo, além de despejo, com perda de benfeitorias.

Ficou garantido o domínio ao possuidor de terras, com título legitimo da aquisição do seu domínio, quer tenham sido originariamente adquiridas por posses de seus antecessores, quer por concessões de sesmarias não medidas, ou não confirmadas, nem cultivadas, qualquer que for a sua extensão.

A chamada lei de terras pode ser considerada, portanto, uma lei restritiva de acesso à terra e, não por acaso, interpretada por parte dos historiadores como integrante de um pacote de medidas que precederiam a abolição da escravatura em 1888.

Com a pressão interna e externa para dar fim à importação de pessoas negras e a conceder a liberdade aos escravos o governo imperial promoveu e estabeleceu os critérios para a regularização fundiária de ocupações sesmarias e concessões anteriormente reconhecidas, declarando devolutas todas as demais áreas territoriais, de forma a evitar que escravos libertados ocupassem, individualmente ou em grupos – terras públicas sem os respectivos pagamentos.

Proclamada a República em 1889 e promulgada a Constituição dos “Estados Unidos do Brasil” em 1891 as terras devolutas de propriedade da União foram distribuídas aos Estados, ficando reservado o domínio apenas das terras “situadas nos limites do Império com países estrangeiros”, a chamada Faixa de Fronteira, criada pela Lei nº 601/1850.

“Desde a época da Independência o país tinha feito progressos significativos, embora ainda muito aquém de suas necessidades em alguns itens. As fronteiras estavam definidas e consolidadas, com exceção de um trecho na região do Rio da Prata e do Estado do Acre, que em 1903 seria comprado da Bolívia por 2,9 milhões de libras esterlinas em negociação conduzida pelo barão do Rio Branco. Ao manter intacto um território pouco inferior à soma de todos os países europeus, os brasileiros haviam alcançado uma façanha que nenhum dos seus vizinhos conseguira realizar. O Brasil se mantivera unido, enquanto a antiga América espanhola se fragmentara nas guerras civis do começo do século.” (10)
8. O surgimento dos registros públicos – O registro do vigário

O chamado registro do vigário ou paroquial, de efeito meramente declaratório, surgiu no regulamento da Lei nº 601/1850, aprovado pelo Decreto nº 1318, de 30 de janeiro de 1854, para diferenciar o domínio particular do domínio público.

Ficaram os vigários de cada uma das Freguesias do Império encarregados de receber as declarações para o registro das terras, e incumbidos de proceder a esse registro dentro de suas Freguesias, fazendo-o por si, ou por escreventes, dentro dos prazos legais estipulados, mantendo livros de registro abertos, numerados, rubricados e encerrados e nesses livros efetuar o lançamento por si, ou por seus escreventes, textualmente, das declarações, que lhes forem apresentadas, cobrando do declarante por esse registro o emolumento correspondente, anotando em cada um a folha do livro, em que foi registrado.

Os registros hipotecário e imobiliário

Para atender aos interesses dos detentores do capital e conferir regularidade aos empréstimos com garantia fundada em direitos imobiliários, o Registro Hipotecário foi criado pela Lei Orçamentária nº 317, de 21 de outubro de 1843, regulamentada pelo Decreto nº 482, de 1846.

Mais tarde, com a promulgação da Lei nº 1.237, de 24 de setembro de 1864, regulamentada pelos Decretos nº 3.423 e 3.471 de 1865 e 169-A de 19 de janeiro de 1890, foi criado o Registro Imobiliário.

“Segundo José Maria Junqueira de Azevedo, o Registro de Imóveis, com a função de transcrever aquisições imobiliárias e inscrever ônus reais, instituiu-se, no Brasil, pela Lei 1.237, de 24.09.1864, regulamentada pelo Dec. 3.453, de 26.04.1865. Anteriormente, com o fim restrito de inscrever hipotecas, criou- se, então, as normas do Registro Paroquial. Vê-se, assim, que o instituto do crédito precedeu à titulação da propriedade. a inscrição da hipoteca antecedeu a transcrição do imóvel, que só veio a ser instituída com a lei antes referida, que transformou o Registro de Hipotecas em “Registro Geral”. Foi aquele que deu origem ao Registro de Imóveis, haja vista seu escasso préstimo para o crédito.” (11)
9. A consolidação territorial brasileira – O Acre é nosso!

A intensa movimentação de nordestinos em direção à Bolívia e ao Peru, no final do século XIX para explorar seringais ou trabalhar na extração do látex resultou na tomada de Puerto Alonso, cidade que foi rebatizada e Porto Acre e “incorporada” ao Brasil com a criação do “Estado Independente do Acre”.

Para encerrar esses conflitos e oficializar a incorporação do território ocupado pelos nordestinos, o Brasil adquiriu à Bolívia, pelo valor equivalente a aproximadamente três milhões de libras esterlinas todo o território do Acre inferior e superior, com extensão de quase 200.000 quilômetros quadrados, pela assinatura do tratado de Petrópolis, em 1903.

Após a compra do território onde existe o Estado do Acre, o Brasil definiu seu território em 8.410.518 km² (12) e consolidou suas fronteiras tomando a forma que ostenta nos mapas atuais.

10. O domínio territorial do oceano – “Esse mar é meu...”

Finalmente, em 1970, o Brasil declarou soberania sobre uma faixa de duzentas milhas marítimas de largura do mar territorial, “a partir da linha de baixa-mar do litoral continental, inclusive sobre o espaço aéreo, bem como ao leito e subsolo deste mar."

Atualmente, regido pela Lei nº 8.617 (13) , de 04 de janeiro de 1993, o mar territorial brasileiro compreende uma faixa de doze milhas marítima de largura, medidas a partir da linha de baixa-mar do litoral continental e insular e uma outra faixa que se estende das doze às vinte e quatro milhas marítimas, contadas a partir das linhas de base que servem para medir a largura do mar territorial, que constitui zona contígua, sujeita à fiscalização de infrações às leis e aos regulamentos aduaneiros, fiscais, de imigração ou sanitários, bem como à repressão dos infratores no seu território, ou no seu mar territorial.

Para além disso, o Brasil estabeleceu direitos de soberania sobre uma zona econômica exclusiva, que se estende até as duzentas milhas marítimas, inclusive da plataforma continental que compreende o leito e o subsolo das áreas submarinas, para fins de exploração e aproveitamento, conservação e gestão dos recursos naturais, vivos ou não-vivos, das águas sobrejacentes ao leito do mar e outras atividades com vistas à exploração e ao aproveitamento da zona para fins econômicos.

* Mauro Antônio Rocha Advogado especializado em Direito Imobiliário, Notarial, Registral, Crédito e Garantia Imobiliárias. Vice-Presidente da AD NOTARE – Academia Nacional de Direito Notarial e Registral

Artigo publicado originalmente no BOLETIM MIGALHAS 5.618

Notas:

1 O presente ensaio, apesar de fundado em pesquisas realizadas em dezenas de livros de história do Brasil escritos por autores reconhecidos nacionalmente e baseado nas informações colhidas e consideradas verídicas, não tem caráter oficial, nem configura trabalho de pesquisa científica nos termos das normas da ABNT.
2 O direito colonial no Brasil, Bastos Meira, Silvio A., http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/2/730/ 24/730/24.pdf
3 Gomes, Laurentino. 1808. São Paulo: Ed.Planeta do Brasil, 2007.
4 ________. Brasil: uma história: cinco séculos de um país em construção, São Paulo: Leya, 2010.
5 ________. 1822. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010.
6 Erpen, D.A, e Lamana Paiva, J.P. Panorama histórico do registro de imóveis no Brasil. http://registrodeimoveis1zona.com.br/?p=270
7 ________. 1889, 1ª ed. – São Paulo: Globo, 2013.
8 Guaracy, Thales. A conquista do Brasil 1500 – 1600. São Paulo: Planeta, 2015.
9 Nikolai, Oscar. Terras devolutas. Belo Horizonte: 1956, p. 29.
10 ________. 1889, 1ª ed. – São Paulo: Globo, 2013.
11 Erpen, D.A, e Lamana Paiva, J.P. Panorama histórico do registro de imóveis no Brasil. http://registrodeimoveis1zona.com.br/?p=270
12 https://www.ibge.gov.br/geociencias/organizacao-do-territorio/estrutura-territorial/15761- areas-dos-municipios.html?t=acesso-ao-produto&c=1
13 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8617.htm#:~:text=1%C2%BA%20O%20mar%20 territorial% 20brasileiro,Par%C3%A1grafo%20%C3%BAnico. Consultado em 01/06/2023

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Palestra sobre execução de garantias no escritório Stocche e Forbes Advogados

Mauro Antônio Rocha [*]

No dia 13 de junho, o escritório Stocche e Forbes Advogados reunirá Ricardo Marques, Head do Jurídico Imobiliário e Ambiental do BTG Pactual e Mauro Antonio Rocha, Vice-Presidente da AD NOTARE (Academia Nacional de Direito Notarial e Registral), Professor, Advogado Sênior e Coordenador Jurídico de Contencioso na Caixa Econômica Federal, para o evento “Desafios na constituição e execução de garantias reais sobre imóveis rurais”.

Na oportunidade, juntamente com o Dr. Vilmar Lima Carreiro Filho, sócio de Imobiliário e Agronegócio daquele escritório, abordarão os principais desafios na constituição de garantias sobre imóveis rurais, envolvendo auditorias e questões registrais e ambientais.

Inscreva-se aqui!

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